quinta-feira, 3 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Por uma transição ordeira e pacífica para o novo governo

Valor Econômico

Liberar as estradas é uma necessidade urgente

Políticos, ministros do Supremo Tribunal Federal e leigos em geral tiveram de fazer uma complexa análise semântica do discurso de pouco mais de 2 minutos do presidente Jair Bolsonaro, quase dois dias depois de ser derrotado nas eleições. A interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, em nota, obteve consenso na interpretação: “O STF consigna a importância do pronunciamento do Presidente da República em garantir o direito de ir e vir em relação aos bloqueios e, ao determinar o início da transição, reconhecer o resultado final das eleições”. E assim foi entendido.

A facção dos caminhoneiros que segue Bolsonaro e faz arruaça nas estradas do país, acreditou até o fim na fantasia de que houve um complô para derrotar o presidente por métodos escusos. As bandeiras do movimento têm as claras marcas da ilegalidade: repudiam o resultado de eleições limpas e pedem intervenção dos militares para por fim à democracia. Bolsonaro considerou as manifestações legítimas: “São fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”. Depois disse que os métodos da direita não podem ser os da esquerda, com “cerceamento do direito de ir e vir”.

Ao afirmar que como presidente e como “cidadão”, respeitaria a Constituição e, antes, ao agradecer os 58 milhões de votos recebidos nas urnas, entende-se que a batalha da sucessão está encerrada. Mas, como presidente, Bolsonaro não tem o direito de ser ambíguo em relação a ataques ao sistema democrático (que costuma patrocinar). Deveria ao menos pedir que as estradas do país sejam liberadas, o que acabou fazendo explicitamente só ontem à noite, em vídeo gravado no Planalto.

A resistência de Bolsonaro em aceitar o resultado - e ele não o aceitou - foi relevada em seguida ao pronunciamento do presidente, quando o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, disse que a transição de governo fora autorizada. Irado, mas impotente, Bolsonaro não teve outra alternativa, depois que todas as armas preparadas - reais ou imaginárias - para impedir o atual desfecho falharam.

A primeira esperança a ruir foi, possivelmente, a ilusão. Há sinais de que o presidente tinha certeza de que venceria as eleições, mesmo que essa probabilidade, por todas as pesquisas, se afigurasse como pequena. Junto com a derrota nas urnas veio o pior. O deputado Arthur Lira (PP-AL), seu mais fiel aliado no Congresso, disse, encerrada a contagem dos votos, que “a vontade da maioria manifestada nas urnas jamais deverá ser contestada” e acenou com diálogo ao presidente eleito, Lula. Bolsonaristas radicais, como Ricardo Salles, ex-ministro da destruição ambiental, falaram que era “hora de serenidade”. O maior vitorioso nas eleições estaduais, Tarcísio de Freitas, novo governador de São Paulo, atuou como bombeiro para convencer o presidente a aceitar o resultado.

A outra esperança de Jair Bolsonaro eram os militares. O Ministério da Defesa apoquentou até o último minuto o Tribunal Superior Eleitoral sobre a integridade das urnas eletrônicas. Recusou, porém, seu primeiro diagnóstico, após o primeiro turno, quando Lula colocou 6,2 milhões de votos à frente do presidente. O relatório continua sendo um mistério que, oficialmente, só será desvendado, se for, em janeiro. É possível que ele paire como alma penada a insuflar chances de anulação das eleições, mas isso não parece muito provável.

O fato é que o apoio político do Centrão ruiu, como esperado, ao primeiro sinal de derrota de Bolsonaro nas urnas, das quais os partidos que dão apoio ao presidente, ao contrário dele, jamais desconfiaram. Ciro Nogueira, Lira, e legendas adjacentes tinham um objetivo - o orçamento secreto - e um preço, impedir o impeachment de Bolsonaro. Os dois foram liquidados: missão cumprida. Sem respaldo político, restaram os militares que, até segunda ordem, não viram até agora motivos suficientemente fortes e claros para respaldar um atentado à democracia.

O Supremo e as instituições estão agindo com determinação para impedir que as manifestações de bolsonaristas radicais provoquem convulsões econômicas e políticas no país. Liberar as estradas é uma necessidade imediata e urgente. Manifestações pacíficas de bolsonaristas radicais, como as que ocorreram ontem em várias partes do país, com palavras de ordem contra a “ditadura democrática”, e pela intervenção dos militares, por outro lado, fazem parte do jogo. O importante é que o terreno político esteja desobstruído logo, para que a transição para o novo governo se dê de forma segura, ordeira e pacífica.

