sábado, 26 de fevereiro de 2022

Marco Aurélio Nogueira*: A democracia desafiada

O Estado de S. Paulo.

A democracia representativa está com dificuldade de acompanhar as mudanças aceleradas da vida moderna

Há um reconhecimento geral posto na mesa: a democracia representativa está sendo atacada por diferentes vetores, perde qualidade e parece abandonada pelos cidadãos. O espectro da “crise da democracia” se agita por todos os cantos. O Brasil não é exceção.

Será assim mesmo? A democracia representativa conhece de fato uma crise?

Convivemos com um maremoto de imprecisões terminológicas e de entendimentos dissonantes na linguagem da vida cotidiana. É o que acontece, por exemplo, quando se confunde democracia com liberdade ou quando se pensa que democracia significa ausência de regras, limites e obrigações. A democracia é vista como irmã xifópaga do liberalismo, mas não se valorizam com igual desenvoltura seus laços fundamentais com a reforma social, o socialismo e a social-democracia, que foram igualmente estratégicos para os avanços da ideia democrática no último século.

A situação atual está cortada por uma crise de assimilação. A democracia representativa está com dificuldade de acompanhar as mudanças aceleradas da vida moderna, que a desafiam. Precisa se adaptar a elas, mas nem sempre consegue fazer isso de maneira criteriosa, com reformas corajosas, ou seja, de maneira ativa e criativa, sem resignação e fatalismo.

Antes de tudo, a democracia sente os efeitos da mercantilização geral da vida, da prevalência unilateral do mercado como cultura, fator de organização e valor. Tudo se converte num sistema de “trocas” e vantagens competitivas, dissolvendo as ações de tipo cooperativo. Os próprios custos das transações políticas são extrapolados e não ajudam a que se governe melhor.

Bolívar Lamounier*: O triângulo invertido dos sonhos de Lula

O Estado de S. Paulo

Memória da diarquia e da saga das Diretas Já é essencial para abrir uma fresta no nosso sombrio destino a partir de 2023

O governador João Doria ainda não percebeu que, insistindo em se candidatar à Presidência da República, em vez de postular a reeleição, entregará São Paulo de mão beijada ao PT. Lula deve estar rezando o terço várias vezes por dia para que Doria faça exatamente isso, e sorrindo de contentamento ao ver que Doria logo chegará ao ponto de não retorno.

Em política, 20 anos são uma eternidade. Em 2002, todos os ventos sopravam a favor de Lula. Hoje, sopram na direção contrária. Lula provavelmente vencerá com um pé nas costas, mas o panorama que descortinará a partir do Planalto é o de um país em escombros. No Congresso, uma maioria amorfa e subserviente de nada lhe servirá; ao contrário, será uma maioria disposta a tudo para arrancar nacos em seu minguante erário. As massas que antigamente o idolatravam não irão às ruas com o mesmo entusiasmo.

Guardo na memória uma instigante palestra feita dez anos atrás na Fundação Fernando Henrique Cardoso pelo ex-presidente uruguaio Julio María Sanguinetti. Do alto de sua experiência e de seu conhecimento das realidades de nossa triste América Latina, ele observou que o populismo viceja quando a economia vai bem, mas emagrece e sai de cena quando ela vai mal. Todo líder populista precisa de recursos financeiros em abundância, pois é com dinheiro (público, obviamente) que ele compra políticos dispostos a controlar de dentro para fora o Parlamento, e líderes sindicais, estudantes e padres de esquerda, que o façam de fora para dentro.

Oscar Vilhena Vieira* : A grande farsa

Folha de S. Paulo

Apropriação da linguagem de direitos humanos e de liberalismo democrático se torna cada dia mais comum

A apropriação da linguagem dos direitos humanos e do liberalismo democrático por setores reacionários e autoritários, com o objetivo de defender posturas antiliberais e justificar comportamentos contrários aos direitos humanos, tem se tornado cada dia mais comum, não apenas no Brasil.

A imagem de Bolsonaro, com sua gravata adornada de fuzis, bradando a defesa da liberdade contra ministros do TSE –que têm se desdobrado na defesa da integridade do pleito eleitoral–, embora farsesca, é emblemática dessa estratégia de invocar os direitos e valores liberais com a finalidade de subvertê-los.

