segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Fernando Gabeira: Vírus, chuva e calor

O Globo

Gostaria de abordar as chuvas de forma poética, como Elizabeth Bishop em sua “Canção do tempo das chuvas”. Mas agora elas assumem um aspecto dramático, matando e destruindo.

Joe Biden, visitando o Kentucky, associou o tornado que devastou a região e as chuvas no Brasil às mudanças climáticas.

Sinto que há algo parecido, mas ainda esbarro num monte de dúvidas. Sei que as chuvas estão sendo provocadas por um sistema meteorológico chamado Zona de Convergência do Atlântico Sul. É uma grande extensão de nuvens movidas por um coquetel de ventos: do Sudeste, Nordeste e até das altitudes bolivianas.

Essas chuvas são influenciadas por La Niña, um fenômeno, assim como El Niño, que acontece no mar.

Desde quando li as intervenções dos cientistas numa conferência sobre o clima, aprendi que o aquecimento global seria irreversível quando houvesse mudanças nas famosas correntes marinhas. Não tenho condição de afirmar que a velha La Niña tenha se alterado por influência de correntes. Sei que, assim como El Niño, quando traz chuvas numa região do Brasil, leva seca para outras.

No momento, chove no Sudeste, e há escassez de chuvas no Sul do Brasil.

Além da destruição dos corais, do derretimento das geleiras, da poluição humana, há coisas acontecendo nos mares. Cientistas descobriram que a velocidade das correntes tem aumentado, ainda não sabem precisamente as consequências disso.

Miguel de Almeida: Bocage e o Rio de Janeiro

O Globo

O que personagens como Humboldt, Lebreton, Bocage e mesmo Napoleão têm em comum com o Rio de Janeiro e o Brasil?

De um jeito ou de outro, contribuíram para deixar o país menos mané, mais ilustrado e não tão sujeito às superstições trazidas pela ignorância e vocalizadas sob o manto religioso.

Só que poucas andorinhas não fazem uma nação.

Neste ano do Bicentenário da Independência, o Brasil talvez pudesse se encontrar com seu destino ao buscar onde ocorreram os descarrilhamentos e por que sempre voltamos tantas casinhas.

As datas por vezes ajudam a repensar os fatos, mas mesmo a História precisa contar com a sorte.

No Cinquentenário da Independência, embora Machado de Assis escrevesse sobre o “Instinto de Nacionalidade”, no jornal dirigido por Souzândrade em Nova York, o Império brasileiro incensava a figura de Dom Pedro II e sua miopia diante da Revolução Industrial.

Em 1922, ainda que houvesse a importante Exposição do Centenário, com mais de 3 milhões de visitantes, o governo de Epitácio Pessoa representava uma elite atrasada e avessa às ideias de caráter social. Aquele tipo de República cairia oito anos depois.

No sesquicentenário, em 1972, o Brasil vivia sob a ditadura militar, com o general Médici à frente da tentativa de eliminar à bala os adversários do regime.

Bruno Carazza*: Os ventos da mudança

Valor Econômico

Intervencionismo no exterior e aqui, na campanha eleitoral

De tempos em tempos, os ventos da política e da economia mundiais mudam de direção. Pode demorar um pouco, mas a viragem sempre chega por aqui, com maior ou menor intensidade.

O desenvolvimentismo brasileiro, de Vargas a Geisel, foi forjado pelo casamento entre estatais, empresas multinacionais e grupos brasileiros. Longe de ser uma receita original e local, era fruto de seu tempo - no imediato pós-guerra, o braço forte do Estado se aliou ao grande capital para produzir as três décadas de ouro do século XX (1945-1975).

Os desequilíbrios desse modelo de desenvolvimento se tornaram evidentes após os choques do petróleo dos anos 1970, e a chegada ao poder de Margareth Thatcher e Ronald Reagan geraram um terremoto liberalizante que abalou as estruturas estatais em diferentes graus, provocando réplicas ao longo das décadas seguintes.

Privatização, desregulamentação, restrições nos gastos governamentais, redução da tributação sobre as empresas e globalização levaram a uma onda de retração do intervencionismo governamental nas economias. O capítulo da ordem econômica da Constituição de 1988 resumem essa influência liberal em terras brasileiras: a exploração de atividades econômicas por estatais seria exceção (art. 173) pois o papel do Estado deveria se concentrar na regulação e incentivo ao setor privado (art. 174).

