segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Feminicídios em alta trazem desafio ao novo governo

O Globo

Estatísticas mostram crescimento de 11% desde 2019, período em que os homicídios caíram no Brasil

Na tarde de 11 de dezembro, Rosineia Catarina Lach, de 30 anos, foi assassinada pelo marido, Antônio Batista Fagundes de Oliveira, de 34, na casa de parentes em Joinville, Santa Catarina. Foi esfaqueada com um dos filhos no colo. A criança se feriu, mas sobreviveu. Há pelo menos uma década, ela denunciava ameaças, a última feita na manhã do dia fatídico. Em vão. O assassino acabou morto pela polícia ao reagir à prisão.

Histórias trágicas como a de Rosineia acontecem com regularidade desconcertante no Brasil. A cada dia são registrados quatro feminicídios, majoritariamente de mulheres negras (62%). Mudam nomes de vítimas e agressores, armas usadas ou cenários dos crimes, mas o roteiro que mescla covardia, brutalidade e negligência das autoridades é quase sempre o mesmo. O país somou, apenas no primeiro semestre deste ano, 699 feminicídios, um recorde segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Não é só o número absoluto que preocupa, mas sobretudo a escalada. As estatísticas mostram um crescimento de 10,8% desde 2019. Em relação ao primeiro semestre do ano passado, quando 677 mulheres foram assassinadas, o aumento foi de 3,2%. Pode não parecer muito, mas é preciso observar que os homicídios estão em queda no país (5% na comparação com o primeiro semestre de 2021). Os feminicídios estão na contramão dos indicadores de violência. Além disso, os totais mascaram disparidades. Na Região Norte, o aumento foi de 75% em quatro anos. No Centro-Oeste, de quase 30%.

É verdade que parte desse aumento, sobretudo em regiões menos desenvolvidas, pode ser atribuída ao incentivo para que crimes antes registrados como homicídios comuns sejam classificados como feminicídios, tipo penal relativamente recente na legislação brasileira (foi criado em 2015). Mas seria absurdo pôr a culpa na legislação pelo aumento da violência contra mulheres. Ao contrário, as mudanças legais representam um avanço essencial no combate a crimes antes ignorados por passar despercebidos, como afirmou em artigo no GLOBO a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber.

Ela cita como exemplo a Lei Maria da Penha, que busca coibir esses crimes “fortalecendo os mecanismos de proteção às mulheres em situação de violência e dando concretude a medidas para afastar o agressor”. Entre janeiro de 2020 e maio de 2022, o Brasil registrou mais de 572 mil medidas protetivas de urgência com base nessa lei.

Também são louváveis as campanhas e programas para denunciar e prevenir casos de violência doméstica, como as patrulhas Maria da Penha, que fazem rondas para verificar a situação de mulheres ameaçadas por companheiros ou ex. Mas todo esse arcabouço não tem sido suficiente para deter as atrocidades. O atual governo reduziu verbas para o combate à violência contra as mulheres, e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos preferiu se ocupar com a pauta ideológica do bolsonarismo.

O novo governo prometeu recriar o Ministério da Mulher. A primeira tarefa será debruçar-se sobre esses números alarmantes para tentar reduzi-los. Espera-se que, diferentemente do que aconteceu até agora, a pasta receba recursos para desenvolver políticas públicas e deixe de lado a guerra ideológica. Ou teremos ainda mais vítimas.

Êxito na geração por fusão nuclear é avanço, mas desperta ceticismo

O Globo

Permanecem enormes — e intocados — os obstáculos à transformação em realidade do sonho da energia limpa

A confirmação de que, pela primeira vez, uma reação de fusão nuclear gerou mais energia do que consumiu despertou a esperança de que a humanidade esteja mais perto do sonho de uma fonte de energia limpa e inesgotável. É sem dúvida preciso aplaudir e celebrar a conquista científica, mas os obstáculos à transformação desse sonho em realidade permanecem enormes, e o êxito do experimento realizado no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, nada fez para reduzi-los.