A defesa das armas, das milícias, da devastação ambiental, da primazia da religião, do discurso de ódio, assim como a insurgência contra a vacina, o distanciamento social ou a máscara, vêm sendo sistematicamente conjugadas a partir de uma distorcida gramática de direitos.

São tempos estranhos, depois de uma vida abjurando e hostilizando os direitos humanos, grupos radicais passaram a invocá-los na defesa de suas pautas autoritárias, discriminatórias e excludentes, colocando em risco não apenas um amplo rol de direitos dos demais membros da comunidade, como as próprias instituições de defesa desses direitos.

Dora Kramer: Cerco ao centro

Revista Veja

Lula e Kassab dão sinais de que atuam juntos para assegurar embate entre PT e Bolsonaro

Luiz Inácio da Silva e Gilberto Kassab não deixam a menor dúvida. São dois políticos graduados e doutorados em astúcia no ramo. Por isso mesmo o primeiro não dá por decidida a parada eleitoral de outubro apesar da folgada dianteira; o segundo não põe fé sincera num embate diferente do indicado desde já nas pesquisas e ambos sinalizam a execução de uma operação casada. Parecem atuar juntos para obstruir o caminho da dita terceira via.

Se o bloqueio será exitoso, veremos. Política, notadamente a brasileira, não se submete a regras perenes. Muda, diz a tradição, na cadência das nuvens. Mas, hoje, o que temos nos quatro principais colégios eleitorais do país é um quadro de cerco às chamadas forças de centro.

No primeiro, São Paulo, firma-se candidatura própria do PT ao governo na pessoa de Fernando Haddad, com a retirada da cena estadual de Geraldo Alckmin, que estava apalavrado com o PSD de Kassab para se filiar e concorrer ao Palácio dos Bandeirantes, mas cogita integrar a chapa de Lula como candidato a vice-­presidente.

No segundo colégio eleitoral, Minas Gerais, o PT articula apoio ao prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, do PSD. No terceiro, Rio de Janeiro, o apoio do PT seria a Marcelo Freixo, do PSB, com morde e assopra que talvez possa mudar de posição o prefeito Eduardo Paes (PSD). No quarto colégio, a Bahia, Lula já admite abrir mão do senador Jaques Wagner na disputa ao governo para apoiar a candidatura do senador Otto Alencar. De qual partido? PSD de Gilberto Kassab.

Murillo de Aragão: O peso político dos evangélicos

Revista Veja

Os fiéis foram determinantes nas últimas eleições presidenciais

Na medida em que o debate eleitoral se intensifica, os principais candidatos buscam se acertar com segmentos importantes de eleitores. Com mais de 30% da população de 210 milhões de brasileiros, os evangélicos são determinantes para a eleição do presidente da República. No pleito de 2014, o voto desse rebanho — que chegou a ser cortejado por Aécio Neves (PSDB) — foi essencial para Dilma Rousseff se reeleger. Em 2018, também foi determinante para a vitória do presidente Jair Bolsonaro. Na pesquisa do Datafolha de 4 de outubro daquele ano, 48% dos evangélicos declaravam voto no então candidato do PSL. O porcentual representava mais que o dobro do segundo colocado, Fernando Haddad (PT), que obteve apenas 18%.

Recentemente, segundo pesquisa do PoderData divulgada dias atrás, Bolsonaro continua liderando entre os evangélicos. Hoje o presidente venceria Lula por 44% a 32%. Ou seja, a distância dele para o candidato do PT, que em 2018 era de 30 pontos porcentuais, caiu para apenas 12 pontos. Atento à perda de terreno em um importante segmento de sua base social, Bolsonaro prepara uma série de encontros com as principais lideranças das igrejas e com parlamentares da poderosa “bancada evangélica”.