Esse modelo, é bem verdade, nunca foi plenamente implementado por aqui. Mas se não estivesse conectado ao espírito de seu tempo, dificilmente Fernando Henrique teria cumprido seu programa de privatizações ou aprovado as reformas nos setores de petróleo, telecomunicações, elétrico e financeiro.

A maré parece estar virando novamente. A revista The Economist desta semana traz uma série de matérias especiais chamando a atenção para o advento de uma nova era de intervenção estatal na economia.

Francisco Góes: ‘Motor da inovação é a competição’, diz Passos

Valor Econômico

Economia fechada do Brasil limita a capacidade de inovar

O Jockey Club Brasileiro, na Gávea, recebeu de quinta até ontem milhares de pessoas. Quem passasse pelo local poderia pensar tratar-se de festival de música ou de gastronomia, mas o público que ali compareceu, sob o forte calor do verão carioca, foi em busca de conhecimento e de oportunidades em inovação e em tecnologia. Os dois temas estiveram presentes na Rio Innovation Week, evento com apoio do Valor que incluiu debates sobre saúde, educação, finanças, ambiente, agronegócios, startups, marketing e cidades inteligentes, entre uma miríade de outras mesas temáticas.

O evento colocou a inovação e a tecnologia na agenda de um público mais amplo do que cientistas e empresários. É um debate que ajuda a pensar os caminhos do Brasil nessa área.

O entusiasmo do encontro no hipódromo da Gávea contrasta, porém, com o diagnóstico de especialistas sobre o momento do Brasil nesse campo, marcado por cortes de recursos públicos, baixos dispêndios pelas empresas e incerteza sobre os investimentos futuros da pesquisa, desenvolvimento e inovação no país.

As empresas brasileiras fazem mais inovação incremental via compra de máquinas e equipamentos que aumentam a produtividade. Mas investem pouco em inovação “disruptiva”, aquela que faz realmente a diferença na competição pelo mercado global.

Mas afinal o que é inovação? O conceito de inovação tecnológica remete à criação de produto ou de processo produtivo novo para o mercado, diz Fernanda de Negri, coordenadora do centro de pesquisa em ciência, tecnologia e inovação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Essa inovação é fundamental para o crescimento econômico e para se obter ganhos de competitividade.

Marcus André Melo*: Corrupção e eleições

Folha de S. Paulo

Eleições são disputas em torno de quais dimensões devem tornar-se salientes e quais devem ser interditadas

Na Coreia do Sul, o favorito na atual disputa presidencial é o ex-procurador-geral do país Yoon Seok-Youl, que adquiriu popularidade no processo que levou a ex-presidente Park Geun- Hye a sofrer um impeachment e ser presa. O atual presidente, Moon Jae-In, que não é candidato devido à vedação constitucional da reeleição, foi quem nomeou Yoon para o cargo, que agora está na oposição.

Recentemente, Moon concedeu indulto à ex-presidente temendo futuras investigações do ministério público, após uma malsucedida campanha para reduzir o poder dos procuradores (Yoon denunciou seu Ministro da Justiça e braço direito por corrupção). Park é filha do ex-ditador General Park Chung-Hee, que governou o país por 18 anos.

A questão da corrupção é o tema vertebrador da política no país juntamente com a inflação, endividamento familiar e moradia; o combate à pandemia tem sido exemplar mas não tem sido politizado.

O caso sul-coreano é ilustrativo das insuficiências das discussões em torno do significado de esquerda, direita e centro. Como no Brasil, mesclam-se questões relativas a corrupção, autoritarismo, e questões redistributivas. Mas os contrastes com nosso país são evidentes.

Celso Rocha de Barros: Estou errado sobre a democracia brasileira?

Folha de S. Paulo

Fraqueza da centro-direita não é desculpa para ignorar risco que Bolsonaro traz à democracia

Carlos Pereira é um grande cientista político brasileiro. Escreveu com Marcus Melo (o da coluna aqui do lado) um livraço, "Making Brazil Work". Reunindo pesquisas empíricas de alta qualidade, a obra mostrou que o sistema político brasileiro funcionava bem melhor do que se pensava.

