Por Marcelo Godoy / O Estado de S. Paulo
Filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcos Nobre identifica uma singularidade na situação política atual do País: não estamos diante de uma polarização, mas de uma divisão. Ele explica. Polarização é que o existe quando forças opostas disputam o poder aceitando as regras do jogo democrático. A divisão ocorre quando essas regras parecem não mais serem suficientes para resolver as disputas e os conflitos que aparecem na democracia. As sociedades se aproximam então de soluções catastróficas, como a guerra civil, ou rumam para a construção de um novo pacto, que isole o extremismo que procura corroer a democracia para impor sua vontade à outra parte da nação. Nobre, que é presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e autor entre outros do livro Limites da Democracia, pensa que, no Brasil, esse impasse pode ser superado se o novo governo mudar a forma de construção de maioria no Congresso, não mais buscando formar uma supercoalizão, modelo que ele chama de peemedebização, que vigorou no País entre 1994 e 2013. Isso permitiria o surgimento de espaço para uma oposição democrática. “É preciso reconstruir a direita democrática e, sobretudo, que ela consiga a hegemonia do campo da direita.”
Eis aqui a íntegra de sua entrevista ao Estadão:
Professor, o senhor diz que não vivemos
mais uma polarização, mas uma situação de divisão do País. Por quê?
Quando falo em polarização trato de
elementos que estão no mesmo campo magnético. A situação que a gente tem hoje é
de divisão. Ou seja, não existe um acordo sobre qual seja o campo em que deve
ser jogado o jogo. Existe uma divisão profunda nas sociedades, não só no
Brasil. Esse é um fenômeno que é mundial. Isso vai ter um reflexo nas saídas.
Como você não tem mais a democracia como um campo comum, um terreno comum onde
você vai elaborar os conflitos, como até isso está em questão, como a Nação
também não une – cada um tem a sua ‘nação’ – não há mais elementos comuns a
partir dos quais os conflitos podem ser elaborados. É uma situação limite
em que a democracia tal como a gente conheceu está em estado de emergência.
Estamos em estado de emergência democrática. Tem duas saídas para isso. A
primeira é a emergência democrática se tornar resistência democrática, com a
vitória do autoritarismo típico dos anos 2010, que é um autoritarismo
eleitoral, que vai fechando o regime desde dentro a partir de sucessivas
eleições e transformações legislativas e da composição da Suprema Corte. Essa é
uma saída em que uma parte impõe à outra o seu conceito de mundo. Estamos
falando de uma divisão que é uma divisão de mundos. Muitas vezes as pessoas
falam que o bolsonarismo vive em um mundo paralelo. Acontece que, se ele se
sair vencedor, quem vai morar em um mundo paralelo é o progressismo. Há uma
disputa sobre o que é o mundo. E, no caso de uma vitória autoritária, você tem
a imposição de um mundo sobre outro de uma maneira violenta. Como seria a saída
progressista? Ela é ao mesmo tempo preservar as instituições democráticas, mas
sabendo que elas precisam ser reformadas. Não pode ser uma volta ao passado, ao
que a democracia era antes. Ela precisa ser uma outra democracia. É preciso
produzir uma democracia que recupere os ideais pensados após o fim da 2.ª
Guerra Mundial, que prometa à próxima geração uma vida melhor do que a atual,
que se tenha uma perspectiva de futuro, o que hoje não temos; e uma democracia
que se democratize, ou seja, que as pessoas tenham cada vez mais acesso a
direitos.
Qual a importância das múltiplas
realidades e morfologias regionais para a divisão do voto que hoje temos no
Brasil? E qual o peso disso para o cenário político atual?
