O Globo
Bolsonarismo e extrema direita continuarão
à espreita, mas maior risco para o presidente eleito pode vir de suas próprias
deliberações
A transição de Jair Bolsonaro para Luiz
Inácio Lula da Silva tem produzido cenas de espantosa e bem-vinda normalidade,
mas também uma série de dúvidas sobre os rumos do novo governo. Não porque, ao
mesmo tempo que Lula visitava os chefes da Câmara, do Senado e do STF, em
Brasília, uma enorme fila de caminhões e manifestantes pedindo a anulação das
eleições e intervenção federal se formava a dez quilômetros de distância.
Afinal, apesar de todo o esforço de
Bolsonaro, os militares reconheceram que não houve “nenhum indício de
manipulação dos resultados que possa configurar fraude do pleito de 2022”.
Isso não significa que o bolsonarismo e a extrema direita devam desaparecer do cenário político, muito pelo contrário. À medida que a transição avança, porém, vai ficando mais evidente que, embora o golpismo continue à espreita, o maior risco para o governo Lula pode vir de suas próprias escolhas.
Algumas delas foram certeiras e garantiram
a vitória, como o respeito ao regime democrático e às instituições e a
prioridade a políticas sociais e inclusivas. Em nome delas, muita gente abriu
mão de cobrar do então candidato compromissos claros em política econômica,
política industrial ou segurança pública.
Quem sugerisse que Lula estava recebendo um
cheque em branco era chamado de fascista, ignorante, isentão ou de lacaio do
mercado financeiro. Afinal, que importância tem um programa de governo diante
da gigantesca missão de salvar a democracia, não é mesmo?
O apelo funcionou para a eleição, mas eis
que, para salvar e consolidar a democracia em contraposição ao golpismo, é
preciso fazer um governo minimamente bem-sucedido. E, para ser bem-sucedido no
atual contexto brasileiro, é necessário, além da boa articulação com o
Congresso, uma política econômica consistente.
Da articulação política, Lula está
cuidando, até porque o tema se impôs. Se quiser dinheiro para continuar a pagar
os R$ 600 do Auxílio Brasil e ainda complementar a renda das famílias com
crianças pequenas, o presidente eleito precisa convencer o Congresso a aprovar
uma emenda constitucional antes mesmo do final do governo Bolsonaro.
Tudo indica que, com mais ou menos
tropeços, pagando caro ou muito caro, ele vai chegar lá. Até porque não se
conhecem em Brasília muitos políticos dispostos a assumir o ônus de votar
contra a extensão do benefício.
Quanto à política econômica, ainda estamos
no escuro.
O grupo de economistas que o
vice-presidente eleito Geraldo Alckmin anunciou para a transição dificilmente
conseguirá elaborar um plano conjunto. Sobrou muito pouco em comum entre Persio
Arida e André Lara Resende desde o Plano Real, e Nelson Barbosa e Guilherme
Mello são de ramos diferentes da heterodoxia. Desse saco de gatos não deve sair
muita coisa — até porque o que importa, e os quatro sabem, é a vontade de Lula.
Nos últimos dias, sempre que os interlocutores
do presidente eleito tentam tirar dele alguma pista sobre quem ele escolherá
para o Ministério da Fazenda, a resposta é sempre alguma versão da frase “estou
pensando, não tem pressa”.
A indefinição tem causado altos níveis de
ansiedade entre os aliados mais próximos de Lula, que ficam tentando captar nas
entrelinhas o que ele tem em mente. Mais importante do que saber quem será,
porém, talvez seja responder para fazer o quê.
Na entrevista que deu após o périplo por
Brasília, Lula disse que, se depender dele, no dia seguinte à posse já estarão
começando obras públicas pelo país para gerar emprego. Falou também que
considera errado se referir a essas despesas como gasto, já que “gasto é
investimento”.
Até aí, pouca surpresa em se tratando de
Lula. Só que, para poder avaliar se gasto é investimento ou só gasto mesmo, é
preciso saber que obras são essas, quem as fará (algum ministério, a
Petrobras?) e quem pagará a conta (a União, o BNDES?). Também é importante
saber que tipo de governança teremos e que reformas serão prioridade.
Nenhuma dessas perguntas é simples, e quem
o conhece bem aposta que o próprio Lula ainda está elaborando as respostas. Do
alto da experiência com seus dois mandatos, ele sabe que a boa vontade e o
adesismo do Congresso com todo governo que entra deverão lhe dar uma forcinha,
mas também já deve ter entendido que o humor com que a sociedade brasileira o
recebe não é nem de longe tão favorável quanto no primeiro mandato, em 2003.
O tamanho do esforço necessário para conquistá-la será determinado pelo acerto das escolhas de Lula. A transição que mais importa, portanto, está acontecendo na cabeça dele, e não em uma sala acarpetada de Brasília.
Discordo em parte do final do texto da colunista. O humor com que a sociedade receberá Lula em 2023 não é muito diferente de como o recebeu em 2003. Aquela sociedade votou em Lula na sua maioria, mas tinha muitas dúvidas sobre o que ele iria fazer no seu mandato. Ao longo do tempo, Lula foi conquistando confiança do povo e do mercado, apesar dos problemas com o mensalão, e sua reeleição foi possível, tendo um segundo mandato com grande aprovação. Hoje, metade da sociedade o apoiou e espera que ele consiga melhorar bastante a situação brasileira, em todas as frentes (política, democrática, social, econômica, ambiental, etc.), já que ele teve esta capacidade anteriormente entre 2003 e 2010. A outra metade que não votou nele certamente desconfia do que ele possa ou vá fazer, mas o apoio que ele está obtendo no Congresso e no STF já lhe garante um começo ao menos parecido com o que ele teve em 2003, ainda que a situação econômica e política do país seja bem pior atualmente.
ResponderExcluirConcordo com o anônimo.
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