Há pouco mais de uma semana parecia à
grande maioria dos analistas (incluído este que vos escreve) que estava em
curso uma onda pelo “voto útil” que poderia levar à vitória de Lula no primeiro
turno. Muitos admitiam que a hipótese se tornara provável, alguns mais afoitos
a consideravam quase certa. Secundei aqueles que apenas a consideravam mais
possível do que antes e resumi o que via, no artigo do dia 01.10, numa
disjuntiva: outubro breve ou outubro largo. Argumentei sobre vantagens e
desvantagens das duas opções - inclinando-me a preferir a do outubro largo – e
sobre a lucidez de uma atitude positiva diante de qualquer desfecho que o
eleitor soberano determinasse para o turno do dia 2.
Pois bem, deu outubro largo e cá estamos, a meu ver, ainda em busca da atitude mais positiva possível diante dessa realidade que a democracia engendrou. Mais necessário ainda do que há uma semana retornar à questão de Luiz Sergio Henriques, que mencionei no artigo passado: “Não se trata só de ganhar eleições, mas de reconstruir a esfera pública. Será possível ter uma normal dialética democrática com uma extrema-direita capaz de mobilizar, pelo que parece, 30 ou 40% dos eleitores em estado de insubmissão latente?”. Abertas as urnas do primeiro turno e embora ainda esteja em aberto a disputa principal, leio com cada vez mais frequência análises que dizem não à pergunta de Luiz Sergio, partindo da premissa de que sim, a extrema-direita mostrou-se capaz de mobilizar tantos eleitores, que se formou uma gigantesca bancada bolsonarista na Câmara e teria mobilizado até a maioria do eleitorado, a ponto de eleger uma maioria bolsonarista no Senado. São descrições mais ou menos próximas de um apocalipse, absoluto ou relativo, conforme a ponderação do analista. Mas como apocalipse e relatividade não combinam, acaba que, nessas análises, em diferentes graus, qualquer nuance morre no veredicto de que o eleitor brasileiro autorizou uma mais que provável destruição da nossa democracia.
Os
resultados das eleições para o Congresso e para a maioria dos governos
estaduais - inclusive para os três estados mais importantes da federação -
trazem-nos, sim, como fato insofismável, uma vitória da direita e da
centro-direita. Usemos esses dois termos para que a discussão prossiga. Porém,
sem nos dispensar de concretizá-los através de ideias mais precisas. Para tanto
é preciso responder que dose de Bolsonaro há nessa vitória e até que ponto
devemos chamar bolsonarismo àquilo que se formou aquém ou além do mito. Basta
adicionar um adjetivo ao lado do substantivo abstrato ou será mais prudente
evitar recorrer a esse termo fácil que, exatamente por ser fácil, pode ser
errôneo?
A
Câmara recebeu, é verdade, uma dose extra de bolsonarismo. Isso ajuda a
explicar uma renovação de 44% naquele colegiado, o que, aliás, desmente
previsões peremptórias de que o fundo partidário e as
regras
eleitorais novas garantiriam uma altíssima taxa de reeleições. A política
"fluida” que o bolsonarismo representa não virou suco nas mãos do centrão.
Prefiro
usar aqui um adjetivo menos radical do que o “líquido”, de Zigmut Bauman, que
foi aventado, de modo instigante, por uma amiga jornalista, Ana Cecília
Andrade, em conversa recente, da qual tiro proveito desde o artigo da semana
passada. Vi hoje que Marcelo Tognozzi usou o mesmo insight num artigo no Poder
360, aplicando-o a um tema (as pesquisas de intenção de voto e seus supostos
“erros”) que não é meu objeto aqui. Converso com o insight de Ana Cecília para
tratar de efeitos atuais do modo pelo qual a extrema-direita mundial serviu-se de
um populista do antigo “baixo clero” da política brasileira para atiçar valores
reacionários que dormiam em nossa sociedade, sem acesso à esfera política,
graças a uma consistente moderação centrista do nosso sistema político
democrático. O descentramento desse sistema, após uma série de eventos
tendencialmente disruptivos ocorridos no rescaldo da não resposta da elite
política às manifestações de 2013, propiciou o encontro de um mito de vocação
doméstica com valores de um movimento internacional. Irrompeu então o
bolsonarismo, usando a alcunha genérica de “nova política”, usada também por
movimentos de outras naturezas. A princípio bicho solto, primário, a política
fluida do bolsonarismo vem sendo até aqui contida por uma reação sistêmica que
se fez valer desde as eleições municipais de 2020. Mas está viva e prorroga a
vigência de suas ameaças à democracia, feitas por dentro mesmo do sistema de
representação política. Como movimento antissistêmico que é, terá pé também no
parlamento, onde não ficará invisível.
