O Estado de S. Paulo
A forma mais prática de desejar um bom ano novo é com uma ampla proposta de como explorar nossos horizontes nos próximos quatro anos
A melhor maneira de um país aproveitar o
ano novo é explorar seu horizonte de possibilidades. Dito assim, é muito
abstrato. Segundo Yuval Harari, no seu livro Sapiens, horizonte de
possibilidades significa o espectro de crenças, práticas e experiências que se
apresentam diante de determinada sociedade, considerando suas limitações
ecológicas, tecnológicas e culturais.
Uma sociedade, ou mesmo um indivíduo, nunca
explora totalmente seu horizonte de possibilidades. Mas, diante de um novo ano,
é razoável tentar realizar o máximo.
As chamadas limitações ecológicas, no caso
brasileiro, são um ponto decisivo no seu horizonte de possibilidades. Depois da
destruidora política ambiental do governo Bolsonaro, Lula fez um discurso
animador em Sharm el-Sheikh, no Egito.
O novo governo promete conter o desmatamento na Amazônia, expulsar garimpeiros das terras indígenas, fortalecer a exploração sustentável e abrir-se para a cooperação internacional.
Se levadas a cabo, essas decisões terão um
papel econômico. A retenção do carbono na floresta pode render dividendos, o
fim do garimpo ilegal deve reduzir os problemas de saúde provocados pelo
mercúrio e o combate ao desmatamento pode garantir um regime de chuvas regular
para nossa agricultura.
O replantio da floresta destruída tem
possibilidades de abrir milhares de postos de trabalho. Mas seria limitado
pensar a economia verde apenas nos termos da floresta. A transição energética
para a produção de energia eólica e solar é outro caminho promissor.
Na verdade, a simples expressão economia
verde já é limitada. Há toda uma economia azul que pode ser explorada ao longo
de nosso costa. Tenho visto experiências vitoriosas de criação de moluscos como
vieiras e coleta de algas que servem para sabão e protetores solares. A própria
Marinha do Brasil já produziu uma coletânea intitulada Economia Azul, que pode
ser uma referência.
Uma das nossas limitações infraestruturais
é a dificuldade de acesso à internet. Já foi prometida uma bolsa para facilitar
a inclusão. Mas é preciso tornála mais fácil, eficaz e barata. As chances de
aumentar a renda das pessoas são muito maiores quando estão conectadas.
Esses dois pilares – economia verde no
sentido mais amplo e inclusão digital – são instrumentos para que exploremos
melhor nosso horizonte de possibilidades.
ATemos limitações culturais e políticas,
que podem ser atenuadas. As culturais são muito amplas e difusas para tratar
aqui – além do mais, não se resolvem facilmente no espaço de um ano.
No trabalho cotidiano, costuma-se
acentuá-las. Durante a Copa do Mundo, todos acharam normal que o Brasil
vencesse a Coreia por 4 a 0 no primeiro tempo e, no segundo tempo, simplesmente
tenha parado de jogar. Achei que havia algo a discutir neste silêncio da
crítica.
Da mesma forma, o fato de encerrarmos o ano
sem saber direito como será o Orçamento, muito menos qual a composição do novo
ministério, revela, ligeiramente, nossas dificuldades de planejar.
No campo político, entretanto, a superação
do ódio será um grande passo na busca do horizonte de possibilidades. As
chances de um debate mais tranquilo sobre o destino do País são importantes,
porque ninguém detém a verdade. Meu querido Ferreira Gullar dizia que a crase
não foi feita para humilhar ninguém. Também os argumentos políticos, eventuais
divergências, não foram feitos para estigmatizar ninguém.
O primeiro passo para a superação do abismo
que criamos será um diálogo entre governo e oposição, diferente dos moldes que
nos levaram a uma polarização maniqueísta.
Esse diálogo precisa ser ampliado com a
sociedade. O universo político de Brasília é muito autocentrado. É preciso que
se abra, antes que o abismo cresça demais e ele próprio caminhe compulsivamente
para seu suicídio.
Mudando um pouco o comportamento das elites
políticas, será possível tratar de problemas novos e complexos: a ira nas redes
sociais, o tsunami de fake news.
Gostaria de ter a saída imediata para isso.
Mas mentiria. A simples ideia de intervir de cima para baixo parece, no mínimo,
ineficaz.
É preciso estudar a experiência
internacional, aprender com a observação das redes e, inclusive, reformular o
ensino para que as crianças, ao crescerem, tenham a mínima chance de questionar
uma notícia falsa, de perceber quando são manipuladas por meio de números.
Esse é apenas um programa mínimo para
explorar nosso horizonte de possibilidades. Já está dito que nunca o
conseguimos completamente, no nível social ou mesmo no individual.
Não se sabe ainda qual será em toda a sua
extensão o programa do novo governo. Certamente, quando vier à tona, será uma
ampla proposta de como explorar nossos horizontes nos próximos quatro anos.
Isso me parece a forma mais prática de desejar um bom ano novo. Simplesmente, como às vezes fazemos em nossa vida particular, listar as principais medidas, explorar as qualidades, reduzir pontos vulneráveis, enfim, começar, finalmente, a cuidar de um país que esteve à deriva ao longo de quatro anos. Vivemos uma falta de horizonte, e isso corresponde à definição técnica do naufrágio.
Ótimo artigo de Gabeira,como sempre.
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