Quando a gente olha o País por região ou por Estado, muitas vezes dizemos que, se uma candidatura venceu naquele Estado, então aquele lugar é lulista ou bolsonarista. A gente precisa sempre colocar um grau de sal nisso, pois depende da diferença. O Estado pode estar dividido ou ter uma larga vantagem, como é o caso de Santa Catarina para Bolsonaro ou da Bahia para Lula. Isso não significa que a gente possa dividir o País por região ou Estado, pois você tem a presença da outra candidatura ali. Quando fazemos o mapa do azul ou do vermelho, isso às vezes esconde o que está muito perto. Uma diferença em Minas de 5% pró-Lula não faz de Minas um Estado petista. É claro que, ao longo do tempo, a gente tem visto que o Nordeste tem sido uma fortaleza lulista, um celeiro de votos importante do ex-presidente e que isso tem relação com o fato de que ele tem penetração maior no eleitorado que tem renda de até dois salários-mínimos. Há uma divisão do País que não é regional, mas por outras categorias. Antes de tudo econômica: quanto mais ricos, mais vota no Bolsonaro e quanto mais pobre mais vota em Lula. Desde 2018, surgiram outras duas divisões muito importantes: a divisão religiosa e a por sexo. Esta última já foi maior: as mulheres votam menos em Bolsonaro do que homens. A religiosa é importantíssima porque a posição de Lula entre católicos e a de Bolsonaro entre evangélicos se invertem na preferência. Esse tipo de divisão não é regional.
São clivagens que passam de forma
transversal pelo País inteiro?
Sim. Há igrejas católicas e evangélicas
em todos os lugares. Essa divisão surgiu em 2018 e tem a ver com a discussão
anterior sobre a divisão e não a polarização. Ele tem a ver como as
denominações evangélicas sentirem que deveriam ter uma maior representação
política do que têm, pois a atual não refletiria a presença evangélica na
população brasileira, o que não sabemos, pois o último censo é de 2010. Enfim,
isso tem relação com a ideia de uma divisão de mundos.
Há microrregiões, como o Pampa mineiro,
a Grande São Paulo e Zona da Mata de Minas, que se comportam como ‘swing
regiões’, sendo determinantes para a vitória de candidatos. Existe alguma
realidade específica dessas regiões para que elas tenham esse tipo de
comportamento de gangorra, dentro da lógica das morfologias distintas que
formam nosso País?
O fator mais importante que cola mais
com a posição regional é o corte econômico. Ele é o mais decisivo do ponto de
visto do comportamento eleitoral em termos regionais. Conta muito também quando
você tem um processo de reeleição, ou um processo de disputa aberta ou um
presidente que não concorre à reeleição, como em 2018. Isso muda muito porque,
quanto mais vulnerável a sua situação, mais se pensa o quanto custa mudar, qual
o preço que se está disposto a pagar por uma mudança de rumo no País. Esse é o
fator determinante. Quando você tem uma eleição aberta, sem um candidato
incumbente se reapresentando, você tem condições diferentes. Agora temos um
processo de reeleição e é isso que conta para a população mais vulnerável. Por
isso, vemos um relativo avanço do Bolsonaro nas populações mais pobres. Estamos
vendo os efeitos do Auxílio Brasil e de outros despejados pelo governo federal de forma
ilegal. Isso se dá por um caminho peculiar: a aprovação do governo
melhora. As pessoas que têm mais a perder estão pensando se vale a pena trocar
o presidente. Esse caminhão de dinheiro federal encontrou uma fortaleza
lulista, a memória de um governo em que as pessoas mais vulneráveis se sentiam
protegidas. Tanto é que o avanço do Bolsonaro se dá muito entre jovens, que são
aqueles que não têm a memória daquele período. Muito do que pode chamar de
‘swing regiões’ têm a ver com as condições da disputa. Impressiona que em uma
disputa reeleitoral, você consiga ter um candidato como Lula que alcance essa
população mais vulnerável. Isso só se explica porque a situação econômica dela
piorou muito durante o governo Bolsonaro e ela tem medo de que possa piorar
mais.
Essa divisão atual do País pode levar a
algum evento catastrófico?
Situações como essa, em que não se tem
a polarização democrática, mas a divisão de mundos em confronto, têm soluções
extremas, como guerras civis, que vem do fato de haver no mesmo território, na
mesma Nação e no mesmo País dois mundos que se opõem de uma maneira tão violenta,
que só uma guerra pode resolver. Não havendo a hipótese da guerra civil, você
tem as duas possibilidades que disse antes: a imposição de um mundo sobre o
outro com um governo autoritário e violento ou um mundo que propõe ao outro um
novo tipo de pacto que se mantém na democracia. No caso da proposta
progressistas, é precisa estender esse pacto para os 75% da população que
aceitam resolver seus conflitos dessa maneira. É preciso uma outra proposta de
democracia.
Quando o senhor fala de pacto, o senhor
pensa no Pacto de Moncloa (que permitiu a transição da Espanha franquista para a democracia, nos
anos 1970), por exemplo, ou seja, uma transição que consiga
reunir as forças políticas em um acordo sobre as regras do jogo?
