domingo, 13 de novembro de 2022

Rolf Kuntz* - Lula, o cercadinho e o mundo prosaico

O Estado de S. Paulo

O presidente eleito andou falando como se pudesse ignorar o mercado, os limites das contas públicas e a maior vulnerabilidade dos pobres aos males da inflação.

Lula prometeu governar para todos, mas poderá governar para ninguém, ou só para os especuladores, se confundir governo com gastança e irresponsabilidade fiscal. Não é preciso desarrumar as contas públicas, nem provocar inflação, para aumentar a atividade, expandir o emprego e reduzir a pobreza. Mas a confusão foi indisfarçável em suas primeiras declarações sobre economia. O presidente eleito falou como se estivesse diante de um cercadinho, discursando para um público simplório, uniformizado e disposto a aplaudir uma fala simplista e cheia de boas intenções. As ações despencaram, o dólar subiu e o presidente eleito fez cara de espanto. Quem poderia imaginar um mercado tão sensível? Mas espantoso, mesmo, foi o escorregão de um político habilidoso e experiente, ao se manifestar como se estivesse diante de uma torcida com camisas vermelhas decoradas com o número 13.

Eleito sem plano e sem projetos, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva triunfou graças a cidadãos empenhados em derrubar o bolsonarismo. Não teria vencido, se dependesse apenas de seu partido. Sem vínculo com o petismo, acadêmicos, empresários, políticos e economistas o apoiaram, em nome de um compromisso democrático. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro fez o suficiente, em quatro anos desastrosos, para estimular muita gente a votar no número 13.

Lula deve ter percebido tanto o risco de se apoiar apenas no PT quanto as expectativas de seus aliados. A diversidade da equipe de transição – atribuível, em boa parte, à ação do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin – corresponde, aparentemente, à diversidade da aliança eleitoral. Mas Lula, apesar de sua experiência no Brasil e no exterior e de sua reputação internacional, parece destinado a retornar, de vez em quando, aos palanques sindicais do ABC.

Nesses momentos, ele fala e parece raciocinar como se estivesse numa daquelas assembleias ou comícios. Mas o mundo de um governante, ou de qualquer executivo de peso, é muito mais complexo, mais conflituoso e mais contaminado pela presença do tal mercado, cheio de gente ansiosa, movida pela ambição e pelo cálculo e preocupada com previsibilidade e segurança.

Nenhum presidente respeitável governa para o mercado ou com o mercado, mas todo administrador público deve reconhecer sua relevância e entender seus sinais. Não há governo eficaz quando a incerteza afeta as decisões empresariais, alimenta a especulação, provoca fuga de capitais, gera instabilidade cambial, desarranja os preços e força a alta de juros.

Todos esses problemas foram constantes durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro, um período marcado por muito voluntarismo e muita improvisação, antes, durante e depois da pior fase da covid-19. As dificuldades orçamentárias previstas para 2023, início do novo governo, resultam em boa parte do estilo de ação do atual presidente. As boas normas fiscais foram atropeladas muitas vezes, a partir de 2019, e a economia andou mal durante a maior parte do tempo. Desajuste fiscal e inflação elevada aparecem também no balanço de governo da presidente Dilma Rousseff, coroado com dois anos de severa recessão.

Estranhamente, o presidente eleito parece haver extraído pouco ou nenhum ensinamento dessas experiências. Ainda mais estranho é o aparente esquecimento de seus oito anos na Presidência, uma fase de razoável prosperidade, inflação contida e contas públicas administradas com cautela durante a maior parte do tempo. Essa cautela diminuiu no segundo mandato e foi abandonada de forma desastrosa por sua sucessora – um detalhe menosprezado ou omitido pelo líder petista.

Nenhuma política de crescimento, de emprego, de transferência de renda e de transformação social é imune aos danos produzidos por desajustes fiscais e pela inflação. Além disso, os pobres são os mais afetados pela alta de preços, como lembrou, nesta semana, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Por isso, observou o economista, a responsabilidade fiscal, importante para o crescimento com estabilidade de preços, é especialmente benéfica para os mais necessitados.

Que as famílias de menor rendimento sejam as mais prejudicadas pela inflação é fato conhecido em todo o mundo. No Brasil, as perdas inflacionárias por classe de renda são apontadas em tabelas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mesmo sem detalhes técnicos, no entanto, é fácil perceber a vulnerabilidade maior dos pobres, com orçamentos inflexíveis e concentrados em poucos itens essenciais, como alimentação, habitação e transporte público. Sobra pouco para a educação das crianças, e assim se transfere a pobreza às gerações seguintes.

O novo governo acertará, econômica e socialmente, se der prioridade a políticas de crescimento e de resgate dos mais necessitados. Mas acertará, também, se reavaliar e reduzir os benefícios fiscais, cortar e remanejar os gastos e negociar com o Congresso – mobilizando apoio popular – novos padrões de austeridade. Governar é fazer escolhas e a escolha dos gastos é uma das mais importantes.

*Jornalista

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