O Estado de S. Paulo
Dois séculos depois da Independência,
brasileiros vivem uma guerra santa incompatível com aCarta outorgada em 1824
por d. Pedro I.
De volta às trevas, o Brasil vai às urnas no meio de uma guerra santa, com a disputa contaminada por um discurso religioso prenhe de ódio e de preconceito. Mais de um século depois de proclamada a República, seguidores do presidente convertem o púlpito em palanque, renegando a noção de Estado laico. A separação entre religião, política e função pública foi muito bem estabelecida, no entanto, já na Constituição de 1891, a primeira do período republicano. Naquela Carta, a laicidade estatal é evidenciada na garantia da liberdade religiosa, na proibição de aliança entre igrejas e governos, no reconhecimento exclusivo do casamento civil, no caráter secular dos cemitérios e numa regra fundamental da educação. “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”, determinou o parágrafo 6.º do artigo 72.
Também d. Pedro I e seus conselheiros
propunham, no início do Brasil independente, uma ordem muito menos obscura do
que aquela defendida pelo bolsonarismo. Liberdades básicas foram valorizadas na
Constituição outorgada em 25 de março de 1824. Haveria uma religião do Império,
o catolicismo romano, mas o direito de crença estaria protegido. “Ninguém pode
ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado e não
ofenda a moral pública”, segundo estabeleceu o artigo 179.
O mesmo artigo consagrou, em outro inciso,
o direito de expressão: “Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras
e escritos e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura, contanto
que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito,
nos casos e pela forma que a lei determinar”.
A vida real, é claro, nem sempre decorreu
dentro desses limites, no Império ou na República, mesmo quando prevaleceram
normas de tipo democrático. A liberdade de expressão nem sempre foi respeitada,
a lei nem sempre foi igual para todos e as cadeias nem sempre foram “seguras,
limpas e bem arejadas”, com réus separados “conforme suas circunstâncias” e de
acordo com a “natureza de seus crimes”, como também determinou a Constituição
imperial. Essa Constituição ainda estabeleceu uma regra aparentemente
desnecessária, mas muito importante e frequentemente violada: “Nenhuma lei será
estabelecida sem utilidade pública”. O imperador provavelmente jamais tinha
ouvido falar de orçamento secreto e de campanhas eleitorais financiadas com
recursos públicos.
O Império também determinou, por meio do
Código Penal, o respeito aos cultos legais, fixando punições para a perseguição
por motivo religioso e para abuso ou zombaria de manifestações de fé. Violações
ostensivas desses preceitos, ocorridas neste mês, seriam puníveis, de acordo
com aquela regra, com até três meses de prisão, mas quase nada se tem feito,
além de alguma restrição a fake news, para deter a guerra santa promovida
por bolsonaristas e marcada, muito raramente, por alguma reação do outro lado.
“Este momento é um momento de guerra
espiritual”, disse no fim de agosto a primeira-dama Michelle Bolsonaro,
num encontro com mulheres evangélicas no Palácio da Alvorada. Nesta semana, em
evento em São Paulo, a mulher do presidente acusou a esquerda de perseguição
religiosa, atribuiu ao ex-presidente Lula a intenção de prender adversários e
falou do PT como um câncer. “Estamos aqui para lutar pelo nosso Brasil, para
que esse câncer do partido das trevas se dissipe, saia da nossa nação”,
proclamou. Nunca apontou fundamentos para suas acusações, mas tem mantido, com
aparente sucesso entre evangélicos, sua guerra santa contra o líder petista. Ao
mesmo tempo, e de modo muito mais desastrado, a ex-ministra Damares Alves
mistura o discurso religioso com acusações insustentáveis e logo desmentidas,
mas a campanha de mentiras em nome de Deus tem prosseguido.
Numa tentativa de reação, Lula produziu uma
carta aos evangélicos, enfatizando seu compromisso com a liberdade religiosa.
Alguns companheiros criticaram, outros defenderam essa decisão, mas o debate
nem ocorreria, se o Brasil tivesse permanecido fora das trevas. Houve quem
comparasse o documento à Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, mas a
comparação é imprópria. Naquele texto, o candidato petista cuidou de temas
econômicos e principalmente fiscais, procurando tranquilizar o mercado. Com o
mesmo cuidado, convidou depois o presidente mundial do Banco de Boston,
Henrique Meirelles, para comandar o Banco Central.
Economia e contas públicas são tópicos
normais e importantes, como têm sido neste ano, do debate eleitoral. Não é o
caso da crença em Deus ou da filiação a alguma igreja, se a eleição ocorre num
país herdeiro dos valores forjados, no Ocidente, a partir dos séculos 17 e 18.
Não se faz guerra santa num país com essa tradição, nem se indica um cidadão
para um cargo público por ser “terrivelmente” evangélico ou vinculado a uma
religião. Além de eleger um presidente e alguns governadores, os brasileiros
devem decidir se pretendem viver no século 21 ou num passado com menos luzes.
Esta última escolha é a mais importante.
*Jornalista
Assino embaixo.
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