Sim. Mas no caso do Pacto de Moncloa,
você tinha uma ditadura de 40 anos. Isso muda. Nós não estamos saindo de uma
ditadura. Estamos correndo o risco de nos tornarmos um País autoritário. E
fazer um acordo de saída de uma ditadura é tão difícil quanto fazermos um
acordo para uma democracia futura. Mas é o que precisa ser feito. Precisamos
trabalhar com as instituições que temos e com a fragilidade que a nossa
democracia tem depois de ter sido minada por quatro anos pelo presidente
Bolsonaro para produzir um pacto novo democrático.
Qual o papel do partido digital
bolsonarista na mudança do cenário de polarização para divisão do País?
Fundamental. O partido digital
bolsonarista é aquele que conseguiu consolidar a divisão. Isso tem muito a ver
com o fato de que, globalmente, onde tem democracia, a extrema direita foi a
que melhor soube utilizar o mundo digital para conseguir contornar os portões,
filtros e obstáculos representados pelo establishment democrático após a
segunda guerra mundial: a academia, a imprensa e o parlamento.
Houve uma crise das representações; a
do conhecimento, representada pela academia; a dos fatos, dada pela imprensa; e
a do poder, que se dava pelo parlamento, pela gazeta oficial? Uma crise dos
monopólios que cada uma dessas instituições tinha para lidar com essas
realidades. Vivemos uma espécie de novo renascimento, quando o monopólio do
saber deixou o castelo e o monastério e se democratizou após a invenção da
imprensa?
Temos essa crise de representação que não é só a representação política, mas da representação ampla porque o modelo de democracia que prevaleceu após a 2.ª Guerra Mundial era um modelo extremamente excludente. Você tinha uma ciência, que sempre se caracterizou por lutar contra o poder, que estava em conluio com o poder à medida que, para produzir conhecimento, ela precisava de financiamento estatal. Havia uma imprensa que se colocava como guardiã do sistema político e servia de anteparo ao sistema, impedindo que outras vozes se expressassem. E no próprio sistema político, aos poucos, os partidos, que nasceram como braços da sociedade dentro do Estado, passaram a se comportar como braços do Estado na sociedade. Esse grande acordo do pós-guerra foi explodido por essa nova sociabilidade digital, na medida em que as pessoas sentiram que tinham voz, que tinham meios e instrumentos para se expressar sem precisar passar por esses filtros todos: o dos partidos, o do parlamento, o da academia, o da universidade, o da imprensa e o da TV. Essa sensação de que é possível você construir outras formas de representação que não existiam antes é uma sensação que não foi captada por esse arranjo do pós-guerra. O sistema político, a imprensa e a academia continuaram a funcionar da mesma maneira. Até o momento em que a extrema direita, percebendo essa brecha, decide usá-la para mobilizar e organizar esse descontentamento, que veio junto com a maior crise econômica mundial que tivemos no século. Tivemos a convergência de uma nova sociabilidade, que é a digital, junto com uma crise econômica sem precedente. Isso produziu um tipo de insatisfação. Ao mesmo tempo, esse mundo digital se organiza em torno do algoritmo. Não é que o mundo digital atropelou as instituições existentes. Ele se combinou com elas. A mídia digital não substituiu a mídia tradicional. Elas estão em combinação. Só que ambas estão sob o império do algoritmo e este é justamente aquele que a extrema direita entendeu antes de todo mundo, que era o império do escândalo, do xingamento, pois era o império da luta pela atenção. Você precisa chamar a atenção e, para isso, quanto mais extremista e barulhento você for, melhor. A extrema direita entendeu isso de forma muito rápida – uma parte da esquerda também nessas revoltas democráticas que tivemos de 2011 a 2013 –, e foi a mais bem sucedida em transformar isso em vitórias eleitorais, coisa que nem sempre a esquerda conseguiu. Essa composição impõe um problema: como a extrema direita conseguiu usar essa novidade em seu favor, tanto em termos de mobilização social como eleitoral? Ela diz: o nosso projeto é muito evidente, é a imposição da a vontade de uma parte sobre a outra. Em 2018, eu disse que a eleição se havia tornado a arma que uma parte do eleitorado aponta para a cabeça da outra parte. É disso que estamos falando. E tem duas soluções: ou aumenta a inclusão paulatinamente ou teremos uma saída autoritária.
