COP15 repete frustração de outras reuniões
O Globo
Conferência de Biodiversidade fecha outro
acordo ‘histórico’ sem definir de onde sairá dinheiro para cumpri-lo
Na Conferência sobre Biodiversidade das
Nações Unidas (COP15), em Montreal,
quase 200 países chegaram a um entendimento para tentar deter ameaças a
ecossistemas e espécies no planeta. O acordo foi considerado “histórico”, como
outros semelhantes, sem que tenha sido resolvida a questão vital: como os
países ricos financiarão projetos de proteção à biodiversidade nos países
pobres e de renda média, onde está a maior parte das espécies ameaçadas.
Os países se comprometeram a preservar um
terço da natureza do planeta e estabeleceram metas para conservar biomas como
florestas. Embora o acordo fale em garantir que o dinheiro para a preservação
chegue aonde é necessário, não se sabe de onde virá. O tempo da diplomacia
costuma ser lento, mas não tão lento quanto os acertos financeiros ambientais
com os países ricos.
Desencontros entre intenções e realizações na questão ambiental são antigos. Na Rio-92, 197 países firmaram a primeira convenção sobre mudanças climáticas com o objetivo de reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa. Não se estabeleceram metas, tampouco tratou-se de recursos para a empreitada. As emissões continuaram a crescer pelas três décadas seguintes.
Cinco anos depois, 192 países firmaram no
Japão o Protocolo de Quioto, estipulando o embrião de um mercado para
negociação de créditos de carbono. A iniciativa floresceu, mas até hoje o
funcionamento do mercado global de carbono é insatisfatório.
Já houve 27 reuniões das Nações Unidas
dedicadas a reduzir as emissões de gases. Apenas na 21ª, o Acordo de Paris
postulou que seriam feitos todos os esforços necessários para evitar que até
2100 a temperatura do planeta ultrapasse 1,5 °C acima dos níveis
pré-industriais. As metas do acordo, porém, são voluntárias, e uma minoria dos
países tem cumprido compromissos. Antes da metade do século, calcula-se que a
temperatura já tenha subido 1,1 °C.
As COPs continuam se sucedendo, agora
anualmente, e a questão essencial do financiamento a projetos de
descarbonização continua mal resolvida. A reunião de novembro em Sharm
El-Sheikh, no Egito, também foi considerada “histórica”, em razão da criação de
um fundo de reparação para as perdas e danos dos países mais vulneráveis às
mudanças climáticas. Nada, porém, se decidiu sobre quanto e quando os recursos
começarão a fluir. Só os países ricos, principais emissores de carbono desde a
Revolução Industrial, podem bancar os projetos de defesa do planeta. Mas jogam
duro na negociação.
A biodiversidade é subordinada a outra
convenção das Nações Unidas, base para o acordo “histórico” fechado em
Montreal. O objetivo é conter a extinção de mais de 1 milhão de espécies
ameaçadas. Com base numa proposta chinesa, os signatários se comprometem a
conservar e gerir de forma eficaz 30% das terras e águas até 2030. Estima-se o
investimento necessário em US$ 100 bilhões anuais, dez vezes o que tem sido
aplicado, mas o texto final só atribuiu aos países desenvolvidos o objetivo de
ceder “pelo menos” US$ 20 bilhões por ano até 2025 e US$ 30 bilhões anuais até
o fim da década.
Pela experiência nos tratados sobre clima,
sabe-se que não se deve contar com o dinheiro, mesmo que os eventos climáticos
extremos fiquem mais graves. Enquanto milhões já morrem de aquecimento global,
parece que a situação terá de piorar muito para que as COPs sejam levadas a
sério.
Novo governo precisa acabar com
permissividade de normas do trânsito
O Globo
É preciso rever velocidade máxima de
circulação, ampliar fiscalização e endurecer punição contra infratores
Depois de concluir o curso de Direito,
Mylena Teixeira de Azevedo, 23 anos, mandou uma longa mensagem a um grupo de
amigas da faculdade para dizer que não considerava a formatura uma despedida
“porque ainda temos uma vida pela frente, seja de amizade, seja de trabalho”.
