quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto* - O fator Tebet

Penso que a senadora Simone Tebet, ao aceitar o convite do presidente Lula para ser ministra do Planejamento, deve ter avaliado que ficar fora do governo, com posição independente, mesmo sendo coerente com o programa econômico de sua marcante campanha de candidata do centro democrático, seria politicamente inviável, do ponto de vista prático. Dois meses após o segundo turno das eleições, no qual apoiou Lula com assertividade e destemor, tudo no Brasil ainda está polarizado. Inclusive não há movimento concreto, nem da extrema-direita, nem do presidente eleito, para mudar essa situação. A primeira, muito pelo contrário, segue batendo às portas dos quartéis e até resvalando para o terrorismo; o presidente eleito, em ritmo populista que prorroga, em boa medida, o palanque eleitoral, apesar de esforços de racionalidade moderada também presentes em parte da sua equipe de transição.

Por enquanto não se enxerga espaço de vocalização para uma política independente, de centro democrático. Por outro lado, o sinal mais próximo do que poderá vir a ser uma oposição mais civilizada ao governo Lula vem de uma direita na qual posta-se o governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Esse novo político, embora tenha discurso e conduta distintos de Bolsonaro, está longe de cogitar rompimento com os grupos reacionários que sustentaram o governo que finda.

Por tudo isso é obrigatório admitir que, nesse início de novo governo - quando é sensato ter atitude de expectativa e cautela, sem tirar conclusões apressadas a respeito do caráter político que ele realmente terá - não haverá espaço autônomo para um centro liberal e progressista, como o que Simone Tebet representou na campanha. Ainda que a senadora tenha sido tratada, durante a transição que ora chega ao fim, sem a atenção política e a deferência pessoal que seu agir fez por merecer, seu lugar político só pode ser, no momento, o futuro governo, o qual deverá ter, afinal, um perfil de centro-esquerda, ainda que lhe faltem o compromisso ou a perspectiva programática de uma autêntica coalizão política.

É preciso admitir também que, dentre as opções que ao final, restaram para que Tebet possa ter uma participação efetiva, que vá além de um amém ao lulopetismo (até aqui incontrastável força hegemônica no governo que se forma), o ministério do Planejamento foi a solução porque sinaliza à senadora mais possibilidades de ter postura propositiva de governo e menor risco de dano político. Deve-se reconhecer, no presidente eleito, ao incluir esse ministério entre as opções, a mesma clarividência realista que mostrou quando escolheu Geraldo Alckmin para companheiro de chapa. Isso não cancela, por outro lado, o fato de que uma lógica de hegemonia tem tido forte influência nas suas decisões. Ela é que não permitirá, por exemplo, que o ministério oferecido à senadora tenha protagonismo no desenho - não na operação, pois não caberia - de prioridades do Programa de parcerias de investimentos (PPI), típica atividade de planejamento. A racionalidade dessa solução esbarrou noutra, própria da política hegemônica e essa política pública terá firme pouso na Casa Civil.

Pela mesma lógica foram antes frustradas, pelo núcleo duro da transição - e contra os esforços, nesse caso, de Geraldo Alckmin - as pretensões iniciais da senadora. Primeiro sua afinidade com a pasta da Educação, evidenciada na campanha do primeiro turno e discretamente manifestada no início da transição. Ciente de um primeiro óbice, engajou-se no grupo de transição do Desenvolvimento Social, no qual teve destacado papel de coordenação, passando a manifestar, dessa vez abertamente, disposição de assumir, caso fosse convidada, a pasta correspondente. Após nova recusa, proveniente da posição do PT de deter também essa pasta, a fritura a que a senadora foi submetida, nas semanas seguintes, terminou colocando-a diante de três outras opções, todas conflituosas: frustrar uma mais que legítima pretensão da deputada eleita Marina Silva, se fosse para o Meio Ambiente; bater de frente com a bancada do seu próprio partido, o MDB, na Câmara dos Deputados, se fosse para o ministério das Cidades; ou ir para onde acabou indo, o Planejamento, lugar onde tende a fazer contraponto à política econômica insinuada, até aqui, pela equipe que está sendo montada pelo futuro ministro da Fazenda, um notório quadro político do PT. As duas outras alternativas (Meio Ambiente ou Cidades) trariam embaraços sérios a um futuro projeto político aglutinador que Tebet legitimamente queira representar.

