Saber como tudo isso se desenvolveu e os fundamentos da escravidão no Brasil, assim como o processo de libertação da escravatura até à atualidade, são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade enfrentada pela população negra ainda hoje na sociedade brasileira.
As lutas de
libertação da população negra
A escravidão
africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos da vida econômica na
América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações políticas,
econômicas e sociais, assim como tornou-se base de acumulação de riqueza dos
países europeus, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial.
A cultura do racismo nasceu como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana durante o século XV, foi se desenvolvendo e deixando marcas profundas até à atualidade. Desde então, o escravismo passou a ser diretamente relacionado aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões de escravos ao longo de mais de 300 anos em que perdurou o escravagismo negro em nosso país.
A escravidão na
América já tinha precedentes no continente: houve escravização de indígenas e
com a chegada de Cristovão Colombo, em 1492, iniciou-se um massacre e o escravismo
destas populações indígenas em todo o continente americano, inclusive no
Brasil, a partir da colonização portuguesa.
A abolição da
escravatura em nosso país, em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa
Isabel, foi fruto das lutas históricas e das mudanças que já vinham acontecendo
na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas
e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento
de libertação dos escravos no Haiti, que foi fundamental na proclamação da
República naquele pais. O fim do escravismo no Brasil atendia também aos
interesses da Inglaterra em plena industrialização, que necessitava de novos
mercados e de matéria prima fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no
cenário internacional.
As leis
abolicionistas no Brasil promoveram a emancipação dos escravos de maneira
gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a
Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a
lei assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão
no Brasil. As principais lideranças negras abolicionistas foram: André
Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as
lideranças femininas de Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre
outras brasileiras.
Ressalte-se que a
abolição da escravatura no Brasil atendeu também aos interesses das oligarquias
nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava, base da
acumulação da riqueza colonial, ainda em função da realidade internacional e em
razão do que o Brasil já representava em função das suas riquezas naturais,
particularmente minerais, produção/potencialidades agrícola e pecuária, um
espaço de acumulação e de mercado da economia capitalista mundial.
Em uma outra
perspectiva, aconteceu a luta dos quilombolas. Os quilombos eram organizados
como espaços de resistência, de libertação, no caminho de construção de novas
relações políticas, econômicas e sociais. O de Palmares é o mais conhecido e
aclamado com a liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro,
passou a ser a data nacional de resistência e de luta pelos direitos da
população negra no Brasil, desde 2011.
A libertação da
população negra no Brasil desde os primórdios até à atualidade é o resultado
das lutas de resistência dos movimentos de libertação desde quando os(as)
escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos Quilombolas e dos
abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da
população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade
brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.
O 20 de novembro, dia da consciência negra, é um momento de reflexão e ação sobre a atual realidade política, econômica e social do Brasil, particularmente da população negra, na perspectiva de superação desta nossa difícil realidade que excluiu e continua excluindo a população negra brasileira.
Quais os desafios?
Os desafios
históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.
A abolição da
escravatura, no século XIX, não incorporou a população negra à nova realidade política,
econômica e social capitalista. Sem a terra e a escolaridade necessárias,
os(as) negros(as) libertos(as), na sua maioria, ficaram à margem da sociedade
brasileira, situação que continua até à atualidade, apesar das conquistas e dos
avanços da população negra no Brasil, consolidadas na Constituição de 1988 e os
seus desdobramentos político-institucionais.
Desde então, por
tudo o que o Brasil representava e continua representando, inicialmente como Colônia,
depois como Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra
continua sem a devida representação na vida política, econômica e social no País.
A realidade da Bahia é a mais perfeita tradução desta falta de representação
política, econômica e social da população negra brasileira.
Atualmente quais
são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral
frente a essa realidade de exclusão da população negra brasileira?
A agenda do
Movimento Negro e dos outros movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais
e multiculturais que lutam pela inclusão da população negra no Brasil deve ser
a agenda de toda a sociedade brasileira, na qual a educação, a saúde, o
trabalho, a moradia, a ciência e a tecnologia seriam os fundamentos de
construção de políticas públicas afirmativas, inclusivas para a população negra
e para todas as populações discriminadas da nossa sociedade.
No Brasil,
particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor renda e a população desempregada
em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias dificuldades econômicas
e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegure
o mínimo de dignidade para atravessarem a crise agravada com a pandemia que atinge
principalmente a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho,
a população indígena e negra, historicamente excluídas no Brasil.