Bombardeando com raios laser hiperpoderosos uma cápsula de diamante preenchida com hidrogênio, os cientistas conseguiram levar átomos a se fundir, gerando gás hélio e produzindo energia. A reação de fusão é limpa por não gerar outro resíduo além de um gás inerte, ao contrário das reações de fissão que ocorrem nos reatores nucleares convencionais (onde a quebra do núcleo de átomos de urânio ou plutônio produz energia, mas deixa como resíduo o lixo atômico radioativo que polui o ambiente). Cientistas estimam que um reator de fusão alimentado por uma pequena xícara de combustível seja capaz de abastecer uma casa por mais de 800 anos.

Pelas informações divulgadas na semana passada, a reação em si gerou 50% mais energia do que consumiu. Mas todo o equipamento científico armado para colocá-la em marcha consumiu cem vezes a energia gerada. O primeiro desafio para construir reatores de fusão viáveis está, portanto, na engenharia. É preciso que todo o aparato apresente saldo positivo na geração. Além disso, ele precisa ter um custo financeiramente competitivo na comparação com outras fontes de energia. Nada disso sequer faz parte do escopo do experimento americano.

O significado do resultado, portanto, é outro. A expectativa é que a conquista científica abra caminho a uma onda de investimentos no desenvolvimento de uma tecnologia que, uma vez comercialmente viável, poderá revolucionar a geração de energia, num mundo em que os combustíveis fósseis estão irremediavelmente condenados em virtude de seu efeito no clima do planeta. Nos últimos anos, além de laboratórios vinculados a governos, empresas privadas passaram a se interessar pela área, e o total investido chegou a US$ 5 bilhões em 2021.

Não está claro que a ignição por laser usada pelos americanos seja a melhor forma de despertar a reação de fusão. Os experimentos mais comuns são baseados em enormes reatores em formato de pneu chamados tokamaks, que permitiriam maior escala na geração. Em 2021, a China manteve a fusão por tempo recorde num tokamak. No começo do ano, um consórcio europeu produziu quantidade inédita de energia. Em nenhum dos experimentos, porém, houve saldo positivo.

É preciso, portanto, evitar exageros sobre o sonho nuclear verde. Os desafios ainda são gigantescos. Mas vale a pena continuar a perseguir a possibilidade de encontrar uma fonte de energia limpa, segura e aparentemente inesgotável.

Retrocesso à vista

Folha de S. Paulo

Proposta que altera marco do saneamento pode abalar o setor de infraestrutura

Não é apenas na compatibilização de boa gestão orçamentária com responsabilidade social que o governo eleito emite sinais confusos. Também na área de infraestrutura a equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dá mostras de subordinação do interesse da população a cacoetes ideológicos.

Preocupa o diagnóstico a respeito do saneamento, que pede a revogação de parte do marco regulatório aprovado em 2020.

Os objetivos são retornar os contratos sem licitação das prefeituras com estatais e dificultar privatizações. Mais ainda, a responsabilidade pela definição dos parâmetros técnicos do setor, hoje a critério da Agência Nacional de Águas (ANA), seria repassada para o Executivo.

Fica evidente a falta de compreensão a respeito do papel de agencias reguladoras ao propiciar previsibilidade para investimentos de longo prazo —o que demanda estabilidade de regras e não oscilações de acordo com interesses políticos de cada governo.

Não é razoável, ademais, a manifestação de Rui Costa (PT), ex-governador da Bahia nomeado para ocupar a chefia da Casa Civil de Lula, que afirmou não ter havido nos últimos dois anos a "explosão" de investimentos "como se esperava".

Ora, o país viveu com regras retrógradas por décadas. Dezenas de reguladores locais, confusão de critérios técnicos e opacidade nos contratos das prefeituras.

