Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Coube a Lula o feito de afastar a sombra da
extrema direita sobre o país. A tarefa de mantê-la longe não é apenas de seu
governo
O presidente da Câmara, Arthur Lira, foi o
primeiro do campo governista a reconhecer o resultado eleitoral em telefonema
ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Seu correligionário, o
ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, disse não se opor se for o desejo de seu
partido se aliar a Lula. O presidente do União Brasil, Luciano Bivar, que
quatro anos atrás abrigou Jair Bolsonaro em seu finado PSL, diz que seu partido
tem “uma dívida com a esquerda”. O Republicanos busca tanto uma brecha que o
presidente eleito recebeu até “perdão” do pastor honorário da agremiação, Edir
Macedo. Restou o PL, que lançou Bolsonaro à Presidência em 2026 e anunciou-se
na oposição sem reconhecer o resultado das urnas. Ainda está por se confirmar
se permanecerá com este discur
Nada disso surpreende. A novidade é que esta virada de casaca se dê na eleição em que a direita se mostrou em sua melhor forma no Congresso, desde a redemocratização. Apesar do governismo atávico, também surpreende que, em tão pouco tempo, após uma eleição presidencial com uma direita tão competitiva, suas lideranças abandonem a carona de um projeto exitoso de conquista de votos. A exceção anunciada pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, ainda está por mostrar sua viabilidade.
O desapego da direita ao seu eleitorado é a
pior notícia da transição. Desde 2002, quando teve seu pior desempenho numa
eleição presidencial, a centro-direita tem tido votações crescentes. Em 2018, a
extrema direita se desgarrou e venceu. E, mesmo neste ano, a votação do
presidente Jair Bolsonaro (49%), ainda que inferior à de quatro anos atrás
(55%), representou a maior votação nominal da direita no Brasil, com 58,2
milhões de votos. O êxito de Bolsonaro em 2018 e, em grande parte, em 2022,
deu-se no vácuo da direita democrática. Se este campo político aderir ao
adversário, está franqueada a porta para o bolsonarismo e seus valores
sobreviverem eleitoralmente. Até porque parece terem arrumado um partido para
abrigá-los.
O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo
Tribunal Federal têm mecanismos e provas em abundância para tanger Bolsonaro da
política nacional, mas nenhum enterro teria mais eficácia do que aquele
promovido por uma direita que se mostrasse capaz de segurar seu eleitor.
Quando publicou “Vida, morte e outros
detalhes”, um livro de memórias que se seguiu à morte de seu irmão, Ruy, o
historiador Bóris Fausto citou aquele em que Jairo Nicolau (UFF) analisou os
resultados de 2018 (“O Brasil dobrou à direita”, Zahar, 2020), e se perguntou
quando o cientista político poderia tirar a crase e aproveitar o título para um
novo livro.
Ainda não será desta vez. O Brasil, diz
Jairo Nicolau, dobrou à direita e ficou. Ele finca pé na expressão partidária
dos resultados legislativos, que deram ao partido de Bolsonaro, o PL, a
condição de maior legenda nas duas casas do Congresso, manteve o PT
competitivo, com uma federação de 80 cadeiras, mas desidratou outros partidos
de centro-esquerda, como o PSB e o PDT, dizimou o PSDB, e manteve relativamente
inalteradas as bancadas do PP, Republicanos, PSD e MDB, o meio-campo da
política nacional, em que tudo acontece e nada avança.
Pela pesquisa de Bruno Bolognesi, Ednaldo
Ribeiro e Adriano Codato, descrita em “Uma nova classificação ideológica dos
partidos políticos brasileiros” (Dados, 2022), os partidos de direita vão
ocupar 63% da Câmara. Publicado em janeiro, o levantamento, como todos do
gênero, carece de atualizações impostas pela conjuntura. Dificilmente a maioria
dos 519 cientistas políticos que responderam à enquete para situar os partidos
voltariam, por exemplo, a colocar o MDB de Simone Tebet à direita do PTB do
pistoleiro Roberto Jefferson. Sendo este, porém, o esforço mais recente de
posicionar os partidos brasileiros ideologicamente, é o parâmetro que se tem
para se aquilatar o recorde de ocupação legislativa pela direita no pós-redemocratização.
Jairo vê no surgimento de uma militância de
extrema direita um dos maiores fenômenos desta eleição. Se nos Estados Unidos
esta militância foi personificada em Jake Angeli, o ativista do QAnon vestido
de peles e chifres, que acredita numa guerra santa contra pedófilos adoradores
de Satanás, no Brasil há uma multitude de fantasias. Vão dos verde-amarelos
gaúchos que comemoraram ajoelhados e aos prantos a “prisão” do ministro
Alexandre de Moraes ao comerciante pernambucano Junior Cesar Peixoto, que seguiu
estrada afora agarrado à boleia do caminhão fura-bloqueio.
Para além do estereótipo, o comparecimento
confirma o impacto da militância de direita. Como o Valor (19/10) mostrou, no
primeiro turno das 26 capitais e do Distrito Federal, houve redução de abstenção
em sete, relativamente a 2018. Em cinco delas, foi Bolsonaro quem ganhou. O
dado sugere que, se a política do passe livre, pela qual aliados de Lula tanto
batalharam, beneficiou grandes fatias do eleitorado de baixa renda, que
sufragou o presidente eleito, também beneficiou o eleitor de Bolsonaro.