Nessa eleição a esquerda também formou
seu partido digital?
Não. Nem de longe. No Brasil, não.
Mas quando a campanha de Lula agrega
uma figura como André Janones, isso não é mimetizar o que a direita fez como
solução? Se o jogo é no octógono, eu vou para ele dar porrada também?
Essa não é bem uma solução, é um
band-aid eleitoral, porque um partido digital é algo que se constrói ao longo
de anos. É um processo longo. Bolsonaro começou a digitalizar a vida política dele
dez anos atrás. Foi uma construção paulatina. Ele digitalizou e foi
nacionalizando sua figura política, ampliando o partido digital. Em 2018, as
forças progressistas não entenderam que essa construção é demorada e que ela,
necessariamente, abala formas tradicionais de organização partidária. Uma
das dificuldades do PT para se tornar um partido digital é justamente o fato de
que isso desequilibraria a correlação de forças internas do partido e da
federação em que ele está. Há uma luta entre a forma analógica e outra digital
de se fazer política. Não necessariamente um partido digital é igual ao partido
digital bolsonarista. Não é necessário que se utilize o mesmo tipo de tática e
de ausência de limites, mas tem de brigar pela atenção. Tem de ser capaz de
entender essa lógica da atenção e responder a isso. Vamos pegar o caso da
eleição deste ano. Por que o bolsonarismo teve esse resultado extraordinário na
eleição para deputado, senador e governador? É que você teve uma conjunção de
uma forma tradicional de fazer política, representada pelo Ciro Nogueira e pelo
Valdemar da Costa Neto, com o partido bolsonarista. É como no caso da mídia.
Não é que a tradicional se opõe à digital. Elas se combinam. Mas as duas estão
sob o império do algoritmo. Nem sempre elas convergem. Como no caso de
Brasília, onde Damares Alves se apôs à Flávia Arruda.
Ganhou o partido digital bolsonarista contra a forma tradicional. A candidatura
Lula não conseguiu fazer essa combinação porque não tem um partido digital.
Hoje nós temos uma luta entre um partido tradicional e um presidente que
conseguiu fazer uma aliança entre o partido tradicional e o partido digital.
Quando a gente pensa nesses termos, o deputado André Janones busca ser a
contrapartida digital para o PT, mas sem a mesma penetração e coordenação,
porque não foi uma coisa construída ao longo de anos, não foi algo orgânico,
como no caso de Bolsonaro, que sai de uma base nas Forças Armadas e
policiais e começa uma penetração no eleitorado evangélico e, depois, no agro
de forma progressiva, com uma organização e um engajamento cada vez maiores.
O partido digital foi fundamental para
a extrema direita hegemonizar as forças de direita no país?
Exatamente. Porque nós estamos nessa
divisão de mundos e não em uma polarização, porque a direita brasileira está
hegemonizada pela extrema direita. Para a democracia sobreviver, se o pacto
progressista for proposto e conseguir incorporar uma parcela muito maior da
população, ele vai ter de produzir uma direita que seja capaz de disputar com a
extrema direita a hegemonia do campo da direita.
Essa direita poderia ser representada
por um desses partidos tradicionais, como o Novo, o União ou o Centrão e seus
partidos? Ou essa direita teria de se organizar digitalmente para disputar com
Bolsonaro?
Esse é o grande problema. A direita tradicional não consegue disputar com Bolsonaro porque ela não é digital. No mundo digital existem dois tipos de partido: o partido plataforma e o partido digital. E existem os partidos tradicionais, que tentam se digitalizar. Sabemos que o sucesso deles para isso é baixo. É preciso encontrar uma composição como Bolsonaro encontrou. Você tem de fazer isso com pessoas que moram no mundo digital: a figura central é a do influencer. São eles que podem exercer uma função com essa e, a partir do campo democrático da direita, fazer alianças com formas tradicionais da direita. Dos partidos tradicionais da direita não dá para sair uma disputa com Bolsonaro, pois eles perderam as capacidades de organização, engajamento e participação que têm um partido digital. Para que tenhamos um novo arranjo democrático, precisamos ter uma esquerda e uma direita democráticas que se aliem para isolar a extrema-direita.
Dentro desse ponto de vista foi um erro tático gigantesco fazer o que o PT fez em São Paulo ao priorizar ataques a Rodrigo Garcia em vez de Tarcísio de Freitas no primeiro turno da eleição para governador? É como atacar Kerensky em vez de atacar o general Kornilov, em 1917, na Rússia?