Cerca de 80% dos parcos investimentos —entre R$ 10 e 15 bilhões anuais de 2016 a 2020, apenas 20% do necessário para universalizar os serviços até 2033— foram estatais. Enquanto isso, 100 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à rede de esgoto, um direito básico.

O novo marco é de 2020, e os decretos que balizam a abertura do setor aos investimentos privados só foram finalizados no ano passado. Os leilões realizados desde 2020 contrataram investimentos de R$ 46 bilhões e renderam outorgas de R$ 29,5 bilhões, abrangendo 219 municípios.

O dinamismo que agora começa a ser observado no saneamento já ocorre em outras áreas. Rodovias, aeroportos, portos e ferrovias tiveram regras aperfeiçoadas e concessões mais bem desenhadas nos últimos anos.

Segundo o governo federal, entre 2019 e 2022, com leilões no âmbito do Programa de Parceria de Investimentos, foram obtidos R$ 176 bilhões em outorgas e R$ 900 bilhões em investimentos. O BNDES tornou-se um grande estruturador de projetos, não apenas provedor de recursos subsidiados.

O novo governo deve dar continuidade às parcerias público-privadas e ao aperfeiçoamento institucional. Mudar o marco do saneamento por ideologia e corporativismo será um grave retrocesso.

Contra a dengue

Folha de S. Paulo

Desafio tecnológico para laboratórios, vacina é desenvolvida com sucesso no país

O Instituto Butantan conquistou reconhecimento nacional, em 2021, ao oferecer para o país todo a Coronavac, menos de um ano após os primeiros casos de Covid. O centro de referência nacional em biotecnologia prepara, agora, uma vacina contra a dengue, informa o jornal O Estado de S. Paulo.

Embora menos ameaçadores do que cepas do Sars-CoV-2, os quatro sorotipos do vírus DENV dão muito trabalho ao sistema de saúde pública. De janeiro até o começo deste mês, registraram-se 1,4 milhão de casos prováveis no país.

Configura-se alta de 172% sobre 2021 e retorno à situação preocupante de 2019. A doença, reintroduzida no Brasil nos anos 1980, provocou 978 mortes em 2022.

O combate ao Aedes aegypti ainda deixa muito a desejar. Além da dengue, o inseto transmite zika, chikungunya e febre amarela. Diz muito sobre a precariedade da saúde pública que a urbe mais afetada seja justamente o Distrito Federal, com 67.274 casos (2.174/100 mil).

Diante do fracasso em controlar o mosquito, as expectativas recaem sobre uma vacina, cujo desenvolvimento frustrou laboratórios por décadas. Um imunizante da farmacêutica francesa Sanofi teve 60% de eficácia, mas a aplicação foi restringida após reações adversas graves em alguns inoculados.

Outro produto, da japonesa Takeda, provou-se 80% efetivo e se encontra em análise pela Anvisa. Já o Butantan anuncia agora resultado similar (79,6%) para imunizante desenvolvido a partir de antígenos dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH).

O teste no Brasil ocorre em parceria com a empresa de origem americana MSD. Mais de 16 mil voluntários de 2 a 59 anos participaram do teste clínico de fase 3, realizado em 14 estados do país. Os resultados ainda são preliminares e só devem ser submetidos para publicação em periódicos médicos auditados no ano que vem.

O Butantan teria capacidade para produzir 50 milhões de doses anuais do imunizante, assim que a Anvisa aprovar o medicamento. Será mais uma vacina produzida no instituto, que já fornece outras oito para o Ministério da Saúde.

Muito da atual capacidade biotecnológica do Butantan resulta do pioneirismo e da liderança do pesquisador Isaias Raw, que retornou do exílio no final dos anos 1980, após cassação pelo AI-5. Raw morreu na terça-feira (13), e a vacina antidengue é mais um item de inegável valor sanitário em seu legado.

São Paulo está largada

O Estado de S. Paulo.

Asfalto esburacado, congestionamentos sem fim, semáforos quebrados, selvageria no trânsito, camelôs em todo canto, moradores de rua parte da paisagem. Onde está a Prefeitura?

