sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Pedro Doria - A sua foto como viking

O Globo

Envie para um app fotografias de seu rosto e receba em troca dezenas de versões do seu retrato. Todas criadas pelo computador

Nos últimos dias de novembro, a startup Stability AI pôs na rua a versão 2.0 de seu popular algoritmo de inteligência artificial. A empresa, neste momento, é a principal coqueluche do Vale do Silício. Um investimento que recebeu faz poucos meses a catapultou ao valor de US$ 1,5 bilhão. E, talvez mesmo sem conhecer seu nome, quem passeia pelas redes fatalmente já deparou com o produto único da Stability. São imagens de rostos, às vezes como pinturas, como fotografias num ambiente de ficção científica, cenas num mundo de fantasia — a última moda da web. Envie para um app fotografias de seu rosto e receba em troca dezenas de versões do seu retrato. Todas criadas pelo computador.

Esse ramo da tecnologia atende pelo nome “inteligência artificial generativa”. É um tipo de algoritmo que gera conteúdo novo, inédito. Pode ser treinado com bilhões de imagens e cria a partir do que analisou. Ou pode ser alimentado com textos, com vídeos, com o que for. A lógica é que aprende um estilo — poemas de Shakespeare, pinturas de Picasso, filmes de Wes Anderson — e, a partir de instruções simples, produz um soneto, um retrato, uma cena. Estamos num ponto da tecnologia em que os produtos desses algoritmos, principalmente em imagem estática, estão próximos de substituir a contratação de um artista. Pode não eliminar Picasso, mas dispensa chamar quem faça uma capa de revista ao seu estilo.

O que torna a Stability AI única é a maneira como encara o setor. Seu algoritmo, o Stable Diffusion, foi publicado em código aberto. Google, Open AI e outras tantas empresas constroem tecnologias muito similares e igualmente sofisticadas. Mas são fechadas. O Stable Diffusion, não. Qualquer um que entenda do ramo pega o código, aplica como bem entender, pode até construir versões modificadas. O objetivo é duplo. O primeiro, ideológico — a tecnologia, seus fundadores acreditam, deve pertencer a todos. O segundo, comercial. Quer ser dona do padrão que todo mundo usa. Como seu produto é gratuito, é o padrão com que mais desenvolvedores têm sido treinados.

A primeira versão do Stable Diffusion já era impressionante. A partir dela, brotaram na internet inúmeras cenas pornográficas com mulheres e homens famosos. Ficou fácil qualquer adolescente com algum tempo para aprender ter a capacidade de dar asas à sua imaginação.

Brotaram também plug-ins, pequenos adendos ao programa que o ensinam a desenhar no estilo de ilustradores populares de estúdios de animação, de capas de livros, do universo da fantasia.

Os exemplos de uso geram incômodo, desconforto e mesmo questões éticas. Com os algoritmos fechados de empresas, nada disso é possível. Mas, com um aberto, o limite é a imaginação. Se a produção de uma imagem começa a dispensar quem ilustra, empregos desaparecem. Já está acontecendo. A questão da privacidade não é menor. É possível evitar que sua imagem seja criada artificialmente, mas com perfeição, numa cena que lhe cause repulsa? É bastante provável que a resposta seja “não”.

A tecnologia existe, ela funciona, é gratuita — e será usada.

A versão nova do Stable Diffusion bloqueou a possibilidade de imagens com nudez ou sexualidade e dificultou a simulação de estilos artísticos. Mas, como o código é aberto, quem tem a manha pode retirar os bloqueios. Já há uma corrida em curso.

Os dilemas não diminuirão. A tecnologia seguirá nos desafiando, e precisamos de filósofos como nunca. Até lá, vejam bem, essa coisa de criar retratos de si mesmo, noves fora o narcisismo, é divertida como só.

 

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