domingo, 27 de novembro de 2022

Felipe Nunes e Thomas Traumann* - Eleição que calcificou o país

O Globo

Decisão do voto deixou de ser só a expressão de uma preferência política e passou a ser manifestação de uma identidade

Ao final da eleição de 2018, achávamos que o Brasil havia experimentado uma ruptura, em que as campanhas de TV e rádio, o uso da máquina pública e o financiamento eleitoral deixaram de ser ferramentas decisivas. Quatro anos depois, os fatos mostraram que a vitória de Jair Bolsonaro não foi uma ruptura — um evento capaz de interromper definitivamente uma tendência observada na História —, mas um acontecimento fora da curva. A derrota de Bolsonaro em 2022 mostrou que, mais que os instrumentos de campanha, são as profundas divisões na sociedade brasileira que determinam o resultado.

A campanha de 2022 mostrou que a decisão do voto deixou de ser apenas a expressão de uma preferência política e passou a ser manifestação de uma identidade. O interessante é que não se trata de mera compatibilidade partidária, mas de uma identidade consolidada em torno do sentimento do que é ser petista ou antipetista. Tomando emprestado um termo usado pelos cientistas políticos John Sides, Chris Tausanovitch e Lynn Vareck para descrever a polarização nos EUA pós-Donald Trump, a eleição de 2022 no Brasil calcificou o mecanismo de escolha, em que os interesses perderam força para as paixões.

O embate entre Lula e Bolsonaro apenas consolidou ainda mais os alinhamentos políticos criados nos anos de polarização entre PT e PSDB. O que era um “nós contra eles” — por pior que ele fosse, ainda admitia a existência do outro — se tornou um “apenas nós temos o direito legítimo de representar o Brasil”.

Essa calcificação da opinião pública é visível na estabilidade das escolhas dos eleitores em 2022 em comparação com 2018, 2014 e 2010. Há uma forte relação entre como um estado vota no PT numa eleição e como vota noutra, mesmo sem Lula candidato. Essa estabilidade no nível estadual também se observou no nível municipal. A volatilidade entre um ciclo eleitoral e o seguinte vem permanecendo estável há algum tempo. Desde 2010, o padrão de votação nos municípios se repete. Apesar de todas as reviravoltas da presidência de Bolsonaro, da pandemia e da grave crise econômica e social que atingiu o país, teria sido possível prever com muita confiança os resultados por município nas eleições de 2022 simplesmente conhecendo os resultados de 2010, 2014 e 2018.

Como essa calcificação das identidades políticas em torno do petismo e do antipetismo afetarão a sociedade brasileira nos próximos anos e, em especial, no próximo governo? Esse enrijecimento dos lados transforma os eleitores em torcedores apaixonados, que tornam essa identidade o que melhor define sua posição na sociedade. Essas identidades calcificadas numa sociedade altamente polarizada, por sua vez, afetarão nosso comportamento cotidiano. As escolhas sobre onde matricular seu filho, que bares e restaurantes frequentar, com que membros da família se relacionar, que marcas consumir, que canais de TV e rádio buscar passarão cada vez mais pela afirmação dessas identidades políticas muito enrijecidas.

O presidente eleito governará um país em que se tem menos vontade de desertar de seu próprio grupo político. Compreender a extensão da calcificação política entre os brasileiros, e que conteúdo tem força para flexibilizar tais posturas, é o principal desafio do governo Lula, mas não apenas dele. O novo Congresso será mais pressionado, a paciência com os novos governadores será curta, a cobertura da mídia será contestada por parte do público desde o primeiro dia, e as empresas terão dificuldade de posicionar suas marcas. O Brasil de opiniões calcificadas é um dilema para todos os brasileiros.

*Felipe Nunes é PhD em ciência política e mestre em estatística pela UCLA, professor da UFMG e diretor da Quaest, Thomas Traumann é jornalista e pesquisador da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getulio Vargas (Ecmi-FGV)

Um comentário: