sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Fernando Abrucio* - Frente ampla: da eleição ao governo

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Há uma diversidade de grupos de eleitores, e para se governar o país é necessário conversar também com os que não votaram no presidente eleito

A eleição presidencial de 2022 foi a mais disputada de todo o período da redemocratização e o candidato vencedor não representa apenas um partido ou uma coligação de esquerda. Como o próprio Lula disse logo após a divulgação dos resultados, foi “a vitória de um imenso movimento democrático que se formou”. Esta lógica de frente ampla derrubou o bolsonarismo e será ainda mais importante para reconstruir o país, pois só com pactos entre atores plurais será possível retomar a rota perdida desde 2013.

O diagnóstico de que só será possível pacificar e reerguer o Brasil por meio de uma lógica de frente ampla nasce já da própria compreensão do resultado eleitoral. A derrota de Bolsonaro pode ser explicada, em boa parte, por sua incapacidade de se mostrar confiável para um grande contingente de eleitores. A ameaça constante ao STF, o modelo de guerra política defendido por Roberto Jefferson e outros bolsonaristas, os constantes conflitos e preconceitos proferidos contra mulheres, negros e nordestinos, enfim, a aposta na visão polarizada de mundo, tudo isso limitou o espaço de crescimento eleitoral de Bolsonaro.

Mesmo assim, o derrotado teve cerca de 58 milhões de votos, perdendo o pleito por menos de 2 pontos percentuais — ressalta-se que Lula teve um pouco mais de 60 milhões de votos, a maior votação da história do país. Mas não se pode ignorar que a enorme votação de Bolsonaro se deveu ao maior uso da máquina pública em favor de um candidato em todo o período democrático recente.

O governo federal torrou quase R$ 70 bilhões com gastos extraordinários, que nunca foram permitidos para os antecessores, afora isenções fiscais bilionárias cujo impacto no erário de todos os níveis de governo ainda é incerto. Além disso, patrocinou diversas mudanças legais para apoiar a cada semana um novo grupo de interesse. E, por fim, usou o aparato governamental contra o adversário até no dia da eleição, com uma operação policial digna do período áureo do PRI mexicano, quando havia eleições apenas para confirmar a vitória do partido único.

O tsunami de apoios e pressões governamentais, contudo, não foi suficiente. De todo modo, a partir da constatação do resultado eleitoral apertado, surgiu um diagnóstico de que o país saíra do pleito dividido. É preciso entender um pouco melhor o sentido dessa divisão. Ela não significa, em hipótese alguma, que há um lado monolítico lulista e outro bolsonarista. O campo vitorioso é heterogêneo do mesmo modo que os votos de Bolsonaro não são todos bolsonaristas-raiz (algo que não ultrapassa 20% do eleitorado, se muito). Uma boa parte do voto no candidato oficial se deveu às benesses governamentais, e outra parcela foi mais contra Lula do que a favor de Bolsonaro.

Há uma razoável diversidade de grupos de eleitores, de maneira que para se governar o país é necessário conversar também com os que não votaram no presidente eleito. Só que Lula não conseguirá convencer os radicais bolsonaristas, que são uma minoria. Não obstante, e mais importante, terá um bom espaço de diálogo com a maioria dos que votaram no outro candidato: setores mais conservadores, no campo dos costumes e no âmbito econômico, e com parte do antipetismo que votaram agora em Bolsonaro, mas que estão abertos à negociação democrática em torno de seus interesses. Isso já aconteceu no passado e foi possível ter um ambiente político e social menos tóxico do que o atual.

O fato é que a divisão apresentada ao final da eleição não é estática. Partir desse pressuposto é fundamental para se pensar numa estratégia contra a polarização estéril que se instalou no país nos últimos quatro anos. Só que tal cenário depende da manutenção da lógica de frente ampla durante todo o próximo período governamental, algo que envolve a formação de três pactos entre grupos plurais, buscando construir consensos produtivos para a coletividade, garantindo que o dissenso não se transforme em guerra e que possa inclusive ser importante como um foco de controle e aprendizado para os governantes.

O primeiro pacto plural que deve orientar um governo com lógica de frente ampla deve ser feito com a sociedade. Isso já começou a ser feito na campanha quando a campanha lulista dialogou com movimentos que juntavam gente de diversas esferas, como o Derrubando Muros e o Direitos-Já. Um novo mandato de Lula tem de continuar esse processo, começando pelos que foram alijados pela visão sectária de Bolsonaro, como as comunidades indígenas, grande parcela do campo cultural, movimentos sociais de mulheres, negros e LGBT, lideranças universitárias e especialistas em várias políticas públicas, entre outros.