Então, a senadora vai para uma posição desconfortável, mas nela, ao menos, terá argumentos sólidos (presentes no seu programa econômico) para tentar algum diálogo moderador do empuxo estatista do PT, empuxo não desprovido de nuances, onde podem morar algumas chances de diálogo. Caso diálogo não ocorra a contento das partes, Planejamento é ministério de perfil abrangente, que permite à senadora, se a barra pesar muito, sair da cena governista com o reconhecimento de ter realizado um bom combate de ideias e não só de interesses, os quais são, aliás, também legítimos, da parte dela e dos demais atores, desde que sejam compreendidos e defendidos de modo a não ferir o interesse público. Até que o curso dessa esgrima se defina (momento crucial será o da negociação do próximo orçamento com o Congresso) a senadora poderá, como ministra, se assim quiser, estreitar laços, na sociedade e no governo, com quem defende posições econômicas convergentes à sua e afirmar um contraste político com o populismo, caso o rumo do governo seja esse, como, a meu ver, parece que será.

Tebet entra relativamente fragilizada no governo, também por erro de cálculo seu, ao não dar devido peso à necessidade de entendimento prévio mais fluente com as várias facções do seu partido. Seu tempo de permanência no ministério será regulado pela política, a sua e também as dos demais atores envolvidos. Penso que o limite desse tempo pode ser o momento em que se começar a tratar abertamente, dentro do governo, da sucessão de Lula, o que pode ocorrer antes ou após as eleições de 2024. Antes desse momento, Simone poderá sair do governo por conta própria, ser neutralizada, ou expelida. Ou não. Impossível antecipar se a travessia durará. semanas, meses (e quantos) ou se chegará a anos, mas será sim, um tempo político. O que não quer dizer que ela e seus interlocutores estejam colocando 2026 na frente de 2023. Bem governar é um dever e ter objetivos eleitorais é próprio da democracia. Quando há saúde democrática os dois imperativos convivem e se retroalimentam.

Para ficar no governo em relativa paz e com êxito, a senadora precisará de virtù política incomum, capaz de fazê-la contribuir efetivamente para o governo, atuando com o mesmo espírito público construtivo que teve na campanha; fazer, com esse objetivo, malabarismos sinérgicos com Lula e com seus próprios apoiadores e eleitores não lulistas e até antilulistas; esgrimar com o hegemonismo permanente do PT; entender-se mais e melhor dentro da trama complexa e mundana do seu próprio partido, o MDB e ainda manter relações saudáveis com setores moderados da oposição. É um desafio e tanto!

Quanto ao que o governo Lula fará a respeito da figura notória que acaba de incorporar, ninguém sabe, talvez nem o próprio presidente eleito. No exercício livre de prognósticos especulativos, a partir da interpretação do que vem ocorrendo até agora, imagino Lula, num primeiro momento, compreendendo bem a importância da sua ministra, mas usando o ministro Fernando Haddad para lhe cortar algumas asas e também usando a própria Simone para fustigar Haddad e fazê-lo ficar ainda mais dependente, leal e fiel ao líder, do que já normalmente é. No fim das contas ambos (Simone e Haddad) podem terminar objetivamente chamuscados por um  jogo de soma zero. Em benefício de que, ou de quem?

Eis um tema para um livre pensar, ou um "só pensar", no dizer provocativo do saudoso Millôr Fernandes. Como Simone Tebet tem bem menos alinhamento político que o interlocutor petista que será seu presumido rival no ministério, ela tende a sair do governo, caso o conflito extrapole. Quanto a Haddad, ficaria, nesse caso, devendo à arbitragem de Lula um êxito na contenda interna que pode ser vitória de Pirro. Mas já ganhou o primeiro round, segurando consigo Banco do Brasil e Caixa Econômica.

Ainda como conjectura (talvez a mais temerária de todas a que me arrisco aqui), vejo a enigmática figura da primeira dama, caso tenha pretensões políticas, como uma possível beneficiária dessa contenda anunciada entre Fernando Haddad e Simone Tebet. Assim como tende a se beneficiar, também, de outro virtual conflito, entre Geraldo Alckmin e Aloisio Mercadante, contratado por Lula ao colocar seu vice no ministério da Indústria e Comércio e o petista no BNDES. É de supor que, se e quando necessário, Lula arbitrará um desses mais que hipotéticos conflitos em favor de Haddad e o outro em favor de Alckmin, já que Mercadante, em tese, não poderá derrotar quem é vice-presidente e que, além disso, possui articulação política própria. Seguindo ainda a trilha do livre pensar, poderemos ter que Lula, com essas duas prováveis arbitragens, desde que sejam feitas nas horas certas, pode, além de agradar à esquerda doméstica, desinflando a possível candidatura de Simone Tebet à sua sucessão,  agradar também ao "mercado", ao limitar o poder de Mercadante ou mesmo, no limite, levar a se afastar do governo esse político que não tem peso de presidenciável mas que é um dos vários quadros históricos e conspícuos do PT do tempo de Dilma Rousseff que terão espaço relevante no novo governo.