“Estaremos juntas”, concluiu. Três dias depois, numa manhã de sábado em
novembro, Mylena morreu quando
o carro em que estava com amigos bateu numa árvore do Aterro do Flamengo na
volta de uma festa. O motorista, Luiz Guilherme Bragança, estava alcoolizado,
segundo uma amiga de Mylena que estava no carro. No enterro, a mãe de Mylena
pedia por justiça.
Muitos continuam a pedir. É o caso da
família de Marina Harkot, 28, socióloga, mestre em arquitetura, que fazia
doutorado em mobilidade urbana e morreu atropelada há dois anos em São Paulo
quando andava de bicicleta na Zona Oeste. O motorista foi acusado de dirigir
embriagado e de não prestar socorro à vítima. A defesa recorreu contra a
decisão de levar o réu a júri popular, mas o recurso foi negado.
Em 2021, apesar das restrições à circulação
impostas pela pandemia, houve 31.468 mortes nas ruas e nas estradas, apenas 6%
menos que em 2020. A maior parte das vítimas costuma ter entre 20 a 29 anos. A
falta de rigor nas punições, a revisão da velocidade permitida em vias urbanas
e uma reavaliação do Código de Trânsito Brasileiro
levaram mais de 30 organizações a encaminhar reivindicações à equipe de
transição de governo em Brasília.
Representantes das organizações estiveram
com o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e com a presidente do PT, Gleisi
Hoffmann (também ciclista). Receberam deles a indicação de que encaminhariam as
reivindicações ao grupo de Cidades que atua na transição. A principal delas é a
revisão do limite de velocidade permitida nas áreas urbanas, que desperta forte
resistência. Um argumento a favor é o que aconteceu em São Paulo em 2015,
quando o então prefeito Fernando Haddad reduziu a velocidade máxima nas marginais
Pinheiros e Tietê. As mortes caíram 52% nas vias expressas.
A União de Ciclistas do Brasil (UCB) também
apresentará ao novo Congresso a proposta de um projeto de lei para reduzir a
velocidade permitida no país todo. Outra demanda é que o governo reveja retrocessos
impostos pelo presidente Jair Bolsonaro, como dobrar a pontuação na carteira de
motorista que leva à suspensão e reduzir a fiscalização e o monitoramento por
radar nas estradas. Mesmo em acidentes graves, se o responsável não estiver
embriagado, pode pagar fiança, evitar a prisão e trocar a pena por serviços
comunitários. A embriaguez ao volante, que provavelmente vitimou Mylena e
Marina, também precisa ser fiscalizada e punida com rigor, por meio de blitze
como a da Lei Seca no Rio de Janeiro.
Além de inaceitável, é incompreensível um governo que se diz conservador, como o que administrou o Brasil nos últimos quatro anos, adotar normas mais lenientes e permissivas que incentivam o crime. Na Amazônia, nas armas ou no trânsito.
Não é nossa praia
Folha de S. Paulo
Litoral evidencia atraso vexatório no
saneamento e importância do marco legal
Com seus cerca de 8.000 km de linha
costeira, Brasil sempre foi um país de frente para o mar. Quando se trata de
viagens de lazer, em especial no verão, o brasileiro sempre pensará primeiro no
litoral.
Tal lugar de destaque no imaginário se pode
aquilatar pela expressão cotidiana "não é a minha praia", quando
alguém pretende indicar falta de gosto ou familiaridade com algo. Ingleses
dizem que não é sua xícara de chá; alemães, que não é sua cerveja.
Por aqui, tratamos mal o objeto de
predileção. Banhos de mar se tornam mais e mais arriscados, com a piora
mensurável da balneabilidade. Segundo
levantamento realizado pela Folha, nos últimos seis anos nunca
foi tão baixo o número de praias limpas.
De novembro de 2021 a outubro de 2022,
foram monitorados 1.334 pontos, e só 29% registraram condições próprias para
banho em todas as medições. Em campanhas anteriores, o índice ficava em 36%.
Pior, aumentou de 10% para 13% o número de
praias ruins, aquelas que permaneceram impróprias entre um quarto e metade das
semanas monitoradas.
