segunda-feira, 4 de abril de 2022

Fernando Gabeira: Putin está nos matando

O Globo

Em 2018, fui à Rússia com a equipe da editoria de Esportes do GLOBO. Adoro futebol, mas para conversar. Minha tarefa era escrever sobre a atmosfera. Levei uma dezena de livros.

O mais importante deles para mim foi o belo trabalho de Orlando Figes sobre a história da cultura russa. Existe em inglês sob o título “Natasha’s dance”. Uma boa parte dos livros era sobre política, sobretudo oposição a Putin. Um deles me levou à releitura, nestes tempos de invasão da Ucrânia. Chama-se “A invenção da Rússia — A ascensão de Putin e a época das fake news”. Seu autor, Arkady Ostrovsky, ganhou o Prêmio Orwell pelo trabalho.

Interessante como quase tudo estava lá. A Crimeia já havia sido anexada, e Putin não estava disposto a parar por aí.

Ostrovsky o apresenta como um produto da mídia russa, inventado pela KGB, que o transformou numa espécie de James Bond do lado de lá, depois de sua passagem como espião na Alemanha.

Espiões russos eram muito queridos no país, sobretudo depois de uma série chamada “Dezessete momentos de primavera”. O herói, Maxim Isaev, infiltrou-se no alto-comando nazista com o nome de Max Otto Von Stierlitz. Sua imagem é cultuada como a de um grande herói.

Putin encarnou o personagem, posando sem camisa, lutando judô, e mergulhava em busca de tesouros. Na época, era o homem certo para salvar a Rússia dos radicais islâmicos da Chechênia.

Demétrio Magnoli: Na Ucrânia, o tempo da guerra

O Globo

Dias atrás, quando emergiu um esboço de acordo entre os negociadores russos e ucranianos, os mercados concluíram que a guerra logo terminaria. Na sequência, veio o proverbial banho de água fria: o Kremlin renovou seus ultimatos inaceitáveis, e as forças russas prosseguiram os bombardeios em Kiev, enquanto reagrupavam tropas para uma nova ofensiva no leste.

Guerras terminam nos cenários de triunfo decisivo de um dos lados ou de um impasse custoso o suficiente para produzir concessões substanciais dos contendores. Na Ucrânia, fracassou o plano russo de rápida conquista e derrubada do governo de Zelensky. A eficiente resistência militar ucraniana, sustentada pelo fluxo de material bélico ocidental, impôs reveses surpreendentes aos invasores. Contudo o desastre inicial não provocou o indispensável recuo diplomático de Putin. Moscou desistiu de instalar um regime fantoche na Ucrânia, mas insiste na partição territorial do vizinho.

Putin repete ultimatos, pois sabe que um acordo minimalista equivale a uma derrota — e conhece o destino dos líderes russos batidos em guerras. Nicolau II, o último czar, caiu após as humilhações na Guerra Russo-Japonesa e na Primeira Guerra Mundial. Mikhail Gorbachev renunciou, e a URSS implodiu, sob o golpe da retirada do Afeganistão em 1989. Só a perspectiva de uma catástrofe militar iminente seria capaz de alterar os cálculos do chefe do Kremlin, conduzindo-o a uma negociação séria.

Marcello Serpa: Um neto global num mundo nem tanto


O Globo

Em dezembro, quando me tornei avô, escrevi aqui sobre a curiosidade de um avô otimista tentando enxergar o futuro em que meu primeiro neto viveria. No início de março, meu segundo neto nasceu, e comecei a me profissionalizar nesse negócio de ser avô.

A curiosidade continua a mesma, mas confesso que o otimismo está fraquejando: enquanto meu neto nascia em Londres, a Rússia invadia a Ucrânia. Depois da maior pandemia em mais de um século matar milhões e transformar a vida de bilhões, assistimos ao vivo em nossos celulares à barbárie se espalhar por uma Europa beirando a Terceira Guerra Mundial. Se a pandemia foi um golpe mortal na ideia de um mundo de fronteiras abertas, então a guerra na Ucrânia é o prego que faltava para fechar o caixão da globalização.

Quando o mundo a nossa volta parece sombrio, é bom lembrar que todo nascimento é sinônimo de esperança; e, quando uma criança nasce, um mundo de possibilidades se abre. Mesmo sentindo o mundo encolher em si mesmo, se fechar para o diferente e para a diversidade de cor, gênero, pensamento e crença, ao olhar meu neto, consigo enxergar nele um dos frutos maravilhosos do mundo globalizado: nasceu em Londres, filho de mãe brasileira com pai chileno, ambos com nacionalidade alemã. Imagino ele como um daqueles agentes secretos abrindo a gaveta e escolhendo passaporte como quem escolhe uma gravata ou, como orgulho de avô não tem limites, trabalhando na ONU impedindo que as costuras do mundo se rasguem. Com ele no colo, fico viajando, tentando adivinhar como esse bebê multinacional viverá, torcerá, amará, quais seus ídolos, paixões e amores.

