Folha de S. Paulo
Nem todas as pessoas entendem a democracia
de uma mesma forma
O que leva uma parcela de eleitores que se
manifestam favoráveis à democracia a
escolherem governantes autoritários, que desprezam valores democráticos e
atacam sistematicamente as suas instituições, como vem ocorrendo em países tão
distintos como Estados
Unidos, Hungria ou
Brasil?
Nada menos que 79% dos brasileiros, conforme o último levantamento realizado pelo Datafolha, apontam a democracia como a melhor forma de governo. Para apenas 5%, a ditadura é melhor regime. Como explicar, então, um apoio significativo a um candidato abertamente autoritário como Bolsonaro?
Duas hipóteses podem ajudar a compreender
esse aparente paradoxo. A primeira é de natureza conceitual. Nem todas as
pessoas entendem a democracia de uma mesma forma. Para a tradição liberal e
também social-democrata, embora as eleições sejam
o elemento central do regime democrático, o exercício do poder político deve
estar submetido a um sistema de freios e contrapesos, para que não se torne
arbitrário, devendo ainda ser exercido em conformidade com os direitos
fundamentais, para que todos sejam tratados com igual respeito e consideração.
Para os populistas, no entanto, a
democracia se resumiria à escolha de um líder que se identifique com os
sentimentos da maioria. Mais do que isso, o sistema de freios e contrapesos e
mesmo os direitos fundamentais devem e podem ser removidos ou subjugados,
quando constituírem obstáculos à realização da vontade da maioria.
Creio que uma fração significativa dos
eleitores brasileiros, que antes não se importavam muito com o regime político
ou que se frustraram com o modelo de democracia adotado em 1988, se deixaram
seduzir por uma concepção insustentável de democracia populista. Por essa
razão, esses eleitores não veem nenhuma contradição em se declararem democratas
e ao mesmo tempo apoiarem um candidato que despreza os valores democráticos e
detona suas instituições.
Mas essa hipótese sozinha não explica por
que parcela significativa dos eleitores, que além de democratas também se veem
como pessoas de bem, aceitam votar em alguém destituído das virtudes mais
básicas a um governante em um regime democrático, como a demonstração de
empatia pelo sofrimento alheio; alguém que pratica o desrespeito às leis como
método de governo; assim como alguém que despreza e discrimina a maioria da
população, composta por pobres, mulheres e negros.
Creio que a rompante polarização, que
substitui a razão e o diálogo pela crença cega e o conflito, pode ajudar a
explicar a segunda parte desse paradoxo. Não se trata de uma polarização
meramente política ou ideológica. Mas sim de uma polarização visceral e
assimétrica, forjada no contexto de grupos de identidade eletiva, que mobilizam
o medo e a hostilidade em relação àqueles que não pertencem ou discordam das
visões do grupo.
Nesse tipo de polarização, alavancada pelo
líder populista, a afiliação ao grupo passa a ser determinante das escolhas
individuais, mesmo em assuntos que transcendem os interesses do grupo,
subvertendo o senso comum, que nos ajuda a separar o certo do errado, o decente
do indecente, a verdade da mentira.
Que a responsabilidade e o bom senso de uma
maioria plural, que abraça uma concepção mais liberal e generosa de democracia,
prevaleça nas urnas no próximo dia 30.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
O ser humano é contraditório em si.
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