segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Demétrio Magnoli - Política externa fora da lei

O Globo

Crimes de guerra — assim Josep Borrell, o diplomata-chefe da União Europeia, classificou a chuva de mísseis russos lançada sobre cidades e infraestruturas civis ucranianas. Simultaneamente, na Assembleia Geral das Nações Unidas, uma larga maioria aprovava resolução condenando as anexações russas (143 contra cinco, com 35 abstenções). O Brasil, que escolheu a abstenção diante de texto similar apresentado ao Conselho de Segurança, acabou votando favoravelmente. Entre a incoerência e a vergonha absoluta, o governo Bolsonaro escolheu a primeira.

Será o fim da cínica “neutralidade” mantida ao longo de mais de sete meses? Improvável. Sob Bolsonaro, nem mesmo crimes de guerra em série convenceram o Brasil a apoiar, ainda que verbalmente, as sanções contra a Rússia e a assistência financeira e militar à Ucrânia. A “solidariedade” prometida a Vladimir Putin expressa-se na prática, sob a forma de oposição às iniciativas concretas destinadas a proteger a nação invadida.

Sobram, nos meios acadêmicos brasileiros, esforços de justificação teórica da posição de “neutralidade pró-Rússia”. Os analistas executam acrobacias históricas e filosóficas. Escreve-se que a fonte da guerra é a expansão da Otan, que a segurança russa depende do controle de Moscou sobre a Ucrânia, que o ucraniano é um dialeto regional russo, que inexiste uma nação ucraniana.

Tais teses reproduzem as alegações laterais putinistas para a guerra imperial — e ignoram as motivações imperiais explícitas do chefe do Kremlin, expressas no discurso que anunciou a invasão. No fundo, constituem apenas elucubrações ideológicas primitivas. Mas, de fato, mesmo que fossem corretas, não serviriam para sustentar a posição brasileira.

O fundamento mais básico da política externa das nações democráticas é a lei — a lei internacional e a lei constitucional. A guerra russa viola frontalmente a Carta da ONU, algo que se tornou indiscutível após o decreto de anexações de províncias ucranianas. A Constituição define a “independência das nações” e a “autodeterminação dos povos” como princípios de nossas relações internacionais. Com sua neutralidade de araque, o governo Bolsonaro pratica uma política externa que despreza o Direito Internacional e o contrato constitucional.

As sanções à Rússia e a assistência à Ucrânia, pelo contrário, alinham-se à lei internacional. No artigo 51, a Carta da ONU consagra o direito à “autodefesa coletiva” — o direito de todas as nações de defender, inclusive por meio de ajuda militar, uma nação agredida. A transferência de material bélico ao país agredido não converte os países que o apoiam em partes do conflito militar. É falsa a afirmação difundida pelos propagandistas do Kremlin de que a Rússia encontra-se em guerra com a Otan.

Bolsonaro não liga para a lei, nacional ou internacional. Tudo indica que um futuro governo Lula também a desprezará, ao menos no campo da política externa. Meses atrás, Lula esboçou sua “neutralidade” ao responsabilizar igualmente Putin e Volodymyr Zelensky pela guerra de agressão russa. Há pouco, foi adiante, alinhando-se com o discurso atual do Kremlin.

— A gente só ouve que os Estados Unidos vão colocar mais armas, que a Otan vai colocar mais armas, quando na verdade a gente precisa ter um conjunto de pessoas falando em paz — disse Lula.

Aí, pela voz de Lula, ouvem-se os ecos das mais recentes declarações de Putin. Numa ponta, Putin alerta que a ajuda militar à Ucrânia ultrapassa uma “linha vermelha” russa. Na outra, volta a pedir negociações de paz, não sem explicar que as anexações russas são “inegociáveis”. A paz putinista — que é a paz lulista —equivale ao triunfo da potência que iniciou uma guerra imperial de conquista.

—Caso a Rússia pare de combater, a guerra acaba. Mas, caso a Ucrânia pare de combater, a Ucrânia acaba — sintetizou o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken.

O Brasil putinista de Bolsonaro e Lula não quer a paz, como alega, mas uma “paz russa” — a eliminação da Ucrânia como nação soberana — provocada pelo fim da ajuda militar ocidental.

Carta da ONU? Constituição? O Brasil putinista não dá a mínima para a lei.

 

2 comentários:

  1. Após o fim da II guerra, em 1945
    houve o pacto da não agressão e Invasão a outros países que a Rússia assinou e não respeitou.

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