Lula tem de resgatar protagonismo do Brasil na COP27

O Globo

Ida do presidente eleito a encontro climático da ONU marcará virada — ele tem muito a explicar e a fazer

A ida do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, deverá marcar uma inflexão na política ambiental brasileira e, assim se espera, o início da recuperação do protagonismo brasileiro nas negociações sobre o clima.

O legado que Lula receberá do presidente Jair Bolsonaro na área ambiental é, literalmente, devastador. Amplas áreas da Amazônia estão entregues a grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais, com frequência atuando em conluio com o crime organizado. Desde a posse, Bolsonaro procedeu ao desmonte exaustivo e determinado das estruturas de fiscalização e punição dos crimes ambientais. O efeito passou a ser medido por hectares destruídos por motosserras, tratores e incêndios.

A consequência da política antiambiental bolsonarista é constatada no relatório das emissões de gases de efeito estufa em 2021, do Observatório do Clima. O Brasil emitiu 2,42 bilhões de toneladas de gás carbônico, recorde em 19 anos. A alta é resultado do desmatamento. O futuro governo Lula será cobrado por isso, ainda mais depois que o Brasil reviu suas metas do Acordo de Paris, comprometendo-se a cortar as emissões pela metade até 2030, em relação a 2005. Também terá de desfazer a confusão gerada pela “pedalada climática” que o governo Bolsonaro adotou para maquiar as emissões, elevando a base de comparação em 2020.

O retrospecto de Lula no combate ao desmatamento é positivo. Quando ele iniciou seu primeiro mandato em 2003, haviam sido desmatados na Amazônia, no ano anterior, 21,6 mil quilômetros quadrados. Antes de concluir o governo, em julho de 2006, a área desmatada caíra 51%, devido ao plano de controle lançado em 2004. Ao todo, incluindo seu segundo governo, a queda do desmatamento na Amazônia com Lula no Planalto (e, na maior parte, Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente) atingiu 67,6%.

O Brasil passou a ser protagonista nos debates ambientais com a Rio-92, cujo desdobramento levou à assinatura do Protocolo de Quioto, em 1997, com os primeiros compromissos de corte na emissão de gases. Sob Bolsonaro, o prestígio brasileiro virou fumaça. Ele, que já pregava contra a “indústria das multas” antes de tomar posse, tratou de tornar inviável a punição aos crimes ambientais. Abriu a Amazônia à devastação e, só nos primeiros sete meses de mandato, o desmatamento cresceu 34,4%. Em 2018, haviam sido desmatados 7.536 quilômetros quadrados. Em 2021, a devastação atingiu 13.038 quilômetros quadrados, alta de 73%, maior taxa já registrada. Não demorou para o Brasil deixar de ser ouvido em questões ambientais e tornar-se um pária diplomático.

Marina integra a ampla aliança política construída em torno da candidatura de Lula e contribuiu com o capítulo climático de seu programa de governo. As propostas envolvem reconstruir Ibama e ICMBio; proteger as terras indígenas; desmontar os esquemas criminosos para tráfico de ouro, madeira, drogas, plantas e animais; e reativar o Fundo Amazônia, onde o governo Bolsonaro congelou cerca de R$ 3 bilhões em doações da Noruega e Alemanha para financiar projetos na região. Lula ficou de anunciar seu ministro do Meio Ambiente na COP27. Espera-se que seja alguém capaz de levar a cabo a missão descrita em seu programa. Não é pouco trabalho. É preciso começar já.

Tecnologia reduz desperdício de comida e ajuda no combate à fome

O Globo

Brasil joga no lixo todo ano 27 milhões de toneladas de alimentos. Startups buscam soluções para aproveitá-los

Ao jogar no lixo todo ano 27 milhões de toneladas de alimentos, enquanto milhões passam fome, o Brasil tem a óbvia e prioritária missão de acabar com tal descalabro. A situação, revelada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), tem sido enfrentada de formas diversas no setor industrial e no varejo. A novidade são empresas conhecidas como foodtechs, startups que buscam soluções para um problema que se distribui pela produção, transporte e venda de alimentos.

Para a última safra de grãos, de 271 milhões de toneladas, não havia como armazenar 122 milhões de toneladas. O manejo deficiente dos alimentos existe em diversas dimensões. As soluções envolvem desde medidas simples de gestão de estoques para evitar que a comida estrague até investimentos na indústria de eletrodomésticos para preservar carnes e outros produtos por até sete dias sem congelar.