Marcus André Melo*: Ditadores marqueteiros

Folha de S. Paulo

A autocracia informacional de Putin na encruzilhada

Daniel Treisman caracterizou a Rússia como uma Autocracia Informacional em The new autocracy: information, and policy in Putin’s Russia (2018). O controle da informação e a manipulação da opinião pública através de fake news cumprem naquele país o papel da repressão brutal em autocracias tradicionais. Na Rússia, é "melhor mentir que matar", afirma, em seu novo livro Spin Dictators, "ditadores marqueteiros", em tradução livre, coautorado com Sergei Guriev.

Para Treisman, a invasão da Ucrânia é parte integral da forte reação ao colapso do processo vertiginoso de modernização a que o país assistiu, entre 1999 e 2010, e que coincidiu com o boom de commodities.

Entre 1999 e 2011, o PIB per capita quase dobrou: foi de U$13 mil para U$24 mil. A taxa de crescimento anual do valor real de salários e aposentadorias cresceu a extraordinários 11%. Tudo isso após dois governos de Putin, que se torna muito popular.

Celso Rocha de Barros: Quem sobrará de pé na terceira via?

Folha de S. Paulo

No fim, a quinta (31) entregou menos novidades do que pareceu que entregaria

Na quinta-feira (31), o processo de consolidação das candidaturas da terceira via avançou. Em um dado momento do dia, pareceu que avançaria mais.

Sergio Moro desistiu de sua candidatura "por enquanto". Escrevi sobre a possibilidade de Moro desistir no dia 12 de fevereiro, e continuo achando a mesma coisa: Moro é prejudicado pela adesão maciça de seus aliados potenciais ao governo Bolsonaro, o mesmo que desmontou a Lava Jato.

Como outros candidatos da terceira via, Moro é um forte candidato para a eleição passada. Depois do desastre de Bolsonaro, a "velha política" deve voltar a ser importante esse ano. A corrupção deve ser substituída pela economia como pauta principal da eleição. Nada disso joga a favor de Moro.

Moro tinha cerca de 10% das intenções de voto. Uma parte desses votos deve ir para Bolsonaro, mas imagino que a maioria vá para o candidato que Moro apoiar. Essas transferências podem mudar o placar do primeiro turno, mas é difícil que alterem as posições no pódio.

Ana Cristina Rosa: 150 anos de resistência

Folha de S. Paulo

Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, do RS, é o clube negro mais antigo do Brasil

No ano do bicentenário da Independência do Brasil, o clube negro mais antigo do país —a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora— completa 150 anos. Fundado por um grupo de alforriados, além da longevidade há muito o que comemorar. Chama a atenção sobretudo o fato de a iniciativa ser originária do Rio Grande do Sul, onde a questão racial e a participação do negro na formação do povo gaúcho são, no mínimo, negligenciadas.

Pode-se dizer que o estado se orgulha das raízes e das tradições europeias na mesma proporção em que oculta a participação africana em sua composição. Há na historiografia um discurso de negação da presença negra no povoamento rio-grandense.

E, quando os negros aparecem, a condição de escravizados é atenuada pelo mito da democracia gaúcha, como observou o ex-presidente Fernando Henrique em estudo da década de 1960 sobre "Capitalismo e escravidão no Brasil meridional".

Antonio Lavareda, Vinícius Silva Alves*: Esquerda e centro precisam de votos da direita para vencer Bolsonaro

Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Estudo sobre influência dos pleitos municipais na eleição federal aponta vantagem ideológica da direita neste ano

 [RESUMO]Análise histórico-comparativa mostra que eleições de prefeitos e vereadores captam tendências ideológicas que se verificam nas disputas estaduais e nacionais dois anos depois. Resultados de 2020 apontam a necessidade de candidatos da esquerda e do centro atraírem o voto da direita para que tenham chance contra Bolsonaro.

Embora as eleições municipais despertem grande atenção da mídia e mobilizem regularmente fatias expressivas do eleitorado, a literatura da ciência política frequentemente considera esses pleitos como de segunda ordem, ofuscados, subordinados ou mesmo desconectados das demais competições.

Contribuiriam para essa suposta desarticulação as características de nosso sistema político, fragmentado em inúmeras legendas irregularmente distribuídas no extenso território nacional, além de baixas taxas de identificação partidária e um calendário eleitoral que separa temporalmente as disputas por cargos eletivos locais daquelas estaduais e nacionais.

Investigando a conexão entre as três esferas, propomos um novo enquadramento analítico para o tema no primeiro capítulo do livro "Eleições Municipais na Pandemia", organizado por Antonio Lavareda e Helcimara Telles, a ser publicado neste semestre pela Editora FGV. Por meio dele, é possível observar padrões de articulação entre as competições que ocorrem nos diferentes níveis da federação, uma vez agregados os partidos em campos ideológicos (esquerda, centro e direita), conforme a classificação predominante entre os especialistas.