A médio prazo, penso cá comigo, um enredo como esse deixaria a pista mais livre até para um script populista doméstico, que meus botões admitem até como plano A de Luís Ignácio. Rendo-me, porém, a uma razoabilidade maior que a de meus botões enviesados por um receio forte de populismos e trato dessa virtual argentinização do lulismo só como cenário alternativo de novo confronto eleitoral direto, em 2026, com uma oposição de direita, ou com duas oposições. Isso em caso de o governo patinar e com ele Haddad, Alckmin e até Simone, se ela até lá não houver tomado, por si, ou por decisão do governo, outro caminho político. No caso de sucesso governamental, a senadora seria azarão para cabeça de chapa, mas não estaria obrigatoriamente fora de uma composição. São meras hipóteses, mas será estúpido pensar que é mera coincidência estarem os três políticos ligados à área econômica do governo.

É óbvio que tudo isso é prematuro até como hipótese e pode, com o tempo, revelar-se não mais que uma peça de ficção. Mas é o que posso ver quando abro os olhos para além da conjuntura imediata. Ao abri-los sou um "cara-pálida", comentarista sem partido que, sem influência ou pretensão política, pode fazer cogitações mentais pródigas, às vésperas do réveillon da posse. Parênteses: a solenidade está sendo tratada, pela primeira dama, com uma, digamos, criatividade não isenta de tensão com a institucionalidade formal que o país precisa resgatar após quatro anos de permissividade destrutiva.

Voltando ao assunto principal: para personalidades políticas, como a senadora Simone Tebet, toda prodigalidade retórica é imprudente nesta e em muitas outras horas. Olhos abertos para o inusitado, sim, mas também mente firme na coerência e comedimento em suas palavras. São itens igualmente imprescindíveis de um guia de sobrevivência na selva. Inexiste, a princípio, espaço para ilusões da senadora serem perdoadas pela fortuna. A rigor, não haverá, no novo governo, uma disputa em aberto. O jogo visível é pesado, controlado, com várias cartas marcadas. A vantagem relativa que o ministério do Planejamento dá a Tebet, nesse jogo, é poder discutir assertivamente, se preciso, o atacado da política econômica, sem ficar pelejando no varejo por divergências ideológicas ou interesses pontuais.

Para não ficar comentando apenas cálculos eleitorais e similares - que, ademais, são tão prematuros como são os comentários - penso que um eventual projeto de Simone Tebet para 2026 poderia ser adiado e não se antepor a um projeto de bom governo de uma coalizão política, desde que houvesse de fato coalizão e se ela se fizesse em torno de um programa progressista. Penso que hoje não há nem uma nem outra condição. Por isso seria suicídio político e imprudência com o país se Tebet embarcasse, sem passagem de volta, na canoa populista hoje atracada no porto com toda sua tripulação de matizes, vírgulas, parênteses, interrogações, exclamações e pontos parágrafos, alguns com ares de ponto final.

A boa receptividade obtida, em importantes setores de opinião pública e em ambientes sistêmicos, pela aceitação, por Tebet, do convite de Lula, indica que ela é fator de coesão política ampla e não peça de fácil descarte por uma engrenagem arquitetada por lances ousados de um líder perito em barganhas, ou por máquinas de facções políticas autocentradas. Concluo com aquele nosso mantra: "a política voltou".

*Cientista político e professor da UFBa

5 comentários:

  1. Robusta e rejuvenescida na volta

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  2. Para desgosto dos bolsonaristas, muitos participantes da mídia, como jornalistas da Jovem Pan, tv Record, Correio do Povo de Porto Alegre, e os pastores safados de tantas igrejas picaretas mas muito LUCRATIVAS.

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  3. "...tudo no Brasil ainda está polarizado. Inclusive não há movimento concreto, nem da extrema-direita, nem do presidente eleito, para mudar essa situação."
    Nem do LULA? Inacreditável. Mas ele, Dantas Neto, escreveu. ELE ES-CRE-VEU IS-SO! Por q ele põe LULA e o bozo e suas forças no mesmo patamar de inação pra "mudar essa situacao"? Não sei. Ele não explica ou explica e eu q não entendo.

    BOBAGEM, muita. mesmo. Nem vou perder mais tempo comentando esse artigo.

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  4. Cego é aquele que não quer ver.

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