O
Congresso eleito não difere, essencialmente, do atual. Para tentar prever sua
dinâmica, penso que boa chave é essa da relação da política “sólida” das
instituições (poderes do estado, dos orçamentos, das políticas públicas, dos
partidos, da representação política, da imprensa, interesses sociais e atitudes
permanentes e conflitantes, dos valores e da tradição política) e a política
fluida do puro movimento, das narrativas imediatas, emoções fortuitas, que nega
o conhecimento social acumulado e experiências coletivas; política de valores
desprovidos de passado ou que ao passado acenam como fetiche; política de
factoides e fake news, de voluntarismo, individualismo narcisista e
identitarismo sem peias.
Esse
tema da política fluida é dos mais interessantes no contexto aqui comentado.
Vejo que de fato há reação do sistema político e das instituições a essa
lógica. Mas a fluidez não cessa, pois reside na sociedade. O voto numa segunda
safra de bolsonaristas pops e "temáticos" foi, no último domingo,
contrapartida ao voto produzido pelo orçamento secreto. São dois movimentos que
se interpenetram. Os bolsonaristas de segunda safra juntam-se àqueles da
primeira que se turbinaram eleitoralmente e estruturalmente no governo. E as
tropas de Valdemar Costa Neto, Ciro Nogueira e Artur Lira incorporam algo da
política fluida ao seu repertório retórico. Algo do movimento primário se
institucionaliza e algo que era tradição institucional se desestabiliza.
Interessante
é que os dois fenômenos ocorrem no interior do que se pode chamar de
"grande direita". São parceiros conflitivos e o desfecho do segundo
turno definirá se prevalecerá, entre eles, parceria ou
conflito.
Com Lula, a banda sólida do centrão terá opções de animação na política
doméstica; com Bolsonaro, pode virar suco e diluir-se no movimento ideológico
poderoso da extrema-direita mundial.
Daí
não ser possível concluir, automaticamente, que a extrema-direita terá
hegemonia sobre o conjunto da direita (ainda menos sobre a centro-direita
moderada). Isso foi o que se deu, na prática, de 2019 a 2022, mesmo que
aparências, em alguns momentos do quatriênio, indicassem coisa diferente. O
resultado do segundo turno pode aprofundar o processo de fluidificação
política, como lhe dar nova direção, pela qual, no limite, surja, afinal, uma
direita mais consistente, dentro dos marcos da democracia. Sem que para isso a
extrema-direita desapareça ou se torne socialmente ou eleitoralmente
irrelevante. A inclinação do eleitorado à direita foi tal que cabem, dentro
dela, diferentes florações.
O
desfecho do segundo turno presidencial é uma das variáveis decisivas para haver
ou não fluidificação (ou liquefação) democrática da direita no Brasil. A ele
está associado o movimento, de desfecho incerto, que pode associar ou opor o PL
(hegemonizado pelo bolsonarismo, mas não totalmente identificado com ele) e o
PP de Artur Lira e Ciro Nogueira. Se ocorrer, a fusão PP/União Brasil, proposta
por Lira, ainda na véspera do primeiro turno das eleições e com o olho na sua
reeleição para a presidência da Câmara, será ruim para o já combalido centro
democrático, que assim perderá a chance de se articular com o União Brasil.
Mas, por outro lado, quer dizer que esse possível novo partido pode disputar a
hegemonia da direita com o PL. Essa tende a ser uma disputa interna a um
segundo governo Bolsonaro, se houver a reeleição. Caso vença Lula (e nunca é
demais lembrar ser esse o cenário mais provável) a fusão pode deixar de ser um
caminho, porque União e PP poderão ter diferentes rotas de negociação com um
governo que expressa a tradição democrática da política sólida, a qual nada tem
a ver com política isenta de surpresas e impurezas. A vitória de Lula será
sinal de que o sistema político reagiu. Trocando em miúdos, com Lula, a
política fluida perderá espaço em relação ao que hoje já tem. Com Bolsonaro,
manterá ou ampliará seu espaço, a depender do que prevaleça na luta interna da
direita.
Os
problemas para que se forme uma frente resistente da política sólida não se
resumem à direita do espectro político. Contam também a estagnação intelectual
e moral da esquerda, que parece sobreviver num mundo antigo. E a incipiência do
centro democrático, que só agora deu, com a candidatura de Simone Tebet, sinais
para o futuro, que são de uma possível reanimação, após a devastação de 2018.