Asfalto esburacado, congestionamentos, moradores de rua. Onde está o prefeito?

O paulistano que põe os pés fora de casa e caminha por poucos metros em qualquer bairro de São Paulo nota que a cidade parece largada à própria sorte. A sensação é de abandono; o cenário, de desleixo.

Na quarta maior cidade do mundo, seja nos bairros mais próximos, seja nos mais afastados do centro, o que se vê diariamente é o triunfo do caos e da lei do mais forte sobre a ordem pública e a urbanidade.

As calçadas de São Paulo estão intransitáveis, sobretudo para os cidadãos com necessidades especiais. Ruas e avenidas esburacadas e mal iluminadas impõem duplo risco à vida dos paulistanos, que tanto podem ser vítimas de acidentes de trânsito como de violência urbana. Muitos segmentos de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas estão malcuidados ou mal sinalizados, sem falar que o espaço exclusivo dos ciclistas tem sido olimpicamente desrespeitado por motoristas e motociclistas, sem qualquer fiscalização. Vê-se lixo acumulado e mato crescendo em todo canto.

A Prefeitura também tem se mostrado incapaz de lidar com o drama humano dos cidadãos que vivem nas ruas por falta de trabalho e moradia, vítimas da crise social e econômica instalada no País. Em diversos pontos da metrópole, abrigos precários são improvisados por famílias inteiras, e logo proliferam. A ocupação desordenada do espaço público é uma realidade. Em circunstâncias distintas, o mesmo ocorre com os camelôs. As calçadas estão tomadas por vendedores ambulantes que se arvoram em donos de um espaço que é dos pedestres.

Como se não bastasse, o trânsito está caótico, mas nem sempre pelo volume de automóveis em circulação, traço distintivo de São Paulo, e sim pela falta de agentes da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) para organizar essa bagunça. Tudo piora em dias de chuva. E nem é preciso uma tempestade digna do Antigo Testamento para apagar os faróis e dar um nó nos cruzamentos da cidade. Uma garoa basta.

Diante de tudo isso, uma pergunta se impõe: afinal, o que tem feito o prefeito Ricardo Nunes? O Portal 156 registra que os problemas relativos aos serviços de zeladoria lideram a lista de reclamações dos paulistanos. Ora, se a principal atribuição de um prefeito é zelar pela qualidade de vida de seus governados, Nunes tem falhado miseravelmente.

Dinheiro não falta em São Paulo. Portanto, não é por falta de recursos que a cidade não recebe investimentos em zeladoria e fiscalização. Se os recebe, decerto têm sido mal direcionados, pois os resultados não aparecem.

Talvez esteja faltando tempo para o prefeito andar pela cidade e ver com os próprios olhos os problemas que atormentam paulistanos de todas as regiões e estratos sociais. Nas últimas semanas, Ricardo Nunes esteve bastante ocupado em articulações com o futuro governador do Estado, Tarcísio de Freitas, para viabilizar o “passe livre” no transporte público municipal, que de “livre” só tem a demagogia. Com a medida, Nunes espera imprimir uma marca pessoal à sua administração, herdada de Bruno Covas (PSDB). Nesse afã, a marca que está imprimindo é outra: a de péssimo zelador.

Em vez de cuidar melhor da cidade, Nunes também dedicou tempo de sua agenda assoberbada para negociar com a Câmara Municipal a aprovação da lei que aumentou o nível de ruído permitido na cidade, medida que, a pretexto de atrair mais negócios para São Paulo, aumentará a poluição sonora que inferniza a vida de milhões de paulistanos que só querem dormir em paz. Restou evidente que o prefeito não se sensibilizou com o aumento de 48,5% no número de reclamações por barulho na cidade que ele governa, de acordo com o Programa Silêncio Urbano (Psiu), da própria gestão municipal.