Não escapam da poluição nem destinos
turísticos com a importância de Balneário Camboriú (SC) ou Salvador (BA). A
capital baiana não teve nenhuma praia classificada como adequada ao longo do
ano inteiro, algo inédito.
Coliformes fecais compõem o mais célebre
indicador de má qualidade da água. Eles têm origem mais que conhecida: esgotos
despejados em rios e córregos (ou, mais grave, coletados e neles deitados sem
tratamento), que cedo ou tarde alcançam o oceano.
Já se disse que o grau de civilização de um
país se mede pelas suas penitenciárias, porém caberia dar igual precedência ao
critério do saneamento. Não cabe falar em desenvolvimento quando persistem
esgotos a céu aberto, espalhando doenças entre os mais pobres.
Para uma nação de renda média, mostra-se vergonhosa
a situação do país. A coleta de dejetos domiciliares avança a passos de
tartaruga: eram 55% dos brasileiros em 2020 e 55,8% em 2021. Nesse ritmo
inaceitável, quase meio século seria necessário para chegar perto de uma
universalização.
O marco legal do saneamento básico
estabeleceu como meta a universalização já em 2033, apenas uma década à frente.
Sem investimentos privados, o Estado jamais logrará, sozinho e em prazo tão
estreito, saldar essa a dívida social.
O governo do PT tem quatro anos para provar
qual é a sua praia, liderando o país na limpeza sempre adiada do majestoso
litoral.
Direção perigosa
Folha de S. Paulo
Mais motoristas recusam teste do bafômetro,
o que não elimina benefício da lei
Dentre as diversas substâncias psicoativas,
a nicotina e o álcool são as únicas que têm uso recreativo permitido no Brasil
e na maioria dos países do mundo ocidental. Entretanto o consumo legalizado não
implica desregulação. A proibição de venda para menores de 18 anos é um
exemplo, e a punição para quem dirige bêbado, outro.
Em relação ao último, o brasileiro ainda
demonstra uma atitude irresponsável que pode ser fatal. Segundo dados da
Polícia Rodoviária Federal, entre janeiro e julho deste ano, motoristas
embriagados foram responsáveis por 111 mortos e 2.233 feridos em acidentes nas
estradas federais.
A Lei Seca, aprovada em 2008, impôs
tolerância zero para a perigosa combinação de álcool e direção —e deu
resultados. Entre 2011 e 2022, o número de óbitos caiu 30%.
Uma ferramenta fundamental para a aplicação
da lei é o bafômetro, mas muitos motoristas se negam a participar do teste. De
acordo com o Detran de São Paulo, em 2022, 47.352
pessoas foram multadas no estado por não assoprarem no
aparelho. Um aumento de 6% em relação a 2019.
A postura desses condutores é um direito
garantido, de fato. Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo, o que
não significa ausência de punição.
Quem se recusa a fazer o teste recebe multa
de quase R$ 3.000 e sete pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH), bem
como pode sofrer processo administrativo que leva à suspensão do direito de
dirigir por 12 meses.
Trata-se da mesma sanção aplicada quando o
bafômetro acusa 0,05 mg/l até 0,33 mg/l de álcool por litro de ar expelido. Já
quem é flagrado com mais está sujeito a pena de seis meses a três anos de
detenção, multa de R$ 2.934,70 e proibição de dirigir por dois anos.
Os motoristas que se recusam a participar
do teste estão fugindo da condenação mais dura, mas ainda serão punidos.
Portanto, a lei ainda funciona para desencorajar a imprudência que causa
mortes.
Daí a importância da decisão do
Supremo Tribunal Federal, em maio deste ano, que manteve a multa e a
possibilidade de suspensão da habilitação —contrariando o Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, que questionou a punição porque a negativa para o teste
não comprovaria embriaguez.
Liberdades individuais, nas quais se insere o consumo de psicoativos, são direitos basilares das democracias modernas. Mas, quando o direito de um afeta de forma trágica a vida de outro, faz bem o Estado em interferir com fiscalização rigorosa e punição dentro da lei.
Passa da hora de uma reforma administrativa
O Estado de S. Paulo.