Quem considerava refrigeração uma questão simples mudou de ideia na pandemia, quando se tornou impossível usar certas vacinas no interior do Brasil por falta de refrigeradores adequados. No setor de alimentos, o problema é semelhante. Refrigeradores inteligentes podem aprender a rotina dos moradores e ampliar o resfriamento nos momentos de maior uso, mantendo os alimentos mais conservados.

Uma alternativa para preservar a comida é desenvolver embalagens que prescindam ao máximo de refrigeração. É o que faz a Intelligent Foods, startup cujas técnicas combinam temperatura e pressão para reduzir a ação de bactérias e micro-organismos. Com isso, tem conseguido manter a qualidade dos produtos por mais tempo em embalagens de plástico ou vidro sem usar conservantes. Um pão de forma com uma semana de validade pode ser consumido até um ano depois.

Outra empresa de tecnologia, a Raízs, procura reduzir o desperdício determinando ao agricultor que tire da terra apenas o que será consumido. Ela conecta 900 famílias de pequenos produtores ao consumidor final. Os produtos são vendidos a assinantes do serviço, permitindo prever com exatidão quando e quanto será vendido.

A doação de alimentos também requer método. A Connecting Food trabalha para organizações da sociedade civil e tem entre seus parceiros a rede de supermercados Pão de Açúcar, iFood, Nestlé e Danone. Desde 2016, transformou em 14,4 milhões de refeições 7 mil toneladas de alimentos que seriam desperdiçados em 15 estados, de acordo com a gerente de operação Priscila Socoloski.

A BRF, uma das maiores empresas de alimentos do mundo, contratou cinco foodtechs para pôr em prática um projeto social em cinco cidades de Minas Gerais. O objetivo é aproveitar alimentos que seriam descartados. Foi possível usar 3 toneladas de produtos perto do prazo de validade que estavam nas cantinas das escolas públicas das cidades escolhidas, com melhoria do cardápio. Com assessoria, o desperdício nas escolas caiu 65%. Projetos dessa natureza não bastarão para erradicar a fome no Brasil. Mas podem ajudar bastante.

Transição ao normal

Folha de S. Paulo

Alckmin à frente da equipe de preparação do governo é sinal positivo de Lula

Com sua lacônica admissão da derrota eleitoral, dois dias depois do resultado do pleito, o presidente Jair Bolsonaro (PL) afastou eventuais temores quanto a uma irresponsável obstrução do processo de transição para o novo governo.

A passagem de bastão, com a necessária transmissão de informações para os próximos gestores, está prevista em lei de 2002 e é regulada por decreto de 2010.

A legislação prevê o acesso de um coordenador e uma equipe de até 50 indicados a dados dos órgãos públicos federais —e estipula que os entendimentos comecem no segundo dia útil após o anúncio do resultado eleitoral e terminem até dez dias após a posse presidencial.

Bolsonaro, portanto, cumpriu sua obrigação formal em tempo hábil. Informalmente, na realidade, os contatos entre a equipe do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e membros da atual administração já haviam se iniciado.

Coube ao ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, acenar com salutares pragmatismo e senso de responsabilidade a representantes do candidato vitorioso.

A boa atitude do ministro nos bastidores tornou-se oficial, após o pronunciamento de Bolsonaro, que lhe atribuiu a missão de conduzir os entendimentos.

Da parte de Lula, mostrou-se sensata e promissora a indicação do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), para coordenar a tarefa. Trata-se de político equilibrado e prudente, com farta experiência como governador de São Paulo, capacidade de diálogo e ótimo trânsito no meio político, inclusive entre conservadores.

A escolha não deixa de ser um sinal —a ser confirmado— da disposição do presidente eleito de formar, como prometeu em campanha, um governo que transcenda o PT e se abra para um leque mais amplo de colaboradores e ideias. O MDB, aliás, foi convidado a ter um representante na transição.

A designação de Alckmin faz lembrar a opção para o mesmo posto por Antonio Palocci, já então um petista moderado e disposto a abraçar, como faria na pasta da Fazenda, a racionalidade econômica.

Diante dos problemas que o país terá de enfrentar, a começar por lacunas de dezenas de bilhões de reais no Orçamento de 2023, e da urgência de um reconhecimento da situação, com vistas a economizar tempo e formular políticas para o próximo ciclo, seria deplorável que se erguessem dificuldades ao longo do processo.

A alternância de poder é uma virtude da democracia que precisa transcorrer em ambiente de maturidade institucional e respeito ao bem comum. É o que o Brasil espera assistir nessa nova etapa.

