quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Nicolau da Rocha Cavalcanti - Um azar digno de revolta

O Estado de S. Paulo

Não faria mal um pouco de realismo – e menos condescendência com nossa realidade particular – para notar desigualdades e privilégios vigentes.

Imaginemos a seguinte situação. Nossos filhos vão a um acampamento de férias extraordinário. Há aulas de música, desenho e teatro, cursos de inglês e francês, palestras com profissionais apaixonados por seu trabalho. A alimentação é balanceada. O local dispõe de áreas verdes, cinema, quadras esportivas, piscina e uma biblioteca incrível. Não era barato, exigiu sacrifício, mas achamos que valia a pena.

Ao buscarmos os nossos filhos, descobrimos que o acampamento proporcionou tudo o que havia prometido, mas não a todas as crianças. No primeiro dia, houve um sorteio e metade dos participantes não teve acesso a nenhuma das atividades previstas, a nenhum dos lugares espetaculares, a nenhuma comida saudável. Essas crianças dormiram noutro pavilhão e, durante o dia, ajudaram a organizar as atividades, a cozinhar, a arrumar as camas, a limpar os banheiros. No final do dia, tinham um tempo de descanso, no qual podiam ver televisão.

Ficamos indignados. “Meus filhos não assistiram às aulas? Não tiveram acesso aos locais das atividades? Dormiram numa casa diferente daquela das fotos do folheto do acampamento? E ainda tiveram de trabalhar?”

“Sim”, confirma o coordenador do acampamento. “Foi o que ocorreu”, diz. “Além disso, no último dia, houve uma prova com todas as crianças e seus filhos não foram bem. Eles ficaram entre os 25% piores de todo o acampamento.”

Estamos, agora, explodindo de raiva. “Que maluquice é essa? A mesma prova para crianças que tiveram acesso a aulas e atividades completamente diferentes?” No entanto, o coordenador está impassível. Não consegue compreender por que teriam de ser provas diferentes. “São crianças da mesma idade”, diz. “E não houve nenhuma discriminação na divisão do primeiro dia. Foi por sorteio. Todos tiveram a mesma chance de participar.”

Por último, como se começasse a entender nossa revolta, o coordenador menciona um aspecto positivo do acampamento. “Apesar da divisão inicial que tivemos de fazer por escassez de infraestrutura e de recursos humanos, todas as crianças se comportaram muito bem. Não houve revoltas. Elas conviveram em harmonia. É preciso dizer: seus filhos não se saíram bem na prova, mas foram exemplarmente obedientes, cumpriram, sem reclamar, as tarefas que lhes foram encarregadas.”

Certamente, tudo isso seria um grande pesadelo. Não é possível que tenha ocorrido tamanha loucura, tamanha injustiça, tamanha insensibilidade. Nossos filhos passaram um mês em condições desumanas e limitadoras por causa de um maldito sorteio?

A situação acima é fictícia, mas – não nos enganemos – todos passamos por um sorteio ainda mais drástico quando nascemos, que afeta não apenas alguns meses ou anos, mas define vidas e famílias por gerações. O que seria se esse acampamento tivesse acontecido no século 18 e, desde então, os descendentes daqueles primeiros desafortunados no sorteio nunca tivessem acesso às melhores oportunidades de seu tempo?

É preciso rever nossa compreensão sobre mérito, igualdade de oportunidades, ações afirmativas e outras políticas sociais inclusivas. Em especial, precisamos de um novo olhar sobre o movimento negro e a luta dos povos originários. Suas reivindicações não geram um “conflito artificial”, como se vivêssemos numa sociedade com equidade racial que passou a ser injustamente atacada, nos últimos anos, por “ideias estrangeiras”. Normalizamos por séculos um tratamento desigual baseado no nascimento.

Não faria mal um pouco de realismo – e menos condescendência com nossa realidade particular – para notar as desigualdades e os privilégios vigentes. Recentemente, descobri que um tataravô meu, Joaquim de Almeida Ramos, o Barão de Almeida Ramos, formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em 1859. Outro tataravô, Manoel do Nascimento Machado Portella, o Conselheiro Portella, formou-se na Faculdade de Direito de Olinda em 1855, tendo sido depois, em 1892, diretor da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Ou seja, na minha família, são, ao menos, seis gerações com acesso ao ensino superior. Não é apenas mérito, nem apenas sorte, que meus quatro irmãos e eu tenhamos estudado em universidades públicas – o que não significa desmerecer a prioridade vital que meus pais, não sem sacrifício, deram à educação de seus filhos. Mas, ao longo desses mais de 160 anos, quantas famílias foram privadas dessa mesma oportunidade? Quantas gerações viram reproduzir um sistema que fixava seu lugar social num patamar, inteiramente diferente, de liberdade, de autonomia, de reconhecimento?

É sempre emocionante ouvir “sou o primeiro da minha família a fazer curso superior”. Devemos comemorar cada uma dessas histórias, mas precisamos multiplicar essas histórias. A igualdade de oportunidades é ainda uma grande mentira. Muitas pessoas continuam sem acesso, durante toda a vida, a condições mínimas de desenvolvimento pessoal. Até quando repetiremos o discurso do coordenador do acampamento? Não podemos mudar o passado, mas podemos e devemos mudar o futuro.

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