João Gabriel de Lima: Os tanques e o sonho europeu

O Estado de S. Paulo

Quando há um conflito, a vida de gente comum é atropelada pela geopolítica

Numa crônica publicada na última edição da revista Monocle, o escritor ucraniano Artem Chekh descreve um passeio pela noite de Kiev. Era dezembro e, depois de comer uma pizza, ele e a mulher, Irina, observam as luzes natalinas na Praça Sofia. Constatam que as danceterias Killer Whale e Closer seguem lotadas em pleno inverno. Espantamse com a fila no Mustafir, e planejam voltar lá algum dia para comer os famosos pasteizinhos chineses do restaurante.

Artem participou das manifestações da Praça Maidan que, em 2014, derrubaram um governo fantoche de Moscou. No ano seguinte, alistou-se para lutar contra os russos. A experiência rendeu seu livro mais famoso, Zero Absoluto. Quando escreveu a crônica da Monocle, Artem temia ser convocado novamente. Pensava também em Irina, que trabalha com filmes. Ainda seria possível fazer cinema numa Ucrânia invadida?

Cristina Serra: O apocalipse Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Ele tem os seus quatro cavaleiros do apocalipse

Declaração do secretário-geral da Presidência, Luís Eduardo Ramos, remeteu-me aos quatro cavaleiros do apocalipse, citados em textos bíblicos. O general de pijama encrespou-se com os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, ex e atual presidente do TSE, que condenaram ataques ao sistema eletrônico de votação.

Ramos disse que Bolsonaro "está sentado nessa cadeira [da Presidência] por missão de Deus" e que tem recebido críticas "muito duras". Por isso, Ramos afirmou sentir-se no direito de levantar dúvidas sobre a "isenção e imparcialidade de futuros processos".

Hélio Schwartsman: Justiça Eleitoral tem sua utilidade

Folha de S. Paulo

É bom ter indivíduos sem vínculos partidários para organizar eleições

Vivo falando mal da Justiça Eleitoral, que completou 90 anos. Ela é, na minha avaliação, excessivamente autoritária e intervencionista. Tais críticas não me impedem de reconhecer que é uma mão na roda poder contar com um corpo de indivíduos sem vínculos partidários para organizar eleições. Pela inversa, seria um problema se incumbíssemos candidatos e legendas de gerenciar os aspectos mais concretos dos pleitos.

O tamanho da encrenca potencial pode ser observado olhando para os EUA, país que tem muito a ensinar em termos de democracia, mas nada em termos de eleições. Os EUA utilizam o voto distrital majoritário para definir os representantes dos estados na Câmara e a composição dos legislativos locais. A cada dez anos, os estados precisam redesenhar os distritos, para acompanhar a evolução demográfica captada no Censo.

Demétrio Magnoli: O Império que não quer cair

Folha de S. Paulo

A ambição de Putin é restaurar a Grande Rússia, começando pelo núcleo com Belarus e Ucrânia

"É tudo culpa de Lênin", pontificou outro Vladimir, Putin, no sinistro discurso que pronunciou na TV russa anunciando o reconhecimento da independência dos enclaves separatistas do Donbass. O líder da Revolução Russa teria fabricado a Ucrânia, privando a Rússia de seu berço cultural. A história putínica é lenda destinada a justificar uma guerra de agressão, mas ilumina um dilema de cem anos.

Nas suas linhas gerais, o mapa atual da Europa foi desenhado pelos tratados que encerraram a Grande Guerra, entre 1918 e 1920. Sob o impacto dos nacionalismos e do programa de Woodrow Wilson, nasceram os Estados-Nação.

As novas entidades, supostamente ancoradas na língua e na tradição, foram esculpidas a partir das ruínas dos impérios que desabavam. Desapareceram os impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano. Contudo, graças ao triunfo dos revolucionários bolcheviques, sobreviveu o Império Russo, apenas convertido na URSS. "Império vermelho", mais que uma expressão retórica, é a descrição precisa da conservação de um fóssil no permafrost do Estado soviético.