Aos paulistanos, resta pouco ou nada a fazer a não ser lamentar ou se indignar pelo descaso da Prefeitura com suas angústias. Em tese, a cidade de São Paulo conta com um Sistema de Gerenciamento de Fiscalização (SGF), criado com o intuito de “otimizar os processos de fiscalização da capital” em todas as subprefeituras. É evidente, no entanto, que o tal sistema não passa de um nome pomposo para ineficácia.

O País reprovado em matemática

O Estado de S. Paulo.

Só 5% dos concluintes do ensino médio em escolas públicas atingiram níveis adequados de aprendizagem em 2021; num cenário assim, não se pode falar em desenvolvimento

Já passou da hora de repensar o ensino de matemática nas escolas brasileiras. O cenário, infelizmente, é de terra arrasada. E ninguém se iluda: enquanto gerações de estudantes completarem a escola sem saber calcular sequer uma porcentagem, o Brasil não trilhará o caminho do desenvolvimento. Tal diagnóstico foi reforçado, nos últimos dias, por um levantamento que mostra que apenas 5% dos concluintes do ensino médio nas escolas públicas do País atingiram níveis adequados de aprendizagem de matemática em 2021.

O estudo foi feito pelo instituto Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), com base nos resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) − exame sob responsabilidade do Ministério da Educação (MEC). O Saeb é o principal teste nacional para medir a qualidade do ensino. Em 2021, ressalte-se, captou o retrocesso provocado pelo fechamento de escolas e pelas deficiências do ensino remoto e híbrido durante a pandemia de covid-19.

Os baixíssimos índices de aprendizagem de matemática, contudo, não são consequência somente da pandemia. Prova disso é que o Iede analisou edições anteriores do Saeb e chegou a resultados similares: em 2019, apenas 7% dos concluintes na rede pública tiveram desempenho adequado; em 2017, foram 5%. Ou seja, o problema não tem nada de conjuntural. É, na verdade, uma falha estrutural do sistema de ensino brasileiro.

Por óbvio, há algo patentemente errado quando a quase totalidade dos alunos fica para trás. Eis uma regra de ouro na educação: se apenas 5% dos estudantes têm êxito, tudo leva a crer que o problema seja mais das escolas, que não conseguem ensinar, do que dos alunos que terminam o ano letivo sem aprender. Considerando que 8 em cada 10 estudantes de ensino médio no Brasil frequentam as redes estaduais, temse a dimensão do problema.

Cabe perguntar: por que tantos jovens concluem o ensino médio sem aprendizagem adequada em matemática? Não se ignora aqui o histórico déficit educacional brasileiro, um problema que tem raízes profundas, muitas delas com origem fora da escola. A baixa escolaridade de pais e responsáveis, por exemplo, dificulta a aprendizagem dos filhos, assim como a fome (grande parte dos alunos tem na merenda a principal refeição do dia), a baixa carga horária de estudo (a maioria das escolas no País não funciona em tempo integral) e a falta de segurança.

Mas a indigência da aprendizagem de matemática extrapola até mesmo o histórico déficit de aprendizagem nacional. Prova disso é que 31% dos concluintes do ensino médio na rede pública atingiram níveis adequados em língua portuguesa, em 2021, conforme o levantamento do Iede. É um resultado muito ruim, mas ainda assim bem melhor que o de matemática − o que só evidencia o grau de calamidade no ensino dessa disciplina.

Outro ponto que merece atenção é a diminuição dos índices de aprendizagem ao longo da trajetória escolar. O estudo do Iede mostra que, no 5.º ano do ensino fundamental, 37% dos alunos demonstraram desempenho adequado em matemática, em 2021. Entre alunos do 9.º ano do ensino fundamental, porém, esse porcentual já era bem menor − de apenas 15%. Quanto mais os alunos avançam no ensino fundamental e médio, mais cai a proporção de estudantes nas faixas satisfatórias de aprendizagem. Eis uma questão a ser mais bem compreendida pelos educadores.