É compreensível a indignação pelo aumento
dado a servidores públicos. Mas esse sentimento serve melhor ao País se
direcionado a uma discussão profunda sobre estrutura estatal
A concessão de uma série de aumentos
salariais para servidores públicos dos Três Poderes, a poucos dias do recesso
parlamentar de fim de ano, provocou uma onda de indignação da sociedade. É
compreensível. Há uma crise social instalada e o País não passa exatamente por
um momento de exuberância econômica que autorize a aprovação desses aumentos
pelo Congresso sem que isso cause um profundo mal-estar.
Os salários dos ministros do Supremo
Tribunal Federal, por exemplo, foram majorados pelos congressistas em 18%.
Passarão dos atuais R$ 39.293,32 para R$ 46.366,19 – teto constitucional para a
remuneração de todo o funcionalismo público, o que torna o efeito cascata
inevitável.
Some-se a isso o fato inquestionável de que a imensa maioria dos trabalhadores da iniciativa privada nem sequer pode sonhar com reajustes que recomponham o poder de compra corroído pela inflação, que dirá com aumentos salariais que podem variar entre 37% e 50%, como são os casos dos deputados, senadores, presidente e vice-presidente da República e ministros de Estado.
No entanto, o melhor para o Brasil é que
toda essa indignação – justíssima – seja mais bem direcionada e sirva como um
ponto de partida para uma discussão mais profunda sobre a estrutura do Estado e
os fins a que ele se destina. Decerto não haveria tanta resistência aos
aumentos salariais do funcionalismo público se os cidadãos percebessem que em
troca de uma alta carga tributária podem contar com o Estado quando precisam
dele para resolver alguns de seus problemas.
O caminho mais tentador – e fácil – é
canalizar a fúria cívica para a concessão dos aumentos salariais por si só e
desqualificar a chamada classe política como uma súcia indistinguível de
saqueadores do Tesouro. Trata-se de uma abordagem não apenas errada, como
extremamente perigosa.
Errada porque parte de uma premissa
infundada. É claro que há uma casta de servidores públicos cobertos por um
manto de privilégios que em tudo afronta a própria ideia de República. Mas não
se pode tomar uma parte pelo todo e nem tampouco olhar para o serviço público,
inclusive para a atividade política, como uma espécie de sacerdócio. Ora,
servidores públicos são trabalhadores que devem ser remunerados à altura de
suas responsabilidades como quaisquer outros.
A aversão indiscriminada aos políticos e a
mera indignação quanto à sua remuneração, além de infrutíferas, são muito
perigosas porque abrem uma avenida para aventureiros que fazem da negação da
política uma plataforma para chegar a postos de liderança na própria esfera
política, usando o sentimento popular como mola propulsora de suas ambições
pessoais. O que foi a eleição de um histriônico deputado como Jair Bolsonaro
para a Presidência da República se não o resultado dessa apropriação maliciosa
e indigna da insatisfação generalizada de uma expressiva parcela de
brasileiros?
A discussão sobre o funcionamento do Estado
no País tem sido muito rasteira, especialmente contaminada pela mixórdia de
opiniões difundidas pelas redes sociais. Em geral, opõe, de um lado, os que
defendem um “Estado grande”, intervencionista, indutor do crescimento, e, de
outro, os que pugnam por um “Estado mínimo”, que seja capaz apenas de oferecer
serviços públicos básicos e garantir um ambiente fértil para os negócios.
Ora, esse debate em torno do tamanho do
Estado – e os custos para manutenção de sua estrutura, incluindo o
funcionalismo – é menos importante do que discutir o rol de objetivos que o
País deve atingir coletivamente. Essa discussão deve ser primordialmente feita
no Congresso, por meio de representantes eleitos, sem prejuízo da participação
de organizações da sociedade civil, por óbvio, e derivar em uma reforma
administrativa, há muito defendida por este jornal, que reflita esse conjunto
de aspirações comuns da sociedade.
Mais do que acossar parlamentares pelos
aumentos salariais concedidos aos servidores públicos, é preciso que a
sociedade pressione o Congresso para dar seguimento a uma reforma
administrativa sem a qual o passar dos anos não será nada além de uma sucessão
de lamentos – justos, mas inúteis.
