domingo, 9 de outubro de 2022

Rolf Kuntz* - Primeiro, a democracia

O Estado de S. Paulo

Fala-se muito em teto de gastos, em âncora fiscal e em programa econômico, mas o mais importante, neste momento, é garantir para o País uma forte âncora institucional.

Democracia é o principal valor político em jogo nesta eleição. Valores fundamentais, como a vida e as condições de sobrevivência, também estão em jogo, mas dependem, há milênios, das formas de cooperação social e da organização do poder. Programas de governo foram cobrados de alguns candidatos. Compromissos com o teto de gastos ou com alguma âncora fiscal foram apontados como essenciais. Todos esses pontos são relevantes, mas os compromissos e limites mais preciosos, no Brasil de hoje, são de outra natureza. Ao anunciar apoio a um dos candidatos, grandes economistas destacaram a defesa da democracia, dando muito menos atenção a detalhes econômicos. Nem precisaram justificar essa prioridade. O ritual democrático funcionou até agora, mesmo com o presidente insistindo no uso de meios públicos para sua campanha. Mas ninguém deveria esquecer os perigos, quando autoridades se mostram saudosas do período militar, elogiam torturadores e já convocaram multidões para pressionar o Legislativo e o Judiciário.

O presidente da República pôs em dúvida, em vários momentos, o sistema eleitoral e as instituições. Militares assumiram, até com a tolerância do Judiciário, o papel de fiscais das urnas eletrônicas. Meteram-se em política interna, destoando de seus colegas do mundo avançado, onde generais, comandando grandes forças, cuidam essencialmente de segurança externa. Só se voltam para questões internas quando convocados, no limite da Constituição, por um Poder constitucional. Muito mais do que uma âncora fiscal, é preciso garantir, agora, uma âncora institucional.

Para isso será preciso revalorizar alguns padrões fundamentais para uma democracia moderna. Um deles é a laicidade do Estado e, mais que isso, o caráter laico da rotina política. Religião e distinções de caráter religioso passaram, neste período presidencial, a integrar a fala política e os debates eleitorais. O presidente da República indicou para o Supremo Tribunal Federal (STF) um cidadão “terrivelmente evangélico”. Adicionou e até sobrepôs a religiosidade aos predicados técnicos e morais – “notável saber jurídico e reputação ilibada” – normalmente exigidos de um membro da Corte Suprema.

Nunca, antes, alguém havia sido indicado para um alto posto do Judiciário por ser filiado a um grupo religioso. De fato, ninguém havia sido avaliado com base em sua crença numa divindade, em sua preferência por algum culto ou mesmo em seu possível ateísmo ou agnosticismo. Dificilmente se admitiria, antes do mandato bolsonariano, avaliar em público a filiação religiosa de algum membro de uma corte superior.

Explorada na disputa eleitoral, a religião foi convertida em bandeira de campanha por apoiadores do presidente, enquanto púlpitos e palcos de templos evangélicos eram usados como palanques. Nada semelhante se observa no Reino Unido, onde há uma religião oficial chefiada pelo rei ou pela rainha. Mas o Reino Unido é uma democracia sólida, construída com base em valores liberais consolidados durante séculos.

A reafirmação dos padrões democráticos, no Brasil, deverá envolver a reconstrução, nos centros de poder, de uma rotina de respeito a normas básicas. Se uma âncora fiscal for instituída, as autoridades deverão respeitá-la nos programas, no dia a dia da administração e nas ações legislativas. Na área financeira, como em todas as outras, limites legais deverão ser tão importantes quanto regras de trânsito. Não há ordem de fato quando as normas são contornadas com truques ou com emendas constitucionais. Qual a serventia de um teto de gastos ou de um precatório, quando o governo pode gastar além do limite ou impor calote a um credor reconhecido pela Justiça?

Todas essas violações de limites ocorreram nos últimos anos. A grande regra foi o desprezo a regras. Propostas de emendas à Constituição foram usadas de forma rotineira, como se esse fosse o meio normal de resolver problemas políticos e administrativos. O texto constitucional, já muito emendado em gestões anteriores, foi tratado como entrave à boa ação governamental.

Acusado de ativismo, o Supremo Tribunal Federal foi exortado, mais de uma vez, a se concentrar nas funções de interpretar e aplicar a Constituição. Mas qual Constituição: a atual ou aquela em vigor depois das próximas emendas? A pergunta parece razoável, num país onde o texto constitucional é alterável, a qualquer momento, segundo a conveniência de quem maneja a caneta do poder.

Manter uma âncora fiscal pode ser muito importante, especialmente quando falta consolidar a confiança do mercado. Mas é preciso cuidar também da eficiência da gestão pública, da qualidade das políticas e da articulação com o Congresso – uma articulação, convém acentuar, sem orçamentos secretos. Não basta optar pela democracia: é necessário continuar a construí-la por meio da modernização do País, do crescimento e da criação de oportunidades para todos. Esses objetivos foram desprezados a partir de 2019. Falou-se muito em Deus, mas quase nada se fez por seus filhos mais necessitados.

*Jornalista

4 comentários:

  1. "Muito mais do que uma âncora fiscal, é preciso garantir, agora, uma âncora institucional"

    Precisa porque broxonaro ameaça as instituições. Por esse e por outros crimes é q o genocida será PRESO.

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  2. Primeiro, a Democracia. Segundo, a Democracia. Terceiro, acabar com esta nefasta influência das igrejas/religiões sobre o Estado e o governo! Não significa interferir na religião, mas impedir que decisões e políticas públicas sejam tomadas com base apenas nos interesses das religiões. Ministro terrivelmente evangélico, nunca mais! Pastores e ministro da Educação pedindo propina em bíblias sem serem condenados, nunca mais!

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  3. Bolsonaro, o CANIBAL da Democracia!

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