(Risos) Essa é boa. Eu diria que em São
Paulo houve um raciocínio eleitoral clássico.
Oportunista?
Um raciocínio eleitoral clássico. Com
os dados de que eu disponho, a chance de eu vencer Tarcísio é maior do que
vencer Garcia. É uma decisão que não considerou o contexto nacional do ponto de
vista dos riscos para a democracia que representava a ida de Tarcísio para o
segundo turno. É claro que, ao mesmo tempo, correspondia a uma nacionalização
da campanha, priorizando a eleição do Lula. Como a gente viu, não funcionou.
E Kornilov tomou Petrogrado... No
Brasil, no passado tínhamos um antagonismo: getulismo e antigetulismo.
Atualmente temos dois antagonismos: antipetismo e antibolsonarismo como
definidores de identidades das pessoas e como forma de expressar suas visões de
mundo. É possível dizer que o momento atual tem essa singularidade?
É por isso que não é polarização e sim divisão. Quando você tem divisão, você tem dois campos mesmo. Eles têm referencias. O Bolsonaro é referência para um dos campos, como Lula é referência para o outro. Esses campos não se definem só por oposição a outro. Eles têm definição positiva. Eles se definem em termos de valores e expectativas em relação ao mundo e ao futuro. temos de fato uma divisão. Para que a gente possa voltar a uma reorganização democrática, a gente precisaria voltar para algum tipo de polarização.
É preciso superar essa divisão, que pode paralisar a República?
Sim, essa divisão pode virar guerra
civil, ela pode virar ditadura e pode levar a consequências catastróficas, como
você disse. Para que ela seja superada, é necessário que a forma que a
democracia tiver no futuro faça sentido para a maioria das pessoas. A forma
como ela tem hoje não faz.
É a ‘peemedebização’ que não faz mais
sentido?
Para lá a gente não pode voltar, pois
foi justamente o que produziu e deu combustível à extrema direita, pois, no
fundo, o que ela diz é que todos são iguais. Pois o fato de que não importa
quem ganha a eleição, todos os demais partidos estarão com aquele que ganhou, é
que alimenta a ideia de um esquema combinado, de que o sistema político se
protege e é infenso à sociedade.
É preciso que a diferença fique clara à
sociedade para que ela sinta que existe a possibilidade de alternância real de
poder?
Precisa ter uma oposição que tenha recursos para isso, de esquerda ou de direita democrática, mas, enquanto o bolsonarismo tiver a força que ele tem, isso não é possível, pois estamos em uma situação limite. Estamos em emergência democrática. Caso Bolsonaro ganhe, entraremos em resistência democrática.
Ou seja, ou se governa pela força ou
pelo consenso? O bolsonarismo representaria uma saída de força enquanto uma
saída progressista seria uma saída de produção de um novo consenso?
Sempre governar implica uma mistura de
força e consenso, mas num caso a força é maior que o consenso e no outro o
consenso é maior que a força.
As pessoas acham que governar pelo
consenso significa governar pela corrupção. Como não se consegue facilmente o
consenso, opta-se por instrumentos como o transformismo, a cooptação de lideranças.
O que um futuro governo, que não busque a saída da força, precisa fazer para
que a produção de consenso não seja entendida pela sociedade como corrupção?
Primeira coisa: o consenso não é sobre
conteúdos determinados ou políticas determinadas. O consenso é sobre as regras.
Nós não temos hoje o consenso na sociedade sobre as regras de convivência
política. Perdemos o consenso sobre as regras segundo as quais vamos resolver
os nossos conflitos. Não significa que os conflitos vão desaparecer. Pelo contrário:
na democracia os conflitos devem aparecer cada vez mais. O problema é como
resolvê-los, que tipo de regras você aceita. Quando Bolsonaro ataca as urnas
eletrônicas, ele está atacando um elemento basilar do acordo: que é aceitar o
resultado que é dado por esse sistema. É um sinal da divisão de mundos, que não
é mais polarização. Em um eventual governo Lula, isso significaria não voltar
ao modelo de 1994-2013, não produzir uma supercoalizão, uma supermaioria
congressual, como a gente teve com 70%, 75% do parlamento. Isso fragiliza a
oposição, que fica sem dentes e, no fundo, você coloca a oposição dentro da
coalizão de governo, o que a torna interna e dificulta cada vez mais a
governabilidade, que foi o que aconteceu naquele período. É preciso uma coalizão
mais enxuta e aguerrida.