O problema é que o livro saiu quando já parava de funcionar. "Making Brazil Work" continua sendo um ótimo estudo dos 20 anos anteriores. Suas conclusões podem voltar a ser aplicáveis quando a crise política passar. Mas é evidente que seu modelo teórico subjacente perdeu poder explicativo na crise política dos últimos anos.

Após a eleição de Bolsonaro, Pereira passou a defender a tese de que Bolsonaro não oferecia risco à democracia brasileira. Afinal, Brazil works. Em sua coluna no Estadão da última segunda-feira (10), Pereira voltou a afirmar que a democracia sobreviveu bem a Bolsonaro, porque o STF conseguiu barrar várias iniciativas do presidente na pandemia e a CPI investigou seus crimes. Criticou quem defende que Bolsonaro ameaça a democracia, dizendo que essa tese não é testável empiricamente a não ser que o golpe ocorra.

O último argumento é claramente falso. Risco é uma probabilidade. Nenhum economista diria, por exemplo, que negócios bem-sucedidos nunca foram arriscados.

Ana Cristina Rosa: Banzo, depressão e morte

Folha de S. Paulo

Pouco ou nada mudou em termos de políticas públicas para a saúde da população negra

Neste "Janeiro Branco", campanha com o objetivo de chamar atenção para os cuidados com a saúde mental, esta coluna adverte: o impacto psicológico do racismo na vida de adolescentes e jovens negros pode ser letal.

Com a autoestima abalada por um sistema cruel, desleal e opressivo, o risco de desenvolver quadros de depressão é 45% maior entre os pretos e pardos na comparação com os jovens brancos. Isso evidencia o efeito devastador do racismo sobre a saúde mental da população negra.

Cartilha do Ministério da Saúde com dados sobre óbitos por suicídio apontava já em 2018 que cerca de 60% das mortes de pessoas entre 10 e 29 anos ocorreram entre negros. Faz todo sentido quando se considera que a depressão é uma das principais causas associadas a esse tipo de óbito.

Catarina Rochamonte: Valeu, Folha!

Folha de S. Paulo

Folha decidiu, corretamente, descontinuar, por este ano, a atividade de seus colunistas que tenham pretensão eleitoral. É o meu caso: sou pré-candidata pelo Podemos, no Ceará, a deputada federal. Assim, escrevo este 85° artigo para despedir-me provisoriamente.

Quando fui convidada a assumir esse pequeno e precioso espaço semanal surpreendi-me. Minha visão destoa da linha editorial deste ilustre jornal. Por isso mesmo foi grande o mérito da Folha em ter mantido essa coluna apesar da forte pressão da patrulha que pedia a minha cabeça em uma bandeja a cada artigo mais polêmico. Esse jornal teve comigo postura impecável: jamais fui pressionada ou sequer sugestionada a modificar uma linha do que pretendia escrever, por mais duro que fosse o texto.

João Doria*: O dia em que a ciência venceu as mentiras

O Estado de S. Paulo.

São Paulo se tornou uma referência mundial em vacinação – 97% dos adultos já estão com o esquema vacinal completo

Lembro de cada instante daquele dia: primeiro, a aprovação da Coronavac, por unanimidade, pela diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Estávamos no Hospital das Clínicas, maior complexo de saúde da América Latina. Passava das 15 horas de 17 de janeiro de 2021, quando a enfermeira Mônica Calazans, que trabalha na UTI do Instituto Emílio Ribas, recebeu, no braço esquerdo, a primeira vacina contra a covid aplicada no Brasil. Era o início da mais ampla campanha de vacinação de nossa história.

Hoje, exatamente um ano depois, está comprovado que as vacinas mudaram a trajetória da pandemia, ao evitar internações e salvar a vida de milhões de pessoas. Mas penso que aquele momento tem ainda mais significados: 17 de janeiro de 2021 foi o dia em que as verdades da ciência derrotaram as mentiras do negacionismo. O dia em que o trabalho venceu a incompetência e a razão superou o medo. Vacina sim, cloroquina não. Há um ano, a compaixão foi maior que o egoísmo, a esperança voltou e os brasileiros viram que, com seriedade e boas políticas públicas, nosso Brasil tem jeito.