Israel em círculos

Folha de S. Paulo

Fragmentação partidária e instabilidade devem levar Netanyahu de volta ao poder

Foi com um sentimento de déjà-vu que os israelenses se apresentaram às urnas, na terça-feira (1º), para a escolha de um novo primeiro-ministro. No quinto pleito desde 2019, o mais longevo político a ocupar o cargo na história do país pode voltar ao poder.

Binyamin Netanyahu conseguiu demonstrar força mais uma vez, levando seu partido à vitória. Entretanto, ainda não se sabe se a coalizão encabeçada pelo Likud conquistará a maioria dos 120 assentos do Knesset, o Parlamento de Israel.

Com quase 90% dos votos apurados nesta quarta (2), as projeções indicam que a aliança do ex-premiê pode obter até 65 cadeiras. Tamanha é a fragmentação partidária do país, no entanto, que os números da boca de urna correm o risco de não indicarem o resultado.

Netanyahu passou 15 anos no poder, dos quais 12 consecutivos. Se as projeções se confirmarem, o ex-primeiro ministro retomará o posto perdido em março de 2021, quando um bloco bastante heterogêneo de legendas conquistou a liderança do país.

A única certeza, até o momento, é que a eleição israelense marcou um avanço inaudito de partidos radicais de direita —que completam a coalização com o Likud.

O Sionismo Religioso deve se tornar a terceira força política do país, ao crescer das atuais 7 cadeiras para 14, enquanto as formações judaicas ultraortodoxas Shas e Judaísmo da Torá poderão amealhar 11 e 8 assentos, respectivamente.

Para analistas, o crescimento da aliança religiosa ultranacionalista pode ser compreendida tanto como uma reação dos eleitores à inédita ascensão de partidos árabes, ocorrida no pleito anterior, quanto reflexo de inquietações advindas de um momento de tensão maior com a comunidade palestina.

O Sionismo Religioso notabilizou-se, ao longo da campanha, por uma postura populista e agressiva contra a população árabe, ao prometer acabar com a autonomia palestina em partes da Cisjordânia ocupada, conceder imunidade legal a soldados que atirarem em palestinos e expulsar cidadãos árabes que não jurarem lealdade a Israel.

Embora Netanyahu tenha adotado um tom conciliatório ao fim da votação, um novo governo liderado por ele provavelmente deverá adotar uma política linha-dura conservadora a fim de preservar a aliança com o campo radical.

Sua vitória, ademais, a se dar por margem estreita, dificilmente será capaz de afastar a instabilidade que, nos últimos anos, vem dando as cartas na política de Israel.

Agro dá chance que o País precisa aproveitar

O Estado de S. Paulo

Agro é estratégico para o País, que pode ter papel de liderança na nova economia verde. É preciso aproveitar nossas vantagens competitivas e enfrentar gargalos e ineficiências

É inegável a importância crescente do agronegócio para o desenvolvimento social e econômico do País e para a preservação do meio ambiente. O próximo governo Lula precisa ter um olhar estratégico para o campo, capaz de vislumbrar nossas muitas vantagens competitivas e compreender o papel do Brasil na nova economia verde. O País pode e deve ter verdadeiro protagonismo no atual cenário internacional.

O mercado já tem consciência das oportunidades que esse protagonismo certamente trará. Em artigo publicado no Estadão, o gestor de investimentos Flavio Zaclis lembrou que, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), “a demanda global de alimentos aumentará em 70% até 2050”. Por esse motivo, disse Zaclis, é preciso “produzir mais e de forma mais sustentável”, pois “segurança alimentar, descarbonização da economia e sustentabilidade são temas que preocupam o mundo inteiro”. O Brasil está em posição privilegiada, argumentou ele, para “ser o grande líder dessa revolução verde” (Brasil verde, Brasil líder, 26/8/2022).

Nesse quadro, é fundamental que o apoio ao agronegócio deixe de ser apenas discurso de campanha. Para o País aproveitar as oportunidades internacionais, é preciso enfrentar, com planejamento, seriedade e capacidade de execução, os gargalos e as ineficiências nacionais. Listamos a seguir alguns pontos que o jornal considera especialmente importantes.