O modelo não seria o italiano do
pós-guerra, que isolou os comunistas de um lado e os neofascistas do outro?
Esse modelo seria inviável?
Seria inviável porque você tem o
bolsonarismo muito forte, tanto em termos de organização e mobilização como no
Congresso. A médio e a longo prazo, a esquerda e a direita democrática devem
construir um acordo para isolar a extrema direita. Vamos ter de conviver com a
ameaça extremista bolsonarista durante muito tempo. Se Lula construir uma coalizão
com uma maioria de 55%, isso favorece o surgimento de uma direita não
bolsonarista que vai enfrentar o bolsonarismo para tentar ter a hegemonia sobre
o campo da direita.
Seria preciso reconstruir o PSDB?
Trocando em miúdos. É preciso
reconstruir, mas em termos muito diferentes. Como se manifesta a hegemonia do
bolsonarismo no campo da direita? Eles se identificam como conservadores.
Acontece que o conservadorismo não é sinônimo de extrema direita. E toda a
propaganda bolsonarista é justamente para dizer que o conservadorismo e a
extrema direita são a mesma coisa. Não adianta o campo progressista chamar esse
campo de conservador, pois é justamente o que a extrema direita quer. Você está
reforçando a base ideológica do bolsonarismo.
Para que a democracia seja funcional no
País é preciso reconstruir uma direita democrática?
Sim. É preciso reconstruir a direita
democrática e, sobretudo, que ela consiga a hegemonia do campo da
direita. Em todos os lugares onde a democracia se implantou após a 2.ª
Guerra Mundial havia um acordo implícito entre a esquerda e a direita
democráticas de se isolar a extrema direita. Aqui no Brasil não só esse acordo
não aconteceu como a extrema direita chegou ao poder.
Para controlar o arbítrio do Palácio e
as armadilhas estendidas aos súditos, é que a República impõe a transparência
aos governos a fim de que possam ser controlados pela cidadania. Nesse sentido,
o orçamento secreto seria o índice de corrosão da democracia no Brasil, uma
fratura nela ocorrida durante o governo Bolsonaro? O fim dele é fundamental
para o reestabelecimento do vigor democrático no País?
A reposta é inequivocamente sim. Talvez, o ícone da degradação da democracia brasileira seja o orçamento secreto, pois, como é possível que o dinheiro público seja destinado a obras sem nenhuma transparência? É uma parte fundamental da República e da República democrática, em que você tem o controle do orçamento pela população. Esse não é o único sinal de degradação sério. Temos outros, como na própria campanha eleitoral, onde não foi discutido nenhum dos temas centrais para a vida das pessoas. Normalmente, em um processo eleitoral estamos diante de um presidente que está apresentando um balanço do que fez nos últimos quatro anos. Fizemos de tudo, menos discutir o que o presidente fez nos últimos quatro anos. Porque você tem uma estratégia amplificada pelo partido digital bolsonarista de atordoamento. Você bombardeia as pessoas o tempo todo de tal maneira que elas não conseguem sequer pensar. Elas ficam atordoadas pelas bombas que caem forma de fake news e vídeos, que impedem um debate público decente. Não ter um debate público minimamente estruturado é um sinal de degradação extremamente grave. Quando você vê os debates eleitorais, pensa: não é possível que essa seja a democracia do País. Não é possível que um ex-presidente e um presidente no exercício do mandato estejam discutindo nesses termos e sobre esses temas. Discute-se tudo, menos sobre o que realmente importa. A ideia é de que quem está concorrendo é um inimigo – e não um adversário – e precisa ser abatido. Isso muda completamente a ideia. Você diz: a democracia é uma farsa. É o que o bolsonarismo está dizendo. A extrema direita não produz isso sem ter base na realidade. No fundo, era uma democracia muito pouco democrática, mas destrui-la não vai fazer com que ela se torna mais democrática. É esse o ponto mais importante de qualquer projeto autoritário: qualquer projeto autoritário é feito em nome da liberdade. Sempre. Essa é maneira por meio da qual você diz às pessoas: você vai ter liberdade. E suprime a liberdade ao realizar o seu projeto autoritário. Esse filme a gente já viu.
Muito boa a entrevista.
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