Repensar o ensino da matemática nas escolas brasileiras exige rever a formação de professores, os métodos de ensino e os materiais didáticos. Claramente há algo que não está funcionando e precisa mudar nas salas de aula. Mas isso não significa que seja preciso reinventar a roda. As redes públicas brasileiras têm experiências exitosas que devem ser incentivadas e replicadas. As escolas federais, por exemplo, costumam ser referência de qualidade, assim como escolas técnicas e em tempo integral têm boas práticas a compartilhar. O País também conta com matemáticos altamente qualificados nas universidades, além de entidades bastante atuantes no terceiro setor. É hora de somar esforços e mudar a cara do ensino de matemática no Brasil.

Contra os vivos e os mortos

O Estado de S. Paulo.

Não surpreende que a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos seja extinta ao final do governo Bolsonaro

A insistência e o momento escolhido para acabar com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) confirmam que o governo do presidente Jair Bolsonaro é rancoroso, ideológico e negacionista da própria história. Como antecipou o Estadão, o fim da comissão foi aprovado na última quinta-feira, em decisão tomada por seus integrantes, por 4 votos a 3.

Com maioria no órgão, o governo pretendia extingui-lo em junho, mas recuou diante de contestação do Ministério Público Federal (MPF). Nos últimos dias, mais uma vez, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) reiterou recomendação contrária ao encerramento, mas de nada adiantou. A duas semanas do término do mandato de Bolsonaro, a decisão foi sacramentada. Um erro.

A comissão, prevista na Constituição, foi criada pela Lei 9.140/1995, logo no primeiro ano de governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O objetivo era dar reconhecimento oficial a pessoas que morreram ou desapareceram por causa de sua atuação política durante a ditadura militar. Entre as tarefas da comissão estavam a emissão de atestados de óbito para parentes das vítimas, a localização de corpos e a reparação por meio de indenizações.

Os trabalhos do órgão contribuíram para o esclarecimento de dezenas de crimes, entre os quais o do então deputado federal Rubens Paiva, torturado e morto em 1971, sem que seu corpo tenha sido localizado. Ossadas de outros cinco desaparecidos políticos foram identificadas em uma vala comum do Cemitério de Perus, em São Paulo.

Por óbvio, a comissão não haveria de existir para sempre, e a própria lei que a criou previu o seu fim, mas só depois de concluídas as suas atribuições. Como bem lembrou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, isso ainda não ocorreu, uma vez que existem casos pendentes. Ou seja, há trabalho por fazer. O mesmo foi dito, em junho, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo na Folha, juntamente com os ex-ministros da Justiça Nelson Jobim e José Gregori, além do ex-secretário de Estado de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro. Segundo eles, a comissão ainda estava “longe de concluir sua missão legal”.

Ora, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos é parte do esforço de responsabilização do Estado brasileiro pelas inúmeras violações de direitos praticadas na ditadura – algo necessário e minimamente reparador, considerando os efeitos da Lei de Anistia, de 1979, fundamental para a transição pacífica da ditadura para a democracia.

É isso que Bolsonaro não aceita e daí seu empenho em pôr fim à comissão, nem que fosse nos estertores de seu mandato. Vale lembrar que uma alteração no regimento interno do órgão, em 2020, já havia restringido a sua atuação, até mesmo no que diz respeito à emissão de atestados de óbito. Nesse sentido, pode-se afirmar, sem medo de errar, que Bolsonaro não surpreendeu ninguém. O presidente fez exatamente o que dele se esperava, sendo ele alguém que já foi capaz de louvar, pública e reiteradamente, um torturador.l

Alteração na Lei das Estatais é retrocesso inaceitável

Valor Econômico

Sem acordo para votação no Senado, o texto ainda pode ter que passar por comissões temáticas. Ganhou-se tempo para evitar o pior

Poucas semanas se passaram entre o dia em que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abriu o guichê para negociar com partidos aliados a formação do novo governo e a última terça-feira, quando a Câmara dos Deputados avançou por onde não deveria. Por ampla maioria, e em votação a toque de caixa, a Casa aprovou por 314 a 66 a proposta que altera trecho da Lei das Estatais e diminui de 36 meses para 30 dias a quarentena de pessoas indicadas à presidência ou à direção de empresas públicas que tenham ocupado estrutura decisória de partido ou participado de campanhas eleitorais.