São Paulo se tornou uma referência mundial em vacinação – já temos 97% dos adultos com esquema vacinal completo. O trabalho do governo estadual, de prefeituras de todo o Estado e do Instituto Butantan ajudou todos os brasileiros a se protegerem. Antecipamos em pelo menos três meses a vacinação prevista pelo governo federal. Imunizamos os profissionais de saúde do Brasil inteiro, oferecendo a eles a segurança necessária para o enfrentamento da segunda onda da pandemia. Produzimos e entregamos aos brasileiros 100 milhões de doses de vacina. Demos prioridade à imunização dos profissionais da educação, da segurança e dos transportes coletivos, restabelecendo todos os serviços e atividades. Hoje, mais de 145 milhões de brasileiros se encontram totalmente vacinados. Mais de um terço desse total recebeu Coronavac, que evitou formas graves da doença e salvou milhões de vidas.

Denis Lerrer Rosenfield*: O bom debate

O Estado de S. Paulo.

Posição de Lula e PT sobre teto de gastos e reforma trabalhista serviu para outros candidatos comparecerem à cena

É inegável o fato de que Lula e o PT terem suscitado um debate sobre o teto de gastos e a reforma trabalhista produziu um efeito benéfico. Não tanto pelo que disseram, por se tratar do mesmo anacrônico receituário que levou o País à breca no governo Dilma, mas por terem obrigado os outros partidos e contendores a comparecerem à cena. De repente, a discussão foi deslocada para o governo Temer e as suas reformas, tendo o ex-presidente comparecido como ponto de referência daquilo a ser ou não feito. Ao visar às reformas necessárias para o País, seguindo a demagogia do “neoliberalismo”, quando não do “imperialismo” orientando a Lava Jato contra as empresas brasileiras, o PT escolheu como alvo um governo orientado por reformas sensatas, voltadas para o bem do País, independentemente de sua popularidade.

Imediatamente, os candidatos Sérgio Moro e João Doria, em atitudes responsáveis, mostrando que estão preparados para dirigirem o País, saíram em defesa destas reformas. Naquele então, o MDB e a Fundação Ulysses Guimarães ofereceram as bases reformistas graças ao documento “Ponte para o futuro”, destacando também a posição do antigo líder do partido na condução desta reformas, deputado Baleia Rossi, hoje presidente do partido e coordenador eleitoral da campanha da senadora Simone Tebet. Eis as ideias que estão colocadas para um espaço de centro, capazes de viabilizar uma candidatura unificada politicamente neste campo.

Mirtes Cordeiro*: Vacinação, direito da criança e dever do Estado

Fundamental é fortalecer o SUS e garantir informação com transparência à população.

“Vacinação é feita principalmente a partir de campanha, a partir de informação da população. O que é necessário é passar uma mensagem clara e direta para população de que a vacina salva vida, é importante, é segura. Então, é isso que precisa ser feito. A obrigatoriedade sempre existiu. A gente não imagina se vai haver uma fiscalização em torno da obrigatoriedade da vacina. Não é por aí que a vacinação se faz e não foi por aí que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) se tornou um programa exemplar no mundo todo.” A explicação é do advogado e médico sanitarista Daniel Dourado, em entrevista ao G1.

Pois bem. Até que enfim começou a vacinação contra Covid-19 para as nossas crianças com idade entre cinco e 11 anos de idade, em meio a grandes debates negacionistas promovidos pelo presidente da República e seu ministro da Saúde, mesmo considerando que, a vacinação para crianças já teve início, com segurança, em outros países há alguns meses.

Direito da criança e dever do Estado. Está registrado no Estatuto da Criança, Lei n 8.069 de 13 de julho de 1990, Art. 14 parágrafo único.

Esqueceram? É o que parece. Ou nunca tomaram conhecimento.

Da ação do presidente, não adianta falar. É uma questão que só será resolvida no período eleitoral deste ano, tomara, quando cessarão os insultos diários à população brasileira. Mas o ministro tem insistido em manter uma postura caricatural do seu chefe.

O que um médico ganha com isso, já no fim da carreira? Como diria o presidente, o que está por trás? Ninguém sabe. Cidadãos de bem enxergam melhor com atitudes transparentes.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Cerco aos não vacinados se fecha em todo o mundo

O Globo

À medida que a variante Ômicron se espalha, produzindo recordes de infecções, aumenta o cerco de governos e autoridades sanitárias aos não vacinados. Graças aos benefícios trazidos pelas vacinas, que reduzem hospitalizações e mortes, as estratégias para prevenir a Covid-19 passaram a dar mais ênfase à imunização que a medidas de restrição ao comércio e serviços. Em todo o planeta, a recomendação para vencer o vírus tem sido clara: vacinar, vacinar e vacinar.