Revisitando o percurso sociopolítico desde a transição democrática em 1985 até o pleito mais recente, identificamos que as disputas pelos cargos de vereador e prefeito têm funcionado como "barômetros ideológicos" das eleições gerais posteriores, sinalizando antecipadamente as chances dos diferentes campos.

Entre seus principais resultados, a investigação assinala que o desempenho dos grupos ideológicos na corrida por assentos nas Câmaras Municipais viabiliza a projeção de resultados nas disputas proporcionais seguintes (Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados) e serve também como parâmetro para as estratégias de coordenação dos principais atores nas competições majoritárias subsequentes.

Sergio Lamucci: Os efeitos da alta das commodities no Brasil

Valor Econômico

Disparada dos preços dos produtos primários afeta a economia brasileira em várias dimensões, e com impactos conflitantes

A disparada dos preços das commodities afeta a economia brasileira em várias dimensões, e com efeitos conflitantes. O impacto mais óbvio é piorar as projeções de inflação, o que exige juros mais altos, ao mesmo tempo em que contribui para a valorização do câmbio, o que atenua parte das pressões sobre os preços. O movimento também dá gás à atividade econômica nos setores que produzem e exportam produtos primários, além de aumentar o saldo comercial, fortalecendo ainda mais as contas externas.

No curto prazo, as commodities mais caras engordam ainda a arrecadação de impostos e, ao elevar a inflação, aumentam o valor do PIB em termos nominais, combinação que reduz o déficit e a dívida pública como proporção do PIB. No entanto, a Selic maior, necessária para enfrentar a alta dos preços, leva ao crescimento dos gastos com juros do setor público, o que é negativo para a dinâmica do endividamento público. No primeiro trimestre deste ano, o índice de commodities CRB subiu 27%, uma das principais consequências econômicas da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Bruno Carazza*: Bolsonaro vence primeira rodada

Valor Econômico

Filiações partidárias indicam presidente na frente nas alianças regionais

 “Conquistar a Europa, a Oceania e mais um continente”. “Invadir 18 territórios e ocupar cada um deles com pelo menos dois agrupamentos”. “Destruir totalmente os exércitos amarelos”.

Esses são alguns dos objetivos a serem alcançados pelos participantes de War, o jogo de tabuleiro que os amigos Gerald, Roberto, Oded e Waldir trouxeram para o Brasil em 1972 e que se tornou o carro-chefe para a criação da fabricante de brinquedos Grow (cujo nome é formado pelas iniciais dos criadores da empresa).

As dinâmicas do jogo que marcou gerações servem para ilustrar as estratégias da disputa eleitoral deste ano.

Carlos Pereira*: Fim da reeleição?

O Estado de S. Paulo

Organizações de controle fortes fazem da reeleição um mecanismo virtuoso

Tem sido cada vez mais comum ouvirmos críticas ao instituto da reeleição. Alguns políticos, inclusive, fazem juras de que, uma vez eleitos, não farão uso desse instrumento. Argumentam que incumbentes tendem a abusar da máquina pública para se reeleger. Alegam que teriam vantagens desproporcionais, o que colocaria em risco a alternância de poder. Responsabilizam a reeleição até pelo mau desempenho legislativo, em vez de reconhecer suas inabilidades na montagem de maiorias.

Mesmo FHC, que promoveu a aprovação da Emenda Constitucional da Reeleição n.º 16 em 1997, fez recentemente um mea-culpa, ao afirmar que tal emenda foi um “erro histórico”. No documentário O presidente improvável, FHC se mostra arrependido: “Eu não teria forçado tanto a barra quanto forcei... Porque isso tem consequências depois... Dá a sensação, mesmo que não seja verdade, que o presidente, mal chegou lá, só pensa no outro mandato”.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

São absurdos os aumentos ao funcionalismo

O Globo

A coincidência de ano eleitoral com o fim do congelamento salarial dos servidores surtiu o efeito indesejado, mas esperado: o governo federal já fala em conceder aumento geral de 5% aos servidores da União. Com o inesperado dinheiro sobrando no caixa de estados e municípios, governadores e prefeitos começaram a usar a caneta para distribuir aumentos ao funcionalismo como se não houvesse amanhã. Criam despesas permanentes com recursos que não serão renovados no futuro, contratando déficits mais à frente.

Levantamento recente do G1 e da GloboNews constatou que os 26 estados e o Distrito Federal já deram aumentos ao funcionalismo que ao todo representam gasto adicional garantido de R$ 32,7 bilhões no Orçamento anual (em alguns casos, faltava apenas a aprovação na Assembleia Legislativa, obedecido o prazo de 180 dias antes das eleições que se esgota amanhã).

A remuneração do funcionalismo foi congelada em 2020 e 2021 como contrapartida dos repasses bilionários do Tesouro para governadores e prefeitos poderem enfrentar a pandemia. O dinheiro federal ajudou estados e municípios a alcançar em 2021 o superávit primário de R$ 98 bilhões, o maior da História.