O perigo das listas tríplices
O Estado de S. Paulo.
A exigência de lista tríplice para escolha
dos cargos de direção altera a dinâmica de poder dentro de uma instituição, que
ganha ares de corporação. A chefia se torna um líder de classe
Há temas no Brasil que não saem de moda. Um
deles são as listas tríplices para cargos de chefias em instituições públicas.
Sempre há gente tentando criar restrições, além do que diz a lei, na escolha
dessas posições. A entidade privada mais conhecida por fazer esse tipo de
pressão é a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Ainda que
não exista nenhuma previsão legal a fundamentar tal pretensão, a associação
sempre constrange o presidente da República a escolher o procurador-geral da
República dentre os nomes da lista tríplice elaborada por ela. É um acinte. Uma
entidade privada não pode ter nenhum tipo de poder de veto sobre os possíveis
nomes para chefiar a Procuradoria-geral da República, uma instituição pública.
A ANPR não está, no entanto, sozinha nesse
tipo de pressão. Várias outras categorias tentam obter, por meio do Congresso,
o poder de definir os nomes que poderão ser escolhidos para ocupar seus cargos
de chefia. Por exemplo, tramita no Congresso projeto de lei para estabelecer a exigência
da lista tríplice para os cargos, nos Estados, de comandante-geral da Polícia
Militar.
Em novembro de 2022, o Supremo Tribunal
Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade de normas do Estado de Roraima
que limitavam a escolha do delegado-geral da Polícia Civil aos integrantes de
lista tríplice formada pelo Conselho Superior de Polícia. No acórdão, o Supremo
lembrou sua jurisprudência em defesa do art. 144, § 6.º da Constituição,
reafirmando que “as forças policiais subordinam-se aos governadores dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, sendo inconstitucional o
esvaziamento desta norma pela criação de requisitos como a formação de lista
tríplice”.
No julgamento do caso de Roraima, o STF
ressaltou uma consequência causada pelas listas tríplices. Elas alteram a
dinâmica de poder envolvendo as instituições. “A Constituição Federal
disciplina que as forças policiais estão jungidas e subordinadas ao poder
civil, não se podendo enfraquecer tal compreensão por mecanismos corporativos”,
afirmou o acórdão.
No caso de lista tríplice para chefia da polícia, esse problema é explícito e choca-se diretamente com o art. 144 da Constituição. Com uma lista tríplice formada pelo Conselho Superior de Polícia, como dispunha a legislação de Roraima, a atividade policial já não estava subordinada, em último termo, ao poder civil, mas aos próprios policiais. No entanto, problema similar ocorre com todas as listas tríplices. Ao prever que os membros de uma instituição têm o direito de definir quem poderá ser indicado para a sua chefia, há uma mudança na dinâmica de poder. A instituição deixa de estar subordinada apenas ao Poder Executivo e ao Legislativo (nos casos em que o cargo exige, por exemplo, aprovação pelo Senado) para estar sujeita aos próprios integrantes.
Essa mudança gera consequências graves, a
começar por introduzir fissuras no princípio democrático de que todo o poder
emana do povo. Quando a Constituição define, por exemplo, que o
procurador-geral da República será indicado pelo presidente da República e terá
de ser aprovado pelo Senado, o processo de preenchimento desse cargo está
inteiramente submetido, sem exceções, a quem obteve voto popular. A exigência
de uma lista tríplice, elaborada por quem não é representante eleito do povo,
modifica essa sistemática.
Além disso, a lista tríplice faz com que o
chefe da instituição se torne uma espécie de representante ou líder de classe.
Isso conduziria a transformar uma instituição em uma corporação. Em vez de
servir ao interesse público, o órgão público estaria subordinado ao interesse
particular de seus membros. Assim, a exigência de lista tríplice não fortalece
a instituição. Antes, introduz elementos que podem pervertê-la.
Resistir à pressão para criar listas
tríplices é um dever de sempre. Nada mais é do que o embate cotidiano de tentar
preservar o Estado e suas instituições dentro do caminho republicano, livre das
amarras dos interesses corporativos.