Ascânio Seleme: Sustinho bom

O Globo

Ninguém ignora que muitos do PT estão contando com o ovo muito antes do primeiro esforço da galinha, mas uma boa chacoalhada pode colocar as coisas no lugar

Um próximo interlocutor de Lula definiu com uma boa frase o quadro político atual, com pesquisas que mostram um revigoramento da candidatura de Bolsonaro e um exagerado otimismo que muitos líderes petistas evidenciam em entrevistas e conversas privadas. “As novas pesquisas dão um sustinho bom nesta turma que anda com salto muito alto”. Tem alguma razão o político, que pertence a um partido de centro, mas que transita bem em todas as esferas. Susto, ou sustinho, funciona como freio de arrumação. Como uma boa chacoalhada pode colocar as coisas no lugar. Ninguém ignora que muitos do PT estão mesmo contando com o ovo muito antes do primeiro esforço da galinha.

Carlos Góes: Funcionalismo na década perdida

O Globo

Boa parte das carreiras federais ganha mais que o cidadão médio. E as privilegiadas pelo presidente tiveram os maiores aumentos

No último mês, eclodiram reivindicações salariais no funcionalismo federal. Frente a uma proposta ventilada pelo governo de conceder reajuste salarial aos policiais federais e policiais rodoviários federais, outras categorias reagiram.

Houve protestos em Brasília. Os servidores do Banco Central paralisaram suas atividades. Ministros do Supremo Tribunal Federal alertaram que reajustes para categorias particulares poderiam gerar uma série de ações na Justiça.

Mas como o salário dos servidores públicos se compara ao resto dos contribuintes?

Os dados mais abrangentes sobre a renda de profissões distintas vêm da Receita Federal. Todo ano, a Receita processa os dados do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) e publica tabulações contendo a renda média declarada por ocupação dos declarantes.

Carlos Alberto Sardenberg: Contra as democracias

O Globo

Nikolai Patrushev é o chefe do Conselho de Segurança Nacional da Rússia e o principal ideólogo da “turma” de Vladimir Putin, um grupo de ex-membros da KGB que comanda o governo. Sua visão básica: o Ocidente pretende esmagar a Rússia, impondo-lhe “agressivamente os valores neoliberais que contradizem nossa visão de mundo” (citado em The Economist, edição de 19 a 25 de fevereiro).

Qual visão de mundo? Não é a volta do comunismo, até por razões pessoais. É dinheiro. Esses ex-agentes da KGB, como o próprio Putin, acumularam fortunas quando caiu o regime soviético e foram introduzidas reformas capitalistas. Acumularam não pela capacidade como investidores. Foi roubo.

Primeiro, nas privatizações das grandes estatais. Aqueles funcionários tiveram acesso privilegiado a informações e a “moedas de privatização”, como títulos da dívida pública, vendidos a preço de banana e aceitos a preço de ouro na compra das estatais.

Depois, seguiram ganhando concessões “informais” de negócios nas áreas de energia, infraestrutura e bancos, principalmente.

Em resumo, um caso de capitalismo de amigos, levado ao limite.

Pablo Ortellado: Impasses do PL das Fake News

O Globo

O Projeto de Lei 2.630/2020, apelidado de PL das Fake News, vive tantos impasses, que é difícil saber onde vai parar. Ele pode tanto ser aprovado na semana depois do carnaval como ser engavetado. Pode vir a ser um robusto marco regulatório ou também terminar como um conjunto mal-ajambrado de regras ruins. Há pelo menos quatro grandes impasses.

O primeiro é a moderação de conteúdo em mídias sociais. Facebook, Twitter e outras precisam moderar o que é publicado pelos usuários — apagar, reduzir o alcance ou rotular conteúdo que viola os termos de uso dos serviços. Sem moderação, as plataformas seriam inundadas por spam, pornografia e discurso de ódio.

Marcus Pestana*: Quando o carnaval chegar

Em 1972, tivemos o lançamento do musical de Cacá Diegues “Quando o Carnaval Chegar”, estrelado por Nara Leão, Maria Bethânia, Hugo Carvana, Chico, entre outros. Na trilha sonora destaca-se a música tema, onde Chico Buarque diz: “Quem me vê apanhando da vida, duvida que vá revidar. Tou me guardando pra quando o carnaval chegar”, “Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar. Tou me guardando pra quando carnaval chegar”. Parece até uma alegoria da eterna espera brasileira pelo dia em que a alegria do carnaval abraçará em definitivo a maioria da população do país, superando a surra diária e a alegria abafada e adiada.