Mas é fundamental e urgente também conversar com aquela parcela que atualmente mais rejeita o bloco liderado por Lula. É preciso abrir canais com grupos evangélicos, atores do agronegócio, empresários do comércio e do setor de serviços, microempreendedores, para citar apenas uma parte daqueles que precisam ser ouvidos e cujas demandas devem ser levadas em conta.

A ampliação dos ministérios para novas áreas, a criação de canais de diálogo com a sociedade — como o Conselhão — e a escolha de ministros com trânsito em setores que não votaram em Lula são mecanismos fundamentais para se ter um espaço ampliado de conversa e negociação. Nem sempre acordos serão obtidos e, obviamente, muitos não vão virar lulistas. A meta não é a unanimidade, tampouco ficar livre das críticas. O que o novo governo deve almejar é a conquista de um apoio maior do que o eleitoral. Além disso, é preciso mostrar a capacidade de ceder e incorporar pleitos legítimos, estabelecer pactos em pontos centrais da agenda pública e criar um clima social que impeça a lógica estéril da polarização vigente durante a era bolsonarista.

Além de ampliar o debate e os acordos com uma sociedade heterogênea, o segundo pacto entre plurais que deve nortear o novo governo envolve a relação com o sistema partidário. A coligação que elegeu Lula já é bem mais ampla do que a que Fernando Haddad teve em 2018. Nela, há atores de centro, como o Solidariedade e o próprio vice-presidente, Geraldo Alckmin, e mais à esquerda, com o predomínio do PT, mas com um papel muito relevante da maior liderança ambiental do país, Marina Silva. Com o segundo turno, novos apoiadores foram incorporados, como o PDT, setores vinculados ao PSDB e, sobretudo, a liderança emergente da senadora Simone Tebet. Creio ser ela a melhor síntese da teia multipartidária que elegeu o novo presidente: um apoio que foi capaz de juntar os vários Brasis num Brasil só.

A ampliação do arco partidário terá que continuar no processo de construção de maioria congressual. Isso envolverá a negociação e a partilha do poder com o MDB, o PSD e com mais alguma parcela da centro-direita, a ser definida ao longo dos próximos três meses. De qualquer maneira, será uma governabilidade de coalizão, mas é possível estabelecer esse pacto com atores plurais em torno de projetos e compartilhamento de ganhos em torno do desempenho governamental.

Se houver uma boa lista de propostas legislativas, um acordo básico que saiba combinar bem forte investimento social com responsabilidade fiscal — algo que está longe de ser impossível — e a construção de agendas integradoras e essenciais para o futuro do Brasil, como a questão ambiental acoplada à energética e à inserção internacional, será possível ter um governo de frente ampla estruturado por temas que deem um norte ao apoio político. Haverá dissensões e necessidade de as partes cederem posições, mas isso tende a ser melhor do que o jogo estéril de guerra permanente que vigorou no bolsonarismo.

O quebra-cabeças do modelo de frente ampla tem como última peça o pacto interinstitucional. É preciso, antes de tudo, reconstruir as relações com o sistema de Justiça. A ameaça deve dar lugar ao respeito sobre a autonomia de cada poder, por meio de um diálogo que defina onde pode ser cultivada a cooperação e onde deve ser garantida a independência. O mesmo cuidado deve ocorrer nas relações com o Legislativo, a começar pelas conversas sobre a definição dos presidentes das duas casas. O Congresso precisa ter um papel de protagonista, mas isso pode ser realizado de forma cooperativa e com ganhos mútuos junto ao Executivo. Isso deveria começar pela revisão do orçamento secreto, buscando casar o legítimo pleito das emendas parlamentares com uma visão mais integrada e transparente com as políticas públicas construídas pelos ministérios.

O maior exemplo da necessidade e do potencial de um pacto entre atores plurais está no plano federativo. É neste ponto que a lógica da frente ampla pode se mostrar vital para a reconstrução do país. Há governadores eleitos por vários partidos, apoiadores de Lula e de Bolsonaro. Uma maior colaboração federativa é um ganho para todos, pois as políticas públicas vão estar mais integradas, aumentando sua eficiência e sua efetividade. Além disso, quanto mais União, estados e municípios negociarem e fizerem acordos, mais a democracia será fortalecida por todo o território nacional.

A sociedade quer um governo mais amplo e menos sectário, com capacidade de diálogo e que pense em compatibilizar demandas diferentes, mas legítimas. Se Lula conseguir fazer isso em boa parte do mandato, o país terá recuperado o fôlego da transformação que perdeu em 2013.

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