Em primeiro lugar, como condição prévia, está o respeito à agricultura e à pecuária nacionais. É preciso pôr fim a um olhar preconceituoso sobre o agronegócio, como se esse setor fosse vilão do meio ambiente. Na difusão dessa falsa narrativa, que deprecia o País e o trabalho de tantos brasileiros, o PT e o MST tiveram acentuada responsabilidade. É hora de abandonar o discurso ideológico e reconhecer a realidade: o produtor rural é um grande aliado da preservação ambiental, protegendo, em suas propriedades, a vegetação de mais de 20% de todo o território nacional, segundo os dados da Embrapa. As unidades de conservação abrangem cerca de 13% do território.

Na tarefa de apoio ao agronegócio, cabe ao governo ampliar o financiamento rural, em suas várias modalidades. É preciso facilitar o acesso do produtor rural aos recursos necessários para sua atividade. Em vez de representar um tratamento privilegiado, o financiamento do agronegócio significa investir no Brasil de forma estratégica, onde ele é mais competitivo. Apesar do discurso de apoio ao campo, o governo de Jair Bolsonaro descuidou, diversas vezes, da provisão de recursos para o Plano Safra.

Outra frente prioritária é a abertura de novos mercados para os produtos brasileiros, com a expansão das praças já existentes. Além de pragmatismo para defender de forma eficiente os interesses nacionais no cenário internacional, é preciso especial cuidado com o tema do meio ambiente. De forma inteiramente irresponsável, o governo Bolsonaro arrasou com a imagem do Brasil no mundo, como se o agronegócio brasileiro estivesse indiferente à questão climática e, para produzir, precisasse descumprir a legislação ambiental. Para piorar, teve até ministro do Meio Ambiente envolvido em escândalo de extração de madeira ilegal.

Em 2023, será necessária uma atitude completamente diferente do governo brasileiro, que não apenas repare os danos reputacionais gerados nos últimos quatro anos, mas promova uma efetiva representação, institucional e comercial, apta a inserir, de forma vantajosa, o Brasil e seus produtos no mercado internacional.

Por último, mas não menos importante, é necessário ampliar e aperfeiçoar a infraestrutura do País para o agronegócio – logística, armazenagem e comunicação –, assegurando as correspondentes fontes de investimento.

“O Brasil tem vocação verde. O Brasil tem tudo para ser o grande líder do planeta nessa área. É uma oportunidade colossal”, afirmou o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. Esse protagonismo não é uma utopia. O setor privado está fazendo a sua parte. Cabe ao próximo governo, atento a esse cenário de oportunidades, assumir sua responsabilidade.

O ativismo das medidas provisórias

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro é o presidente que mais editou MPs. Foram 271 em quatro anos, num explícito abuso dessa atribuição. É preciso respeitar os requisitos de relevância e urgência

Até o fim de outubro, Jair Bolsonaro editou 271 medidas provisórias (MPs). Com isso, desde a Emenda Constitucional (EC) 32/2001, que limitou a uma única vez a prorrogação desses atos, Jair Bolsonaro tornou-se o recordista absoluto na edição de medidas provisórias, superando até mesmo Luiz Inácio Lula da Silva, que, no primeiro mandato, editou 240 MPs. Diante desses números, a indicar mais de uma medida provisória por semana, deve-se alertar que esse instrumento constitucional, muito útil em algumas situações, pode ser também perigoso para o País.

A Constituição estabelece que o presidente da República tem o poder de editar medidas provisórias com força de lei em casos de relevância e urgência. Essa atribuição é parte do sistema de pesos e contrapesos entre os Poderes, conferindo uma competência típica do Legislativo – editar atos com força de lei – ao Executivo, como forma de remediar uma situação relevante e urgente.

Um presidente da República extrapola seus poderes constitucionais quando utiliza medidas provisórias simplesmente para pautar o Congresso. Elas não são um instrumento adequado para tal finalidade, uma vez que produzem efeitos imediatos. Por isso, existem os requisitos de relevância e urgência.

Há quem pense que o exagero na edição de medidas provisórias não teria maiores problemas, uma vez que o Congresso terá depois de ratificá-las. De fato, a Constituição assegura que a decisão final sobre o tema é do Legislativo. “As medidas provisórias (...) perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7.º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes” (art. 62, § 3.º). O problema é que, mesmo que não sejam convertidas em lei, as medidas provisórias produzem efeitos imediatos. Assim, o abuso na edição dessas medidas gera instantaneamente insegurança jurídica.

O fato de Jair Bolsonaro ser o presidente que mais editou medidas provisórias é contraditório com o discurso de simplificação normativa, como caminho para melhorar o ambiente de negócios. Quem edita muitas medidas provisórias cria necessariamente um cenário de instabilidade e de incerteza sobre o ordenamento jurídico.

