domingo, 25 de dezembro de 2022

Rolf Kuntz* - Lula, política social e responsabilidade

O Estado de S. Paulo.

Se der mais atenção à ideologia do que à aritmética, aderir à gastança e desprezar a boa gestão fiscal, o novo presidente comprometerá suas políticas sociais

Educação, saúde, cultura, ciência e tecnologia aparecem com frequência nas falas do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, e esse repertório marca uma enorme diferença entre ele e o atual chefe de governo, Jair Bolsonaro. Mas ambos se assemelham, em seus discursos, quando se dirigem principalmente a seus eleitores, ou, de fato, supostos eleitores. Assim como a reação ao petismo ajudou a eleger Bolsonaro, o antibolsonarismo contribuiu para a vitória de Lula em 2022. Petistas, não petistas e até antipetistas garantiram, com 60,34 milhões de votos, um terceiro mandato ao ex-líder sindical. Nem era preciso, para votar dessa forma, esperar um grande governo a partir de 2023. Deve ter sido suficiente, para muitos, a mera perspectiva de um retorno à civilização. Mas Lula se dirige aos companheiros de partido como se tivessem garantido sua vitória e, além disso, como se as bandeiras partidárias indicassem um programa de governo. Se acreditar nisso, retrocederá para antes de 2002 e comprometerá as possibilidades de um bom trabalho.

O presidente eleito vem alternando, há mais de uma semana, dois discursos, um dirigido ao conjunto dos eleitores, outro voltado para o petismo tradicional. O próprio Lula parece, em vários momentos, encarnar esse petismo. Quando promete o fim das privatizações e sugere uma escolha entre políticas sociais e responsabilidade fiscal, o líder petista retorna aos velhos palanques, esquece as obrigações e limitações do governante e se envolve, totalmente, nas nuvens da ideologia. No governo, toda opção fundamental terá algum sentido ideológico, mas nenhum valor moral, político ou estético revogará a aritmética e produzirá recursos ilimitados.

A tolice mais evidente a respeito das contas de governo foi logo apontada. É falsa a oposição entre disciplina fiscal e políticas sociais. Problemas ocasionados por desajustes nas finanças públicas afetam mais duramente os pobres que os outros grupos. Quando déficits mal planejados alimentam a inflação, quem sobrevive com dinheiro curto é o mais prejudicado. Se o aumento da dívida pública resulta em juros mais altos, as famílias mais modestas são as mais oprimidas pelo crédito escasso. Tesouro em bom estado e dívida oficial controlada e previsível favorecem juros moderados, maior oferta de empréstimos e taxa de câmbio sem grandes oscilações. O dólar instável e supervalorizado foi, nos últimos quatro anos, um frequente fator de pressões sobre o conjunto dos preços e sobre o custo de vida.

Contas de governo em ordem, com eventuais déficits bem planejados e dívida pública bem programada, tornam o horizonte mais claro, facilitam o planejamento empresarial, evitam o risco de surtos inflacionários e favorecem juros moderados. Se a política oficial contemplar, em tempos normais, a geração de superávits primários (saldos positivos, sem contar os juros da dívida), o poder público terá melhores condições para gastos excepcionais quando a atividade econômica fraquejar.

Política fiscal é antes de mais nada um fato político e, em grande medida, cultural. Em democracias avançadas, contas oficiais em ordem são valorizadas por diferentes partidos e desejadas como componentes da normalidade. Déficits sustentáveis podem ser aceitos como aspectos da vida normal. Nesse caso, as contas públicas, mesmo deficitárias, são financiadas com juros baixos e sem grandes problemas para a rotina dos cidadãos e de suas organizações.

Nada disso é compatível com a recusa explícita da responsabilidade fiscal ou com aberrações como um orçamento secreto. Além disso, em democracias avançadas a Constituição, multissecular ou adotada depois da 2.ª Guerra Mundial, é um conjunto quase sagrado, e pouco extenso, de normas fundamentais. Não se recorre, como no Brasil, a emendas constitucionais para resolver problemas políticos do dia a dia e para eliminar dificuldades da administração. A legislação ordinária basta para regular a maior parte da vida, mesmo em sociedades complexas, dinâmicas e em constante evolução.

Como toda ação política, a administração das contas oficiais envolve valores e prioridades. A limitação de recursos, inevitável fora do Paraíso, se impõe tanto às famílias quanto ao poder público. Pode-se valorizar o combate à pobreza, trabalhar pelo desenvolvimento social ou dar preferência a outros objetivos. Em qualquer caso, será preciso calcular os custos, avaliar os meios disponíveis e ordenar as despesas, podando outros gastos. Tudo se complica, obviamente, quando é preciso comprar apoio parlamentar para a execução de uma política. Quando isso ocorre, as ações se tornam mais caras e os meios, mais escassos.

Lula conhece as dificuldades políticas da administração. Mas essas dificuldades são especialmente importantes quando se tenta conciliar as boas intenções e a boa gestão financeira – quando se tenta, por exemplo, realizar políticas sociais sem violar a responsabilidade fiscal. Nenhuma boa intenção produzirá efeitos duradouros se essa responsabilidade for renegada.

*Jornalista

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