O Estado de S. Paulo.
Precisamos nos alçar até o degrau superior de uma escada para de lá delinear um horizonte que nos sirva como meta e aspiração
Se o número de ministérios do governo que
ora se inicia for uma boa indicação da qualidade do programa que ele pretende
implementar, estamos feitos; teremos um governo supimpa.
Infelizmente, no Brasil, em geral acontece o contrário; o presidente quebra a cabeça para encaixar três dúzias de aliados nos ministérios e depois cada um sai à cata de um programa. Ignorando, na maioria dos casos, quais deveriam ser os afazeres de cada um, prefiro me manter a uma prudente distância do emaranhado programático. Abro uma exceção para a Educação. Pelo menos nessa área, atrevo-me a pensar que o governo entrante têm ciência de que a situação brasileira é catastrófica, não comportando reforminhas encabuladas como as que temos tido há séculos.
É patente que não temos – nem o governo nem
nós, cá na planície –, sequer um esboço aceitável do que precisa ser feito.
Mas, relembrando o saboroso conselho de Lewis Carroll, “para quem não sabe
aonde quer ir, qualquer caminho serve”. Esse, realmente, é o problema. Faz
décadas que martelamos uma verdade elementar – não conhecemos o Brasil. Verdade
já enunciada em incontáveis versões, mas hoje peço vênia para oferecer mais
uma. Sugiro que não sabemos aonde queremos ir porque não nos debruçamos sobre
questões inarredáveis como a de nossa capacidade de agir como povo, de nos
organizarmos, de nos alçarmos até o degrau superior de uma escada para de lá
delinear de forma realista um horizonte que nos sirva como meta e aspiração.
Admitamos, para abreviar a conversa, que
não temos chance alguma de atingir o nível de vida da Alemanha ou dos Estados
Unidos. Compreensivo, relembro o ideal do “Brasil Grande Potência” dos tempos
do general Ernesto Geisel, mas apresso-me a fugir dele, pois meu medo, no
momento, é o de que venhamos a perder mais uma ou duas décadas. Os economistas
talvez possam estimar de uma maneira mais precisa o lapso de tempo de que
precisaríamos para nos igualarmos à Alemanha de hoje. Uns 300 anos, suponho,
mas ela já estará bem à frente se e quando lá chegarmos. Especular sobre os
Estados Unidos parece mais simples. Nesta década, nossa renda anual por
habitante deve estar em torno de um quarto da do Mississippi, o Estado mais
pobre da federação norte-americana. Não tenho em mãos os dados necessários para
uma comparação adequada, mas lembro que os 10% mais ricos do Brasil detêm algo
como 55% da riqueza e da renda de nosso país. Essa marca, desconfio que nem o
Alabama é capaz de atingir.
Estamos, pois, numa encruzilhada. Podemos
insistir no projeto do Brasil Grande Potência – pelo menos é certo que podemos
suprir alimentos e outras commodities para o mundo todo. O problema é que no
mínimo metade de nossa população em idade escolar está num nível provavelmente
inferior ao do Alabama e do Mississippi; e esse problema nem um milagre
resolveria, pois de nada adiantaria educarmos tal multidão em poucos anos, se
não tivermos como oferecer-lhe empregos estáveis e razoavelmente bem
remunerados. Nesse particular, convém lembrar que nossa pujante agricultura já
não cria tantos empregos, e que o setor industrial, que já representou 27% do
PIB, hoje anda pela casa dos 11%.
Para não fechar este texto num timbre
soturno, ocorreme rascunhar alguma coisa sobre o sistema político. Se
lográssemos aprimorar rapidamente as instituições de governo e a relação delas
com a sociedade, quem sabe poderíamos cogitar um futuro um pouco mais
ambicioso? Vejamos alguns números. Em sua valiosa publicação sobre o grau de
“democraticidade” de todo o mundo relativo a 2020, a Economist Intelligence
Unit (afiliada à revista The Economist) colocou o Brasil e a Argentina mais ou
menos no meio da escala, numa categoria que a revista designa como “democracias
defeituosas”. Referindose a um período de queda generalizada, devido à
pandemia, a estrela do mencionado levantamento foi Taiwan, que subiu 20 posições
na classificação, do 31.º para o 11.º lugar, e mudou de categoria, passando da
condição de “democracia defeituosa” para a de “democracia plena”. Na direção
oposta – ou seja, um desempenho notavelmente vexaminoso – sobressaíram os casos
da França e dos Estados Unidos, que permaneceram bem colocados na classificação
geral, mas caíram do status de “democracia plena” para a de “democracia
defeituosa”. A América Latina obviamente não sai bem na foto, mas com uma
importante exceção: o Uruguai, único país “plenamente democrático” da região,
ocupando o 8.º lugar.
Quem sabe por aí poderíamos nos certificar
se há mesmo alguma luz no fim do túnel? Esquecendo a Alemanha, os Estados
Unidos e a grande potência do general Geisel, poderíamos encarar com realismo a
hipótese de um país capaz de propiciar melhores condições de vida aos cidadãos,
garantindo-lhes saúde e saneamento? Para tanto, o que se faz mister é reduzir
drasticamente as desigualdades sociais e regionais, recuperar a indústria, a
fim de assegurar um nível adequado de emprego e defesa, e manter, como o
Uruguai, o devido apreço pelo regime democrático. •
*Cientista político, Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Ótimo artigo.
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