terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Carlos Andreazza - Agradamentos alcolúmbricos

O Globo

A PEC da Transição, como aprovada no Senado, é obra-prima da acomodação. Contempla a todos. Amarra tudo. (Amarra também o Supremo, não sem contemplar os ministros que fazem cálculos políticos.) Daí por que avance tão rapidamente. Resolve o Orçamento do governo Lula, encaminha as reeleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco às presidências das Casas legislativas, assegura as emendas dos alcolumbres e faz fechar as contas de Bolsonaro.

Um arranjo perfeito.

A perfeição oportunista do bicho se pode medir no puxadinho que projetará mais cerca de R$ 23 bilhões para fora do teto de gastos, espécie de bônus a depender do nível de arrecadação. Com efeito já para 2022, a gambiarra ao mesmo tempo permitirá que Bolsonaro evite a paralisação da máquina e que Lira e Pacheco honrem os compromissos bilionários em emendas parlamentares do orçamento secreto. As granas estavam bloqueadas. Agora andarão. Andando, farão rir. A boiada passa. Ficam todos felizes.

O lance é o fluxo. A fluência do fluxo. Não interrompa o fluxo — e a mágica acontece. A PEC é a da continuidade do fluxo. Da transição sem traumas.

A PEC da Transição é, antes e acima de tudo, a da manutenção de um esquema de poder. É, usando a urgência da tragédia social brasileira, engenharia para que a troca de governos sustente e até amplie o sistema antirrepublicano que produziu o orçamento secreto.

Pode-se armar a cena de resistência que for e vender que sairá mais caro. Não convence. O projeto andará celeremente também na Câmara. Há acerto. Donde a confiança em que será aprovado sem modificações. Note-se que o relator-geral do Orçamento tem seu parecer pronto e o apregoa mesmo antes de a PEC estar aprovada. Tem o Orçamento para 2023 preparado antes da aprovação da emenda à Constituição que lhe daria — dará — viabilidade. Tem o Orçamento encaixado e divulgado já prevendo os bilhões com que a PEC o inflará. É muita certeza.

Há outros sinais emitidos. Lira está a fim. Mandou atropelar o rito e apensar a PEC a outro projeto já com tramitação avançada. Irá diretamente a plenário. E fala-se no deputado Elmar Nascimento, senhor da Codevasf, para relatá-la. Se não for Elmar, será um elmar. Será rápido. O Orçamento, engordado pela PEC, poderá levar os vales do São Francisco e do Parnaíba para muito além de seu já fabuloso esticamento até o Amapá. A PEC já passou.

O código para o acordo está no volume de espaço fiscal liberado pela elevação do pé-direito do teto de gastos. Os R$ 145 bilhões pagarão — com sobras — o Bolsa Família a R$ 600, os R$ 150 adicionais por criança de até 6 anos, o aumento real do salário mínimo e as recomposições dos programas Farmácia Popular e Minha Casa Minha Vida. Com sobras.

Atenção às sobras.

Está dito que outras áreas prioritárias para a alocação dos dinheiros serão infraestrutura e investimentos em geral — algo tão vago quanto o necessário para obras Brasil adentro e aquisição de equipamentos Brasil afora. Eis a música. A turma embarca. Nada muda.

A PEC da Transição oferece muitas oportunidades a emendas parlamentares e contém até um plano B para o improvável caso de o Supremo declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto. O texto amplia o poder do Parlamento sobre a alocação de recursos ao permitir que as comissões permanentes solicitem ao relator-geral a destinação de dinheiros que ficarão livres no Orçamento. Amplia, a rigor, o já imenso poder do relator sobre o destino das gorduras.

Prevenção que me parece desnecessária. O pacto pela aprovação da PEC tem por costura também a negociação para que o STF não conclua o julgamento das ações sobre o orçamento secreto neste ano. Ficaria para depois das reeleições de Lira e Pacheco. Se ficar. A cúpula do Congresso maneja para que os meses corram, e os ministros se deem por satisfeitos com novas promessas de tornar o bicho compatível com os princípios constitucionais da transparência e da impessoalidade.

O papo de modulação vem daí. Modular para que, afinal, quede-se constitucional que o destino de porções bilionárias do Orçamento, inclusive para Saúde, continue a depender da vontade autoritária dos dois ou três donos do Parlamento.

Note-se que o relator-geral do Orçamento preparou sua proposta prevendo não apenas os bilhões ainda não aprovados da PEC — mas também contendo os bilhões para emendas do relator, a fachada para o exercício do orçamento secreto. Está confiante em que tudo fique mesmo como está. Ou talvez ainda melhor. Com orçamento secreto e ainda outros dinheiros para emendamentos — agrados alcolúmbricos — que aprofundem a governabilidade de Lula.

A PEC da Transição, sem dúvida, pacifica.

 

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