A inclusão da
população negra - 54% da população brasileira, segundo o IBGE - deve ser
realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente
no caminho de um futuro que unifique a sociedade brasileira construindo uma
agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da
democracia. Os negros, homens e mulheres, e suas representações no Brasil devem
estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral,
fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das
condições de vida da população negra, ampliando sua participação nas
organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil; apostando em uma
agenda nacional reformista que retire o Brasil desta grave crise política,
econômica, social, ambiental e de valores que estamos vivendo.
Portanto, a
população negra e a sociedade brasileira em geral estão desafiadas a construir uma
agenda propositiva a ser pactuada para o enfrentamento dos reais problemas
nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova
economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a
sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos
naturais e a diversidade étnica e cultural.
A base desta
reforma democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas
como estruturantes e estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos que trabalham,
da população negra e de toda a sociedade brasileira nas próximas décadas.
Assim, a
população negra e os brasileiros em geral estão desafiados à construção de uma sociedade
que supere os conflitos e as contradições nela gerados historicamente, no
caminho de uma sociedade mais democrática, inclusiva na sua organização
política, econômica e social, e melhor distribuidora da riqueza produzida por
toda a sociedade.
O novo governo
que se inicia, em 2023, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
e amparado em uma frente ampla, deve ser um momento de reflexão e avaliação da
difícil realidade social, econômica e ambiental da população brasileira, na
perspectiva de que nos próximos quatro anos o governo e a sociedade em geral
construam políticas públicas que venham efetivamente melhorar a vida dos
excluídos da sociedade brasileira, cuja maioria é negra.
Incorporar a
população negra na vida política, econômica e social é enfrentar e superar definitivamente
no Brasil o legado histórico e atual de exclusão da população negra na sociedade
brasileira, afirmando-a como um dos fundamentos de construção de um Brasil com mais
democracia, liberdade, igualdade e fraternidade.
Estamos
desafiados(as)!
*Professor, doutor, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia
O apartheid brasileiro é social e não étnico.
ResponderExcluirA opinião de Cesar Benjamin sobre a "raça" brasileira: ""Vi agora uma fala do Pedro Doria que repete um monte de estatísticas fabricadas. Uma delas: 86% da população carcerária do Brasil é composta de negros.
ResponderExcluirEu nunca fiz e nunca vi um levantamento estatisticamente relevante sobre isso, mas vivi na galeria considerada mais pesada -- portanto, mais discriminada -- do complexo de Bangu. Fui largado lá numa noite e lá fiquei durante um ano e meio, durante a ditadura. Éramos em torno de quarenta espremidos lá dentro, todos os demais presos comuns. Só eu não tinha homicídio. Nos banhos de Sol e no futebol dos sábados, convivi com todo o presídio.
A cor dos presos é exatamente igual à média de cor dos brasileiros: uma minoria branca, outra minoria negra e uma ampla maioria de gente morena, com todas as gradações.
Só se chega àquela percentagem juntando-se morenos e negros num só grupo. É um arremedo do critério dos Estados Unidos: uma gota de sangue negro nos ancestrais basta para definir a "raça".
Por esse critério, criado numa sociedade diferente da nossa e que adotou o racismo como um valor, praticamente todos os brasileiros, inclusive eu, somos negros.
Manuseando-se para lá e para cá a nossa gigantesca miscigenação, consegue-se fabricar qualquer número.
Por experiência própria, repito: se colocarmos nas ruas, subitamente, um grupo escolhido aleatoriamente nas prisões, ele se misturará com a nossa população, sem diferença de cor.
Lamento decepcioná-los".
O "capitalismo" no Brasil viveu da exploração do trabalho escravo do negro africano. Quase quatro séculos depois "libertou" os escravos com uma mão na frente e outra atrás. Os ex-escravos foram habitar as favelas, no século XIX chamadas de "bairros africanos" (i. é. no século 19 os negros não eram considerados como brasileiros). E nossos nazifundiários conseguiram até indenização pela libertação dos negros pelo fato deles terem sido "comprados". E a "reforma agrária" (para cada ex-escravo um pedaço de terra) não aconteceu e nem outra reforma agrária qualquer. Coisa que muitos países pequenos em todo o mundo fizeram.
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