Valor Econômico
Despesas autorizadas pela PEC vão para os
mais pobres e o serviço da dívida, para o sistema financeiro
Richard Feynman, laureado com o Nobel de
física, gênio inconteste, considerado um dos maiores professores de todos os
tempos, tinha, como todo iconoclasta, outros interesses além da física - era
percussionista. Quando veio ao Brasil, no início dos anos 1950, dar aulas para
um seleto grupo de alunos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, costumava
se infiltrar nos ensaios da bateria de uma escola de samba.
Como conta em “Sure You’re Joking, Mr
Feynman”, costumava atravessar o ritmo, o que levava o diretor da bateria a
interromper e exclamar: o americano, outra vez! Pois bem, peço emprestada a
exclamação do diretor da bateria: os juros, outra vez, ameaçam a retomada do
desenvolvimento.
O tema é árido, sei bem, mas da mais alta relevância. Insisto em tentar despi-lo da roupagem tecnocrática que o torna inacessível. Sejamos o mais simples e direto possível. Vamos aos fatos. Desde o início de 2021, o Banco Central elevou a taxa básica de juros de 2,75% para 13,75% hoje. São 11 pontos de percentagem.
A dívida pública interna, cujo nome
completo é Dívida Pública Mobiliária Federal interna, DPMFi, em setembro deste
ano de 2022, era de R$ 5,5 trilhões, ou aproximadamente 75% do PIB. Esta é a
chamada dívida bruta. Dela devem ser deduzidas as reservas internacionais,
detidas pelo Banco Central, para chegar à dívida líquida de aproximadamente 50%
do PIB, mas é a dívida bruta que passou a ser a referência para os analistas
preocupados com a sua sustentabilidade. Embora seja evidente que o valor em
caixa deva ser deduzido da dívida bruta para se chegar à sustentabilidade do
endividamento de qualquer entidade, os profetas do abismo fiscal conseguiram
tornar a dívida bruta a referência para a sua “sustentabilidade”. As aspas são
propositais, pois o conceito em relação ao endividamento interno, em moeda
nacional de um país com moeda fiduciária, não tem definição clara.
Há endividamentos de todas as magnitudes,
muitos países com dívidas superiores ao PIB, alguns com até mesmo mais de duas
vezes o PIB, sem que tenham se tornado insustentáveis. Mas este não é o tema
desse artigo, que pretende ser o mais simples e direto possível. Voltemos aos juros.
Desde que o Banco Central passou a elevar a
taxa básica, o custo médio de emissão da dívida, segundo o Relatório Anual da
Dívida Pública do Tesouro Nacional, passou da mínima histórica de 4,44% ao
final de 2020, para 8,49% em 2021. Ainda não há dados publicados para o ano de
2022, mas com certeza, dada a contínua elevação da taxa básica, deve ter sido
ainda mais alto. Como afirma o relatório do Tesouro, “os indicadores de custo
médio da dívida acompanharam o movimento da taxa básica Selic e seus reflexos
sobre a curva de juros doméstica”. Paremos aqui um instante. O Banco Central
fixa a taxa básica Selic, que como reconhece o relatório do Tesouro, é
refletida - o correto seria dizer que determina - toda a estrutura da curva de
juros e o custo da dívida. Quanto custou a dívida nesses últimos anos?
Os juros pagos aos detentores da dívida, o
custo médio da dívida para o Tesouro passou de 7,15% em 2020, para 8,9% em 2021
e está em 10,8% neste ano de 2022. O custo médio acompanha de perto o custo de
emissão, ou de rolagem da dívida, porque uma parte expressiva da dívida, perto
de 40%, é indexada à taxa básica e o prazo médio da dívida é relativamente
curto, apenas quatro anos. Mas não nos deixemos, como prometido, entrar em
tecnicalidades. Fato é que a elevação da taxa básica pelo Banco Central nos
últimos três anos, custou ao Tesouro (8,9% - 7,15%) = 1,75% do PIB em 2021 e
(10,8% - 7,15%) = 3,65% do PIB em 2022.