Este ano a Mangueira e a Portela não irão pra avenida, não haverá abadás e blocos de Axé e o Galo da Madrugada não varrerá as ruas de Recife, graças à pandemia que nos assola há dois anos. Será um momento de descanso e reflexão. É justo, pois, tentar imaginar o que nos reserva 2022. E certamente, não haverá monotonia pelos sinais que temos até aqui.

Eduardo Affonso: Hoje era para ser carnaval

O Globo

Hoje era para ser carnaval. Haveria foliões por todo lado, e as Defensorias Públicas, mídias ninjas e afins já teriam colocado o bloco na rua. Depois de cancelar marchinhas e adereços de índio, de cigana, talvez investissem contra o etarismo estrutural mal disfarçado na expressão velha guarda (da Portela, da Mangueira, do Salgueiro) ou pedissem o banimento da Terça-Feira Gorda (óbvia manifestação de gordofobia). Ao longo da semana, seria a vez de problematizar o desfile das campeãs (deplorável elogio à meritocracia, que desconsidera e naturaliza a desigualdade entre as escolas) e o reinado de Momo na Marquês de Sapucaí, com o Império Serrano, a Imperatriz Leopoldinense (evidência da perpetuação dos valores da elite aristocrática, monárquica, escravagista). Haveria uma infinidade de Fridas nos blocos progressistas da Zona Sul e negas malucas a mancheias (com palhaços, aqualoucos, travestis e melindrosas) nos blocos populares do Centro, do subúrbio, da Zona Norte, da Zona Oeste.

Alvaro Costa e Silva: Carnaval só para ricos

Folha de S. Paulo

A festa de 2022 ficará na lembrança como a mais triste e revoltante da história

O Carnaval deu um passo de caranguejo na tentativa de driblar a pandemia e, ao mesmo tempo, garantir o lucro dos empresários. É como se tivéssemos regredido a 1840, quando foi realizado o primeiro baile carnavalesco no Rio. Quatro anos depois o sucesso já cobrava seu preço. A ceia, os vinhos e os refrescos continuavam a ser servidos aos dançarinos, mas a entrada custava o dobro, passando de 2.000 para 4.000 réis.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Guerra traz incerteza à economia global

O Globo

Enquanto se assiste aos bombardeios e ao desespero de civis na Ucrânia, invadida pela Rússia nesta semana sem ter cometido nenhuma provocação, os analistas tentam avaliar as consequências do conflito na economia global. É tarefa árdua, praticamente impossível, porque depende da resposta a uma pergunta: quais são os planos de Vladimir Putin? Além dele, aparentemente ninguém sabe.

Se Putin decidir mudar o governo ucraniano e, em seguida, mandar suas tropas retroceder às bases, o efeito econômico será menor. Caso decida aumentar o escopo da guerra para redesenhar o mapa geopolítico da Europa, o estrago será imenso, no mínimo uma nova recessão global. É um cenário menos provável, mas longe de impossível. Diante da incerteza, as principais Bolsas de Valores sofreram queda acentuada nesta semana. Foram surpreendidas pela invasão, mas ainda não estão numa situação que denote a proximidade de uma crise financeira.

O certo é que a economia mundial cresceria mais neste ano sem a guerra na Ucrânia. Por não saber o que esperar, consumidores e empresários, principalmente nas regiões mais próximas, perdem esperança no futuro e tendem a adiar planos de consumo e investimento. Quanto mais tempo a guerra levar para acabar, maior será a corrosão da confiança.

A Europa depende do gás russo para gerar energia, sobretudo a Alemanha e a Itália. O inverno europeu, agora próximo do fim, foi ameno. O estoque de gás na região está em nível superior ao previsto pelos analistas. Por isso a questão do abastecimento perdeu urgência, pelo menos no curto prazo. Mas não se tornou irrelevante. Um conflito prolongado a tornaria prioritária. Por ora, o mais imediato é o temor de descontrole maior da inflação já em alta, como resultado da escassez dos produtos exportados pela Rússia — como gás, petróleo e grãos.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade: Um homem e o seu Carnaval

Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensão.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
O pandeiro bate
É dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.
Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente