Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Um jogo pressupunha a igualdade jurídica
dos jogadores. Portanto, era incompatível com a desigualdade social própria da
escravidão
As Copas do Mundo representam o ápice de
uma inovação social que, no Brasil, chegou sete anos depois da abolição da
escravatura. Foi um dos primeiros e significativos episódios do advento da
modernidade em nosso país porque desdobramento e consequência do início do
reordenamento das relações sociais com base no princípio da igualdade jurídica
dos seres humanos.
Um jogo de futebol pressupunha a igualdade jurídica dos jogadores. Portanto, futebol era incompatível com a desigualdade de humanidades própria da escravidão. A Inglaterra, país originário do futebol, proibia a escravidão não só em seus territórios, mas também nas empresas inglesas onde quer que fossem estabelecidas.
Aqui, o brasileiro Charles Miller, nascido
no Brás, descendente de escoceses, introdutor do futebol entre nós, era
funcionário da São Paulo Railway. O primeiro jogo de futebol foi entre um time
da ferrovia e um da São Paulo Gaz Company.
A Abolição da escravatura tornou necessária
a criação de um imaginário que definisse novas regras de relacionamento
cotidiano, de costumes e de modo de vida com base nas possibilidades sociais
decorrentes do trabalho livre.
Num discurso no Senado do Império, em 1888,
o principal protagonista do fim da escravidão, Antonio da Silva Prado, fez da
tribuna um discurso sobre a base ideológica da nova relação laboral: se o
trabalhador livre fosse “morigerado, sóbrio e laborioso”, poderia tornar-se
proprietário de sua terra de trabalho. Poderia ascender socialmente e mudar de
situação de classe social. Na escravidão, o convencimento do trabalho se dava
pelo tronco e pela chibata do feitor. No trabalho livre, pela expectativa da
ascensão social.
A cerveja no lugar da cachaça foi uma das
mudanças de costume alimentar relacionadas com a nova realidade do trabalho. O
advento do futebol agregou-se ao elenco de alterações de conduta, como essa, de
gosto e de interesse para a classe trabalhadora. Ninguém as planejou. Elas
foram surgindo e juntando-se para formar uma espécie de sistema cultural de
referência compatível com o novo modo de vida.
Nesse sentido, na linguagem imprópria de
hoje, o futebol chegou aqui como um esporte de direita, alienador. A esquerda
da época era estrangeira e anarquista. Os anarquistas eram cultos, valorizavam
a educação. Não eram aficionados de futebol. A alienação seria vencida pelo
saber, pela consciência social e verdadeira das contradições sociais.
Instrumento de afirmação identitária e até
de ascensão social, o futebol acabou assumido como esporte da classe
trabalhadora. Foram comuníssimos até há poucos anos os times de fábricas: em
vez do proletariado levar adiante a luta de classes, levava adiante a disputa,
em nome das empresas, dos operários de diferentes fábricas. Uma orientação da
identidade proletária movida pela realidade e não pelo possível.
Mas houve, também, diferentes modalidades
de incorporação do futebol à vida das pessoas comuns, no Brasil inteiro. Entre
os índios xerente, de Goiás, levado por um antropólogo da USP, foi interpretado
como jogo de 22 homens que correm atrás da bola, contra a bola e não contra um
time adversário. Não tinha sentido simular uma disputa entre seres humanos que
se definem como nós e não como “eu” e “outro”.
Um dos casos notáveis de assimilação do
futebol contra o pressuposto do conflito foi o que ocorreu na favela de
Heliópolis, ao lado da Vila Carioca, onde a família de Lula morou quando veio
de Pernambuco para trabalhar em São Paulo.
Lugar de migrantes nacionais, com acentuada
presença de negros e brancos, vizinhos e amigos, com o tempo, também parentes e
progenitores de uma geração de mestiços. No fim do dia de trabalho, reuniam-se
num boteco para jogar dominó ou 21 e tomar cerveja. Não era incomum, na
disputa, o palavrão de motivação racial para ofender o outro. Um senhor idoso,
negro, de grande ascendência sobre os moradores, fazia a crítica dessa conduta.
Decidiram realizar no último domingo anterior ao Natal, de cada ano, um jogo
entre pretos e brancos.
Para participar, mestiços teriam que optar:
ou negro ou branco. O que lhes trazia uma dolorosa consciência da fratura
racial vicinal e familiar. O jogo era no campo do Flor de São João Clímaco.
Muito palavrão, grandes ofensas contra a mãe do outro, de cunho racial.
Vencesse quem vencesse, tudo terminava com um churrasco de que participavam
todas as famílias, com muitos abraços e muitos pedidos de desculpa, o racismo
questionado por seus próprios agentes e vítimas. O antropólogo Wagner Morales
fez um belo documentário sobre essa comunidade multirracial, inteligente e
socialmente criativa: “Preto contra Branco” (2005) [youtu.be/j5UySdovsvM].
*José de Souza Martins é sociólogo.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón
Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de
Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Lá em Pernambuco e em outros estados tem time de futebol chamado de Ferroviário. Interessante essa história de times de futebol de negros contra brancos. Nossos nazilatifundiários quando fizeram a abolição da escravatura teriam que contemplar cada ex-escravo com um pedaço de terra. Mas não só não fizeram isso como ainda foram indenizados pelo Estado porque os negros tinham sido literalmente comprados. Em todo o mundo países pequenos fizeram reforma agrária. O bananão continental nunca fez. Os negros foram jogados na rua com uma mão na frente e outra atrás. E foram se alojar nas bases dos morros criando os "bairros africanos" como eram conhecidas as favelas no fim do século XIX. Depois de Canudos é que foi criado o nome favela que era o nome de uma plantinha do arraial.
ResponderExcluir