A ressurreição da Mata Atlântica
O Estado de S. Paulo
Ao prestigiar a restauração do bioma, a ONU
oferece oportunidades que precisam ser aproveitadas
Muito se fala da “terra devastada” legada
pela administração de Jair Bolsonaro. Independentemente da clivagem sobre o que
é verdade ou exagero, na gestão ambiental ela é tão real que nem sequer é
figura de linguagem: a devastação foi literal. Dia após dia vêm à tona novos
recordes de desmate. Nesse cenário, a Conferência de Biodiversidade da ONU
(COP-15) trouxe um fio de esperança, ao declarar o Pacto Trinacional pela
Restauração da Mata Atlântica, uma das 10 iniciativas de Referência da Restauração de Ecossistemas.
Com efeito, a Mata é hoje um fiapo do que
foi, com só 12% de sua cobertura original. Ainda assim, o bioma está presente
em 17 Estados, abriga 70% da população e responde por 80% do PIB. Dele dependem
serviços ecossistêmicos como a produção de alimentos, abastecimento de água,
energia hidrelétrica, purificação do ar e regulação do clima.
Mesmo com uma fração da cobertura
primitiva, a Mata abriga a maior diversidade de árvores por hectare do mundo e
2 mil espécies animais. Um estudo na revista Nature estimou que ela
compõe um conjunto de ecossistemas cuja recuperação de 15% da área desmatada
evitaria 60% da extinção de espécies ameaçadas no planeta e absorveria 30% do
CO2 acumulado desde a Revolução Industrial.
Diferentemente da Amazônia, a devastação da
Mata já ultrapassou o limiar crítico (30%) a partir do qual sua biodiversidade
começa a colapsar. A mera redução do desmatamento não basta. É preciso zerá-lo
e promover a restauração em escala.
O Pacto Trinacional, que envolve
organizações da Argentina e Paraguai, foi prestigiado por atuar tanto na
preservação como na ampliação de sistemas agrícolas de baixo carbono e na
restauração da floresta. Dado que ela é composta por espaços fragmentados, o
mero replantio pulverizado é pouco eficaz. Por isso, a ONU destaca a criação de
corredores verdes entre as áreas remanescentes, com um impacto regenerativo
oito vezes maior.
O Brasil possui um bom arcabouço legal e
vem desenvolvendo marcos de governança e tecnologia para a restauração.
Estima-se que o País represente 20% das oportunidades globais nas Soluções
Baseadas na Natureza, que, além dos ganhos ambientais, oferece oportunidades de
renda no meio rural, como a silvicultura de espécies nativas, os sistemas
agroflorestais e o pagamento por serviços ambientais a produtores que investem
em restauração. Mas os elementos civis e políticos desse ecossistema estão desconectados.
Um dos desafios do novo governo será integrá-los.
O reconhecimento do Pacto pela ONU gera
oportunidades de apoio técnico e financeiro. É fundamental capitalizá-las, já
que iniciativas que combinem preservação e desenvolvimento econômico em um
ecossistema complexo como a Mata Atlântica podem servir de modelo para outros
biomas, sobretudo a Amazônia.
Na Mata, o passado, o presente e o futuro do Brasil se encontram. Há cinco séculos a Nação vem crescendo a partir dela, mas ao custo de levar seus recursos a ponto do esgotamento. Da sua restauração depende o futuro não só do País, mas em boa medida do mundo.
O passado à espreita nas concessões de
rodovias
Valor Econômico
A experiência acumulada em concessões e
PPPs na equipe do futuro governo é um sinal alentador
Em suas 100 páginas, o relatório final do
Gabinete de Transição Governamental traz um retrato do estado de coisas que o
presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva encontrará no próximo dia 1º de
janeiro. Contém também algumas sugestões que podem ou não ser acatadas, mas são
indicações do que pode acontecer nos primeiros dias de governo. Por exemplo: a
revogação de atos que foram marcas do bolsonarismo e trouxeram retrocesso
social.
Na área de infraestrutura, é preocupante o
sinal emitido em relação às concessões. O documento diz ser preciso “considerar
a possibilidade de reavaliação de modelos de concessão, como o critério de
julgamento nas licitações de rodovias, o modelo de privatização das autoridades
portuárias com exploração dos portos organizados, e a regulamentação das
autorizações ferroviárias”.