A “PEC da Transição”, que autorizou gastos
acima do teto num valor de até R$ 169 bilhões, por isso chamada pela “Folha de
S. Paulo” de “PEC da gastança” e pela CNN de “PEC do estouro”, representa algo
próximo de 2,2% do PIB. É um pouco superior ao custo adicional da dívida,
devido à elevação da taxa básica pelo Banco Central, em 2021 e bem inferior ao
custo adicional da dívida, pelo mesmo motivo, em 2022. Sem entrar no mérito das
despesas autorizadas, deve-se lembrar que grande parte delas é para garantir o
valor das transferências em R$ 600 e o auxílio de R$ 150 a famílias com
crianças até seis anos de idade, o programa assistencialista que tem apoio
praticamente unânime no país.
Criado originalmente pelo governo de
Fernando Henrique Cardoso, foi expandido como o Bolsa Família nos governos do
PT, mantido nos governos Temer e Bolsonaro e compromisso de campanha de
praticamente todos os candidatos à presidência em 2022. São gastos públicos,
efetivamente uma injeção de recursos na economia. Exatamente como é também o
adicional de juros do serviço da dívida.
O pagamento de juros sobre a dívida é um
gasto público como qualquer outro, uma injeção de recursos na economia. A
diferença é ser contabilizado como despesas não-primárias e não ser computado
para o teto dos gastos. A contabilidade orçamentária foca nos gastos primários
e, sintomaticamente, exclui o serviço da dívida do teto dos gastos.
A ênfase nos gastos primários e a exclusão
dos juros sobre a dívida do teto dos gastos, cujo valor quase nunca é mencionado,
estão baseadas no pressuposto de que o serviço da dívida estaria fora do
controle do governo. Seria dado por condições do mercado. Falso, como reconhece
o relatório do Tesouro. A taxa básica de juros fixada pelo Banco Central é o
principal determinante do custo da dívida, logo a ação do Banco Central é o
principal determinante das despesas não primárias do Estado.
Os gastos aprovados pela PEC, além das
transferências do bolsa família, irão recompor recursos para a saúde, a
educação, a cultura, a ciência e a tecnologia. Já o serviço da dívida, os juros
pagos nos títulos do Tesouro, vão para os seus detentores. Quem são esses
detentores da dívida? Voltemos ao Relatório do Tesouro. Lá está que 53,6% da
dívida é detida por instituições financeiras e fundos de investimentos. O
restante é distribuído entre fundos de Previdência, 22,7%, seguradoras, 4,0%, o
próprio governo, 4,3%, e não residentes, 9,2%. Ou seja, enquanto as despesas
autorizadas pela PEC vão em grande parte para a população necessitada, via
transferências, serviços de saúde, educação e saneamento, o serviço da dívida
vai primordialmente para o sistema financeiro e os mais afortunados que tiveram
renda e foram capazes de poupar.
O aumento dos gastos públicos pode
efetivamente provocar inflação. Gastos públicos são demanda por bens e serviços
que, quando a economia está próxima do pleno emprego, pode pressionar a
capacidade instalada, provocar déficits nas contas externas e elevar a
inflação. Esta seria uma inflação de demanda. Mais uma vez sem entrar em
tecnicalidades, a inflação não é um fenômeno único.
A inflação de hoje, provavelmente em toda
parte, mas com certeza no Brasil, não é de demanda. É fruto da desorganização
da produção durante a pandemia e da alta dos preços de energia devido ao
conflito na Ucrânia. Por isso, a inflação aqui cedeu com a redução dos impostos
sobre os derivados de petróleo, não por causa da alta dos juros básicos. Esta é
uma afirmação passível de ser contestada, dado que não há como comprovar
causalidade, mas o Banco Central começou a subir os juros há dois anos e a
inflação só deu sinais de arrefecimento com a desoneração fiscal de 2022. Como
observou uma matéria do “The Economist”, uma revista conservadora e expoente da
ortodoxia econômica, na edição de final de outubro de 2022, o grupo de países
que mais agressivamente subiram as taxas de juros depois da pandemia, Brasil,
Chile, Hungria, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Peru e Polônia, que a
revista chamou de “Hikelandia”, terra dos altistas, numa tradução livre,
tiveram um desaquecimento da economia em relação aos demais países. Já a
inflação média continuou teimosamente alta, elevou-se 3.5 pontos de percentagem
desde março de 2022. Ao contrário do que se poderia prever, a diferença entre a
inflação do grupo dos altistas e a dos demais países parece ter aumentado, não
diminuído.