Como ficam os não vacinados e defensores das campanhas antivacina? Com espaço cada vez mais reduzido. Se os negacionistas, alegando defender uma pretensa liberdade individual, podem ter direito a não comparecer aos postos, então as autoridades têm o dever de barrá-los em locais de grande frequência em nome da saúde coletiva. Assim tem sido. Os passaportes sanitários para comprovar a vacinação se tornaram fundamentais para aumentar a segurança em lugares de grande afluxo.

Em que pese o caráter midiático da decisão, o veto do governo da Austrália à entrada do tenista Novak Djokovic, número um do ranking, por não apresentar o passaporte de vacinação, pôs a questão na ordem do dia. Negacionista conhecido, ele alegou que tinha autorização de exceção dada pelos organizadores e obteve uma liminar da Justiça para participar do Aberto da Austrália, depois revogada em instância superior. Djokovic foi deportado ontem do país e se tornou um pária no esporte.

Cacá Diegues: O livre canto

O Globo, 16/01/2022

O maior adversário da cultura, em todos os regimes que o homem conheceu em sua História, sempre foi o poder

O assunto da semana foi a série documental, realizada por Renato Terra para a televisão, sobre Nara Leão. Conforme nossa disposição, o título do programa já nos provoca uma reflexão indispensável sobre o que fazer de nosso eventual silêncio: “O canto livre de Nara Leão”.

Se ela nos propunha um “canto livre”, só podia ser porque havia de haver na sociedade em que vivíamos um espaço em que não tínhamos liberdade para cantar o que desejávamos. Onde cantar o que gostaríamos de cantar seria um projeto de rompimento com algum tipo de poder. E o maior adversário da cultura, em todos os regimes que o homem conheceu em sua História, sempre foi o poder. Uma cultura a serviço do poder, será sempre um compromisso da imaginação com as garras da política, um acordo criminoso entre a força da criação e o fortalecimento de quem manda.

O que as pessoas que andei ouvindo sentiram foi, da parte de nossa geração, que viveu intensamente aqueles anos com o apoio do que faziam seus ídolos, uma enorme saudade de um tempo em que as manifestações culturais tinham um peso e evidente cobertura da sociedade, que pensava pensar o país como nós fazíamos. Ou a partir do que poderíamos oferecer como alternativa de ideal “politizado”.

E, por outro lado, a ignorância das novas gerações sobre um período que elas não viveram, mas do qual ouviram falar intensamente. Tenho a impressão de que, para esses, o que mais se destaca no consumo daquele documentário é a súbita descoberta de uma articulação fértil entre cultura e política. Como se essas duas manifestações humanas, independente da conciliação de políticos ou do oportunismo de artistas, acabassem por “dar uma alma ao Brasil”.

Renato Terra*: O que Nara Leão tem a dizer em 2022?

O Globo, 16/01/2022

Cantora era tão à frente de seu tempo que ainda tem novidades para nos contar

Na sexta-feira retrasada, dia 7 de janeiro, estreou no Globoplay a série “O canto livre de Nara Leão”, que realizei junto com uma equipe dos sonhos do núcleo de documentários do “Conversa com Bial”, o Conversa.doc.

Recebi uma enxurrada de mensagens profundamente emocionadas e aproveito para agradecer. Muita gente descobriu Nara Leão. Muita gente se identificou com Nara. Se apaixonou, chorou, se inspirou.

Nara era tão à frente de seu tempo que ainda tem novidades para nos contar. Algumas questões centrais na sua obra tocam fundo no Brasil de 2022.

A diversidade brasileira é um trunfo, Nara. É a palavra nova que podemos dar ao mundo. Da união de ritmos africanos com europeus, criamos, aqui, o samba. O samba, com o jazz, deu na nossa bossa nova. Ao juntar a bossa nova com os sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti, Nara fundou a MPB. O samba, a bossa nova e a MPB são as realizações mais bem-sucedidas de nossa vocação como país. É o que exportamos com mais orgulho. Quantas palavras novas ainda podemos criar?