O texto não diz como seria a revisão de
critérios para concessões em rodovias. Sabe-se, porém, que durante nos governos
do PT, notadamente no de Dilma Rousseff (2011-2016) esse modelo de parceria com
empresas privadas privilegiou a menor tarifa como critério de escolha do
vencedor do leilão.
Se é para pagar pedágio, que seja o mais
barato. Com isso, todo mundo concorda. Também será difícil achar quem discorde
de que a estrada tem de estar perfeita, já que estamos pagando para usá-la. O
desafio é fechar essa conta.
No agora relembrado Programa de
Investimentos em Logística (PIL), uma criação de Dilma, o plano era equilibrar
a equação com financiamentos, a juros subsidiados, do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras instituições oficiais de
crédito.
No entanto, logo após uma série de leilões
em que as empresas vencedoras ofereceram deságios bastante agressivos para
arrematar as rodovias e aeroportos, veio o meteoro da Lava-Jato. As
concessionárias, grandes empreiteiras nacionais, foram arrastadas para o centro
das investigações. Avaliações mais cuidadosas mostraram que os cálculos feitos
por elas para chegar às tarifas pedidas não se equilibrariam. Os empréstimos
não saíram como havia sido sinalizado antes dos leilões.
Por isso, e pela recessão que se seguiu, as
concessões do PIL se tornaram verdadeiros “abacaxis”. A equipe do presidente
Michel Temer (2016-2018), na qual estava o governador eleito de São Paulo,
Tarcísio de Freitas, gastou os anos seguintes buscando formas para salvá-las.
Ainda assim, alguns empreendimentos do PIL retornaram às mãos do governo e há
um passivo bilionário em discussão. Aí está um caminho a ser evitado numa
eventual revisão pelo novo governo.
Os principais problemas constatados nas
concessões do PIL serviram de guia aos leilões que se seguiram. Hoje, o
programa brasileiro é considerado maduro pelo mercado internacional. Se não é
maior, é por causa dos problemas de sempre que afligem o país: baixo
crescimento econômico, juros elevados, inflação, volatilidade cambial.
Mesmo com essas dificuldades, a carteira do
Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), criado no governo Temer para
coordenar concessões, contém contratos em vigor com investimentos previstos de
R$ 1,3 trilhão. Desses, R$ 86,7 bilhões deverão ocorrer em 2023. O volume
chegará a R$ 409 bilhões até 2025, segundo estimativas da Secretaria de
Política Econômica (SPE).
Não se trata de atacar a modicidade
tarifária, um objetivo justo, correto e legitimador do próprio instrumento da
concessão. Ela apenas não pode afrontar a aritmética. Nos anos recentes,
empreendimentos que só “ficavam em pé” com tarifas muito elevadas simplesmente
não foram leiloados.
O uso de recursos públicos para equilibrar
concessões tampouco é pecado. É algo testado internacionalmente, e cada vez
mais utilizado nos Estados e municípios brasileiros, com sucesso. São as
Parcerias Público Privadas (PPPs).
Vários integrantes da futura equipe de
governo, a começar pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, têm
experiências bem-sucedidas em PPPs, que não atentaram contra a responsabilidade
fiscal.
A experiência acumulada em concessões e
PPPs na equipe do futuro governo é um sinal alentador de que erros do passado
podem não ser repetidos e de que, a despeito de alguns discursos mais
exaltados, retrocessos poderão ser evitados.
"O perigo das listas tríplices"
ResponderExcluirO Estado de S. Paulo.
Verdade. O poder não admite vácuo. Se o dirigente não ocupar o espaço, outro o fará.
Bolsonaro ocupou o espaço da PGR tanto quanto FHC: ambos tiveram engavetadores.
Dilma não controlou a PGR e entrou pelo cano.
O q LULA fez/fará?
Importa saber q se LULA não ocupar o poder outro o fará e aparecerão bolsonaristas, dalanhois e janôs e LULA será tratado como cão e impichado.
Isso vale sempre q outro ocupa o poder, não só na PGR - o estrago é proporcional à força do órgão cujo poder foi ocupado por um inimigo.