É
verdade que a direita derrotou o centro e que daí pode nascer um partido de
direita explícita, embora distinta do bolsonarismo. Aqui também, mais uma vez,
o desfecho da eleição presidencial será decisivo. É crucial saber se será Bolsonaro
ou Lula quem negociará com Lira na Câmara e com alguém de peso no Senado, que
certamente será Rodrigo Pacheco, se Lula vencer, mas que não se pode ainda
dizer quem será, se houver reeleição de Bolsonaro. O futuro do centro
democrático está também amarrado a isso, daí a acuidade e amplitude de visão
demonstradas pelo movimento de Simone Tebet em direção a um apoio decidido a
Lula no segundo turno. De fato, não se trata de adesão, mas de passo consciente
de grande política, dado por uma liderança emergente de um campo cuja
reanimação ela representou na
campanha
do primeiro turno com o efeito admirável de uma flor de lotus. O reconhecimento
público de Lula desse fato e do papel positivo da campanha de Simone tem a
força da assimilação realista e democrática do voto popular, pela qual o
segundo turno deve ser acolhido.
Frisei,
desde o artigo da semana passada, a relevância política do segundo turno da
eleição presidencial como leito de celebração de um amplo pacto pela
democracia, assim como assinalei, parágrafos atrás, o papel decisivo do
desfecho dessa eleição para o equacionamento prático da relação entre os
poderes da República, hoje mais complexa e delicada do que foi em qualquer
momento, desde a vigência da Carta de 88. Quando a campanha de Bolsonaro alega
o avanço da direita nas eleições legislativas como sinal de que sua reeleição
traria a paz entre governo e congresso oculta o que essa paz pode representar
de guerra que dois poderes respaldados numa mesma maioria eleitoral poderão
mover contra o Judiciário e, consequentemente, contra a Constituição da qual
ele é guardião. É fácil vislumbrar um script húngaro ameaçando converter perigo
em realidade apesar da abissal distância que, felizmente, nos separa da
Hungria, ou da Turquia, como experiência institucional e cultural de
democracia. Mais uma razão para não ver o comportamento do Congresso eleito
como variável independente da eleição ainda em aberto.
Mas
por outro lado, para que meu próprio argumento não viaje na maionese, convém
não cair no extremo oposto, que seria superestimar o resultado da eleição
presidencial como se ele pudesse definir se teremos, ou não, democracia após o
dia 30 de outubro. Para tanto convém considerar um raciocínio do jornalista
William Waack, que é bem expressivo das possibilidades de vida política
conservadora nos marcos da democracia política: “Não importa quem se saia
vencedor, já dissemos isso aqui mais de uma vez, se for Lula ou Bolsonaro,
serão presidentes que terão menos poder frente ao Congresso em relação ao que
(tiveram quando) assumiram o cargo pela primeira vez”. Para o bem e para o mal
(a meu ver mais para o bem do que para o mal), o protagonismo político do
Congresso é algo que veio para ficar, assim como a reestruturação do sistema
partidário num sentido contrário ao da política fluida.
Assim,
interpreto a afirmação do jornalista em termos de que Bolsonaro não teria a
vida fácil no Congresso, que sua campanha passou a enganosamente propagar e
como, de certa forma - e de modo certamente involuntário - análises fatalistas
confirmam “pela esquerda”. Vida fácil também não terá Lula, cuja eleição, se
confirmada, colocará sobre seus ombros a missão de governar democraticamente um
país que, como diz o cientista político Jairo Nicolau, consolidou, nessa
eleição, sua guinada à direita. Se ler corretamente o que saiu das urnas, Lula
presidente precisará de um talento de primeiro-ministro. Se vida fácil não
haverá, também não existe fracasso antecipado, graças ao repertório da
política.
Mas
a vitória da direita na disputa pelo Legislativo e por governos estaduais -
onde ela já foi definida até aqui – está nublando a percepção política de que o
jogo eleitoral ainda não terminou. Determinismos sociológicos são acionados
para decretar, pela enésima vez, a impotência e o fracasso da política
representativa. Acontece, repito, que ao decidir se a direita fortalecida nas
urnas operará com ou sem Bolsonaro no governo, o eleitor do segundo turno
presidencial decidirá se a extrema-direita continuará
representando
toda a direita. Qualquer avaliação agora sobre a direita ou sobre o
bolsonarismo (conjuntos distintos, o segundo embutido no primeiro) é provisória
e pode se mostrar perecível com o resultado da eleição. Para decidir isso o
eleitor indicou, como pista, um outubro largo. Essa sempre foi uma hipótese, a
surpresa foi a votação concreta de Bolsonaro na reta final ir além das
intenções de voto.