O Brasil tem hoje a taxa básica de juros
real mais alta do mundo. Com a Selic de 13.75% e uma inflação anual de 5,9%, o
juro real básico é de quase 7,5%. Não apenas é a mais alta taxa real do mundo,
como é mais do dobro da do segundo colocado neste triste concurso, o Chile.
Para efeito de comparação, a taxa de inflação nos EUA é superior a 9% ao ano,
mas a taxa básica só agora se aproxima de 4% ao ano. A taxa real ainda é,
assim, altamente negativa. O mesmo vale para a Europa, a Inglaterra e o Japão,
todos com taxas básicas reais negativas. No mundo hoje, só o Brasil garante aos
rentistas uma taxa real perto de 8% ao ano sem risco e com liquidez imediata.
Sem risco, sim, pois a dívida pública de um país com moeda fiduciária e um
Estado institucionalizado não tem risco de crédito. Pode ter risco político,
mas não tem risco de crédito.
Como reconheceu há alguns meses um renomado
gestor de ativos financeiros, sócio durante muitos anos do ministro Paulo
Guedes, não há investimento real que se justifique com um retorno real desta
magnitude. Num mundo onde é praticamente impossível garantir retornos positivos
sem alto risco, é uma excrecência que inviabiliza o investimento. Sem
investimentos reais, isto é, na expansão da produtividade e da capacidade
instalada, não há retomada do crescimento que se sustente, nem conversão
possível para uma economia produtiva descarbonizada.
As despesas públicas, sejam elas primárias
ou vinculadas ao serviço da dívida, expandem a demanda agregada e podem vir a
pressionar a inflação. Pode-se compreender que ambos fossem motivo de crítica,
mas protestar contra os gastos autorizados pela PEC e simultaneamente defender
a manutenção das absurdas taxas de juros fixadas pelo Banco Central desafia a
lógica. São dois pesos e duas medidas. O gasto primário, para atender
necessidades básicas da população carente, seria inflacionário, mas o gasto com
o serviço da dívida, com o bolsa rentistas, não. Seria importante ouvir a justificativa
e dos economistas autodenominados liberais, assim como de seus porta-vozes que
pontificam na mídia para esta distinção. Enquanto isso só nos resta exclamar
como o diretor da bateria do Feynman: os juros, outra vez!
*André Lara Resende é economista
"Despesas autorizadas pela PEC vão para os mais pobres e o serviço da dívida, para o sistema financeiro"
ResponderExcluirFaltou dizer q, nos governos LULA, os mais pobres ficaram menos pobres e os ricos ficaram mais ricos. Foi bom pra todos.
"O gasto primário, para atender necessidades básicas da população carente, seria inflacionário, mas o gasto com o serviço da dívida, com o bolsa rentistas, não."
ResponderExcluirLULA tentará resolver isso. Mas com cuidado, muita calma nessa hora - ele pode ser impichado.
Os juros, sempre os juros... Como sempre altos no Brasil, e agora muito mais que abusivos. Resultado: dívida pública disparando, como mostra o colunista. Obrigado, Jegues, grande ministro do DESgoverno Bolsonaro, o jêniu que comandou a economia do GENOCIDA e fez de tudo pra oferecer um segundo mandato pro miliciano mentiroso...
ResponderExcluirÉ que o jegue tem uma qualidade que nenhum tem, ele faz tudo que o mestre mandar, extremamente maleável.
ResponderExcluirEntendi. Ele é o Pazuello da Economia...
ResponderExcluirMestre André,
ResponderExcluirquando a turma do Feynman foi convidado para tocar na festa dos gringos, o mestre escolheu o brilhante físico para fazer parte do grupo dos músicos.
Não só porque ele já não atravessava o ritmo, mas porque ele falava a língua de quem iria lhes remunerar.
A sagacidade dos mestres está além dos ouvidos comuns.