Tudo foi feito na surdina. O primeiro sinal de que algo poderia ocorrer foi uma nota da consultoria Eurasia, segundo a qual Lula possivelmente alteraria a Lei das Estatais já nos primeiros dias de governo por meio de uma medida provisória.

No gabinete de transição, nada se comentava. Foi quando foi notada a inclusão, na pauta da Câmara dos Deputados, de um projeto que tratava apenas de mudanças nas regras de publicidade institucional de estatais.

Negou-se, naquele momento, que a proposta exacerbaria o tema. Mas as suspeitas cresciam, ao mesmo tempo em que o mercado reagia negativamente à ideia. Afinal, a Lei das Estatais foi sancionada em meados de 2016 como uma resposta a denúncias de corrupção na Petrobras descobertas pela Operação Lava-Jato.

Protocolado naquela tarde, o parecer da deputada Margarete Coelho (PP-PI) limitava-se a aprovar integralmente as alterações que tratavam de publicidade. À noite, contudo, na hora da votação, a parlamentar acolheu emenda do líder do PSB, deputado Felipe Carreras (PE), para reduzir a quarentena. Apenas PSDB, Cidadania e Novo votaram contra.

Do texto, já constava a mudança que abre espaço para políticos ocuparem cargos de direção em estatais e em agências reguladoras. O estrago já estava feito.

No entanto, a despeito da surpresa negativa imposta ao distinto público, não parecia haver grande comoção entre integrantes da futura base aliada e partidos que, em tese, prometiam fazer oposição à administração de Luiz Inácio Lula da Silva. O governo Bolsonaro (PL) não se manifestou oficialmente em nenhuma etapa da votação, mas seu líder, o deputado Ricardo Barros (PP-PR), votou a favor tanto no projeto como na emenda. O assunto já havia sido debatido no colégio de líderes.

Agora, a mudança tem potencial para beneficiar não só lideranças do PT, mas, também, outros políticos de partidos do Centrão. Se o projeto passar pelo Senado, todos podem passar a ocupar cargos em estatais e agências reguladoras.

O butim é considerável. Conforme mostrou o Valor, uma flexibilização da Lei das Estatais abriria a possibilidade de negociação de quase 600 cargos nas diretorias e nos conselhos de administração em mais de 40 estatais federais. O mapa da mina está descrito em detalhes no último relatório anual da Secretaria Especial de Desestatização, do Ministério da Economia, incluindo postos e salários. A lista contempla cadeiras em estatais do setor de infraestrutura e bancos públicos, entre outros.

A Lei das Estatais não foi feita à toa: as regras foram instituídas à luz da experiência que o Brasil teve quando PT e aliados do Centrão estiveram no poder. Elas estabelecem critérios de governança para estatais, como a obrigatoriedade de que passem a ter um estatuto, um conselho de administração independente e a seguir políticas de mercado. É o que parece preocupar aqueles que sempre tentam transformar empresas estatais em instrumentos voltados a atender apenas interesses de determinado governo ou alguns partidos políticos, e não dos interesses nacionais.

Aprovado na Câmara, cabe agora ao Senado frear os ímpetos dos que insistem em se apoderar da máquina pública. Felizmente, na semana passada o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse que faltava consenso para a votação da matéria e afirmou que é possível que a discussão seja retomada somente em 2023. Como não há acordo para que ela seja levada diretamente ao plenário do Senado, o texto ainda pode ter que passar por comissões temáticas, como a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Obteve-se tempo para evitar o pior.

 

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