Valor Econômico
É sob o regime democrático que se pode
alcançar desenvolvimento sob a ótica social e econômica
Há muito tempo, talvez desde a campanha das
“Diretas Já”, a palavra democracia não foi tão falada, escrita, lembrada e
exaltada no país com sinais de alerta e doses de preocupação. A defesa do
regime democrático tem crescido desde o início desta temporada eleitoral a
ponto de ganhar recentemente demonstrações de apoio concreto ao candidato Luiz
Inácio Lula da Silva por pessoas influentes, intelectuais e representantes de
segmentos da sociedade civil, que até então sequer imaginavam a possibilidade
de votar no PT.
A percepção de que há muito mais em jogo do
que uma simples disputa eleitoral falou mais alto para aqueles apoiadores de
última instância, acentuando a polarização não entre um partido de esquerda e
outro de direita, mas entre o bem e o mal. Desde o início, parecia claro que a
chamada terceira via teria poucas chances de emplacar e o que se vê nesta reta
final é um esforço descomunal de muitos formadores de opinião no sentido de
evitar a reeleição de Bolsonaro, encarnado na figura do mal que ele mesmo
construiu ao longo do governo.
O presidente nunca deixou de dar indicações claras de descaso relacionadas à educação, saúde, segurança, cultura e meio ambiente, mas foram as suas declarações sobre o processo eleitoral, a configuração da Suprema Corte de justiça e os meios de comunicação que chamaram a atenção para os riscos de o país caminhar para uma autocracia.
A rigor, as falas de Bolsonaro estão dentro
do script adotado pela maior parte dos autocratas que nas últimas décadas têm
se perpetuado no poder através da captura de mecanismos típicos da democracia,
como o voto direto. A mudança de regime político é feita aos poucos. Ao invés
de tanques nas ruas, censura explícita, prisão e tortura em massa dos
adversários políticos, características das autocracias “tradicionais”,
utiliza-se uma retórica calcada na disseminação do medo e em ameaças com apelos
populistas.
Como reconhecer um autocrata legalista em
ação? Kim Lane Scheppele, catedrática de sociologia e de assuntos
internacionais da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, traça o
perfil: “Deve-se primeiramente suspeitar de legalismo autocrático em um líder
democraticamente eleito quando ele lança um deliberado e sustentado ataque às
instituições cuja função é colocar em xeque suas ações ou às regras que lhe
impõem limites e deveres, mesmo quando ele age assim em nome do mandato
democrático”, diz ela no artigo “Autocratic Legalism” (Legalismo Autocrático),
um dos textos de referência para o entendimento do fenômeno que tem ganhado
força neste século.
“Os novos autocratas não apenas se
beneficiam da crise de confiança nas instituições públicas; eles atacam os
princípios básicos do constitucionalismo liberal e democrático porque querem
consolidar poder e permanecer na liderança pelo maior tempo possível”. Para
atingir o objetivo, valem-se da aparência de que tudo transcorre dentro das
quatro linhas da Constituição, enquanto usam o mandato para derrubar os
obstáculos que os impedem de governar com autonomia, sem prestação de contas nem
riscos de serem investigados. Quando obtêm uma soma confortável de apoios no
Congresso ou no parlamento, o processo de reversão definitiva do regime
torna-se mais seguro e mais rápido.
Como se sabe, não são poucos os líderes que
têm recorrido ao legalismo autocrático para permanecerem no poder via eleições
diretas sob o manto de dispositivos convenientes introduzidos no texto da
Constituição. Desde Putin na Rússia e de Chávez/Maduro na Venezuela, os
exemplos têm se propagado com Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia e Duda na
Polônia. Para os interessados, o processo de confisco da democracia está bem
explicitado no texto “O Caminho da Autocracia: estratégias atuais de erosão
democrática”, de estudiosos do Centro de Análise da Liberdade e do
Autoritarismo (LAUT) - laut.org.br/o-caminho- da-autocracia/
Apesar da farta documentação das técnicas
usadas pelos autocratas “modernos”, a percepção do modus operandi e dos riscos
associados à mudança do regime político não está disseminada na sociedade
brasileira nem mesmo entre os acadêmicos. Em nome do liberalismo econômico, há
uma resistência de importantes segmentos das áreas empresarial e financeira em
aceitar os direitos sociais garantidos na Constituição e que só se consegue
manter sob um regime democrático pleno sujeito ao escrutínio de instituições
independentes.
No fundo, existe uma dicotomia entre a
ideia de que a economia evolui melhor quanto menor for a interferência do
Estado e os princípios do Estado de Direito liberal que garantem liberdades e
direitos individuais para todos. Por exemplo, o objetivo de erradicar a pobreza
e reduzir as desigualdades sociais, inscrito na Constituição, só pode ser
alcançado com medidas de forte intervenção do governo na economia.
Quanto mais predominante for a defesa do
liberalismo ou neoliberalismo econômico, maior será o eco favorável ao
autocrata de direita que opera para ampliar o poder de decisão e de fazer
cumprir, sem oposição, medidas de apoio a grupos específicos em detrimento dos
interesses da sociedade. O refrão “deixar passar a boiada” vai nessa linha. Nas
autocracias de esquerda, as liberdades individuais são comprometidas por um
Estado onipresente que direciona a iniciativa privada em prol da massa
assalariada e subordina a economia de acordo com os interesses de integrantes
do governo.
No entanto, é sob o regime democrático que
se podem alcançar níveis de desenvolvimento abrangente não apenas sob a ótica
social, mas econômica, tendo em vista a possibilidade de expansão das
oportunidades individuais que levam ao crescimento do mercado em geral, do
consumo e da renda, em benefício de um maior contingente de pessoas e de
empresas.
*Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin - Comunicação Inteligente e autora do livro “A Real História do Real”.
Ótimo artigo.
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