A
prudência analítica provém de que, se a polaridade esquerda-direita não
desapareceu, é transpassada por outras. Pela sociologia política, poderemos
tentar entender a que ocorre entre movimentos e instituições. Pela análise da
política propriamente dita, podemos tentar entender outra polaridade, cada vez
mais evidente, entre conservadorismo e voluntarismo, ambos vigentes na esquerda
e na direita. O desfecho da eleição presidencial afetará as premissas
sociológicas, ou mesmo as da ciência política, mas por si só não desmontará, de
modo tão fluido, a solidez sempre relativa de nossa democracia.
Outro
problema, além da precipitação analítica, é o do fatalismo político que pode
deixar perplexa uma campanha, mesmo a que lidere as pesquisas. É que se pode
cair na tentação de crer na narrativa do adversário, que deslegitima,
interessadamente, essas pesquisas. O problema não é, por exemplo, o que o general
Mourão diz sobre seus planos. Isso é tão somente o ator atuando dentro do seu
script. A questão é conhecer o resultado da inevitável interação entre ele e
afins, com scripts de outros atores.
Certas
análises perdem o foco no sentido político da eleição e fornecem menos
elementos de persuasão eleitoral pela democracia e mais estímulos a conclusões
sociológicas sobre o fenômeno do avanço da direita, bolsonarização do
congresso, ou, seja lá que nome se dê ao resultado da distribuição de poder
produzida pelo voto e ao comportamento político dos eleitos. O risco é
morrermos de véspera.
Por
fim temos o problema do abuso de poder, prática evidente da parte de Bolsonaro.
Essa conduta voltou a ser comentada, agora com mais ênfase e como fonte de
desequilíbrio da disputa eleitoral. Sem dúvida é, mas esse não é um problema
que surge com o segundo turno. Atuou fortemente na eleição para o Congresso e
no aumento da votação do presidente, fato que ampliou também as de alguns
governadores já eleitos. Tudo isso no primeiro turno. No segundo, é preciso
cuidado para que, ao mencionar esse aspecto do contexto, não se resvale para o
terreno perigoso de sugeri-lo como indicador de um jogo viciado, com desfecho
antecipado. Essa sempre foi a arenga antidemocrática de Bolsonaro. Quando a
vitória de Lula parecia ainda mais provável do que é hoje, já havia, da parte
não só da oposição, como da imprensa e da sociedade civil, críticas aos métodos
abusivos de Bolsonaro de usar indevidamente sua atual posição institucional,
inclusive para transgredir a legislação eleitoral. Mas sem tratar a eleição
como jogo de cartas marcadas por causa disso. Arriscar esse argumento agora,
quando a disputa de tornou mais incerta que antes, pode levar lenha à fogueira
da deslegitimação das eleições.
O
momento do questionamento prático desses abusos passou. Podia-se ter tentado
uma articulação política para resistir ao arrastão que ocorreu no Congresso ou
uma ação mais efetiva junto ao Judiciário.
Não
se fez nem uma coisa nem outra, apostando-se em resolver o nó da coisa no dia 2
de outubro. Ninguém pode ser criticado por isso. Era um raciocínio lógico e a
quem o fez não cabe mea culpa.
Mas
sua excelência, o eleitor, indicou outro caminho. É preciso aceitar o fato
eleitoral e agir de acordo com ele. Incluir como argumento eleitoral um
desequilíbrio desde sempre conhecido, pode parecer, ademais, um choro
antecipado, que é ainda mais irrazoável pelo fato de Lula continuar sendo o
líder nas pesquisas. O candidato demostrou, em falas recentes, que assimilou
bem o resultado do primeiro turno. Essa é a atitude política positiva, em vez
de se realizar, nessa hora, inventário de explicações e culpas.
Nenhuma democracia do mundo é vacina contra abusos de poder. Já o que vacina a sociedade contra tentações antidemocráticas é a confiança pública no processo, apesar de assimetrias. Nenhuma democracia resiste quando posições sobre a justeza de seus processos variam conforme o andamento de pesquisas eleitorais. Não basta sermos diferentes de Bolsonaro. É opor-se a ele também nas atitudes aparentes, como se exigia da mulher de César. Por isso é bom arquivar esse argumento do desequilíbrio e cuidar do que importa: convencer a maioria sobre a necessidade da mudança e assim vencer a eleição.
*Cientista político e professor da UFBa
Artigo longo demais.
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