Além de proibir sucessivas reedições, a EC 32/2001 estabeleceu outro limite para as medidas provisórias. Desde 2001, a Constituição define uma série de matérias que não podem ser objeto de medida provisória. Além de prover uma proteção adicional da competência do Congresso, essa proibição é um modo de evitar surpresas em assuntos especialmente sensíveis, que exigem previsibilidade. Por exemplo, a EC 32/2001 vedou a edição de medida provisória sobre matéria que “vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro”. Com isso, o Congresso impediu que algum governo venha a repetir o que fez o Plano Collor em março de 1990, por meio de uma medida provisória.

A Constituição também proíbe “a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo”. Jair Bolsonaro já descumpriu essa limitação, o que fez o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre, devolver a MP 979/2020, que dava poderes ao ministro da Educação para nomear, sem ouvir as comunidades universitárias, reitores de universidades federais. No mesmo ano, o Congresso já havia rejeitado a MP 914/2020, que tratava, entre outros assuntos, da escolha de dirigentes de universidades federais.

Algumas vezes, as medidas provisórias são necessárias. Há assuntos relevantes e urgentes cuja espera do processo legislativo normal poderia causar danos irreparáveis. No entanto, é preciso realismo. A edição de 271 MPs em quatro anos indica um uso abusivo dessa atribuição. Não pode haver ativismo judicial, como também não pode haver ativismo do presidente da República com medida provisória. Nos dois casos, violam-se as competências do Congresso.

Névoa econômica e o novo governo

O Estado de S. Paulo

Incerteza fiscal dificulta previsões e pode retardar o corte dos juros, complicando a retomada do crescimento

Dissipar a névoa econômica deve ser uma das principais tarefas do presidente eleito e de sua equipe, neste fim de ano e nas primeiras semanas de mandato. Um horizonte mais claro é essencial para os grandes investidores, para os empresários, para as famílias e também para os formuladores da política de juros, muito importante para as condições de consumo e de produção. A última decisão sobre os juros básicos, mantidos pela segunda vez em 13,75%, foi tomada diante de um cenário com “visibilidade abaixo do normal”, segundo avaliação do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (BC). A deliberação foi oficializada na quarta-feira, 26/10, na reunião periódica do grupo, quatro dias antes do segundo turno da eleição.

A visibilidade é muito baixa até 2024, em todo o horizonte relevante para as decisões políticas sobre juros e crédito, ressalta o Copom, formado por diretores do BC. A grande incerteza sobre o curto e o médio prazos, citada na ata da última reunião, foi destacada neste ano em todos os comunicados do Comitê. A insegurança quanto à evolução da economia brasileira decorre de fatores externos e internos.

Fortes pressões inflacionárias, juros em alta e perda de ritmo das atividades marcam o cenário internacional. Todos esses fatores embutem riscos para o Brasil. O aumento de preços nas grandes economias e o aperto financeiro impõem cautela ao Copom, tornando perigosa uma rápida redução da taxa básica no País. Além disso, uma desaceleração mais forte da economia mundial pode prejudicar as exportações e afetar as contas externas brasileiras, por enquanto bastante sólidas.

Do lado interno, as incertezas sobre a evolução das contas públicas compõem o principal fator de insegurança mencionado na ata da última reunião do Copom. As bondades eleitoreiras do presidente Jair Bolsonaro inflaram os custos orçamentários previstos para 2023, motivando mais preocupações em relação ao quadro fiscal. Também o candidato da oposição assumiu compromissos custosos, como o de manter o Auxilio Brasil de R$ 600. No projeto de Orçamento ainda no Congresso está previsto o valor de R$ 405. Por esse e por outros compromissos, também o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, eleito no segundo turno, contribuiu para tornar inseguro o quadro fiscal do próximo ano.

Com essas incertezas, é compreensível a cautela do Copom. Além do cenário enevoado de 2023 e de 2024, é preciso levar em conta a inflação interna ainda elevada, apesar do recuo recente. Pelas últimas projeções do mercado, resumidas no boletim Focus de segunda-feira, a inflação deste ano, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), deve ficar em 5,61%, superando mais uma vez o teto da meta (5%). A estimativa para 2023 foi mantida em 4,94%, repetindo a da semana anterior. A taxa básica de juros deve diminuir de 13,75% para 11,25% no próximo ano, de acordo com a pesquisa. Ainda muito alta, será um entrave ao crescimento: um motivo a mais para o presidente eleito cuidar da redução da insegurança.

 

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