O analista de opinião pública Orjan Olsen
se debruçou sobre os dados de comparecimento entre o primeiro e o segundo turno
em oito grandes municípios do estado de São Paulo (Campinas, Guarulhos, São
Bernardo do Campo, Ribeirão Preto, Diadema, São José dos Campos, São José do
Rio Preto e a capital) e constatou que, naqueles em que Lula ganhou no primeiro
turno, houve redução de comparecimento ou aumento muito discreto no segundo. Já
naqueles vencidos por Bolsonaro houve um aumento de comparecimento ou
estagnação. Numa projeção para o conjunto do país, é este maior comparecimento
do eleitor de Bolsonaro, principalmente no Sul e Sudeste, além da maior fatia
abocanhada do eleitorado de Simone Tebet e Ciro Gomes, que parece explicar a
arrancada que levou o atual presidente a diminuir de 6,2 milhões para 2,1
milhões a diferença para Lula entre o primeiro e o segundo turno.
O PT não virou em nenhuma cidade. Conseguiu
manter a dianteira aumentando a vitória naquelas em que já havia ganhado no
primeiro turno, como São Paulo, onde passou dos 39% de Fernando Haddad, em
2018, para 53%. Lula protegeu sua maior reserva eleitoral, o Nordeste, do
avanço bolsonarista, tendo sido a única região em que ganhou de cabo a rabo, mas
foi a redução da vantagem bolsonarista no Sudeste que garantiu a vitória.
Dificilmente será possível mensurar o
impacto dos estudos do Ministério da Economia sobre o congelamento do salário
mínimo e aquele decorrente do pavor causado pelo tiroteio de Roberto Jefferson
ou pelas imagens de Carla Zambelli correndo nos Jardins com uma arma em punho.
O que dá para dizer é que, não fosse a contenção, no Sudeste, da reta final
bolsonarista, o resultado poderia ter sido diferente.
O presidente eleito já deixou claro que
entendeu o recado. Este não será um governo do PT, da esquerda ou seu. Abrigará
o rechaço a Bolsonaro que pegou carona em sua candidatura. A nomeação de
Geraldo Alckmin para chefiar a transição já é a primeira resposta a este apelo.
Por mais habilidade que tenha para montar um governo que reflita esta
correlação, porém, não será capaz de representar a totalidade de forças
premiadas pelo resultado eleitoral mais polarizado da história do país. Alguém
terá que ficar de fora. Senão a cada liderança da extrema direita caçada pelo
Judiciário outras serão ungidas pelos milhares que continuam a buzinar em
frente aos quartéis militares Brasil afora. O problema para uma direita
democrática continua a ser o de sempre: com que roupa vai disputar voto? A do
Estado mínimo para necessidades máximas deu tão ruim que o ministro Paulo Guedes
termina o governo como uma sombra esquálida de suas convicções.
Até a véspera do segundo turno, as
pesquisas indicavam que o combustível do bolsonarismo foi o voto anticorrupção.
Fica difícil entender como, depois do orçamento secreto, das rachadinhas, do
patrimônio imobiliário construído com dinheiro vivo, isso ainda seja possível.
Mas é. As últimas rodadas do Quaest, instituto ao qual Jairo Nicolau presta uma
consultoria metodológica, são cristalinas. A maior razão para os 58 milhões
obtidos por Bolsonaro foi a identificação de Lula com a corrupção. O maior medo
do eleitor que votou em Bolsonaro era o da volta da corrupção. Em grande parte
isso se deve à investida digital do bolsonarismo, mas outra fatia, não
desprezível, é a ilusão do PT de que a votação de Lula é um desagravo à sua
prisão.
Dos desafios de Lula, a obtenção de um
atestado de idoneidade que a eleição não lhe deu é um dos poucos capazes de
fundir o motor do bolsonarismo. A necessidade de formar uma ampla base de
governo e o apego dos partidos pela ocupação predatória do Estado não
facilitarão sua tarefa. Mas nem só de discurso contra a corrupção se alimenta o
bolsonarismo.
Na primeira sexta-feira depois do segundo
turno, numa mesa do Cebrap, mediada por Maria Hermínia Tavares (USP), Felipe Nunes
(UFMG e Quaest) mencionou o poder da máquina de desinformação como fermento da
extrema direita.
Fernando Limongi (FGV) buscava respostas no
impacto da gangorra das políticas sociais e econômicas sobre a vida das pessoas
até que Flávia Biroli (UnB) abriu uma janela para os valores que se enraizaram
em núcleos familiares à medida que as conquistas de gênero, a precarização do
trabalho e o ambiente salve-se-quem-puder se tornou a lei de sobrevivência para
a maioria.
A decisão de Lula de não concorrer à reeleição
mantém o foco eleitoral de aliados de centro que atraiu, como Simone Tebet,
Geraldo Alckmin, ou mesmo daqueles de seu campo, como Marina Silva ou Fernando
Haddad. Por outro lado, para além de Valdemar da Costa Neto, a direita tem nos
governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Romeu Zema, em Minas, as
chances de projetar um futuro sem Bolsonaro. Coube a Lula o feito de afastar a
sombra da extrema direita sobre o país. A tarefa de mantê-la longe não é apenas
de seu governo, mas de um conservadorismo desgarrado da liderança mais popular
que já produziu.
Maria Cristina Fernandes,
Artigo looonnngo,rs.
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