Por Laura Greenhalgh / Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Especialistas analisam o fenômeno que vem
levando grande parte da população a aderir a uma realidade paralela
“Olha aqui, os policiais não estão fazendo nada
e o Congresso está invadido. Que lindo. São brasileiros que enfrentaram bombas,
nem sei de onde vêm esses tiros... só sei que estou aqui, feliz da vida.
Mônica, João, isso é para vocês.”
A mensagem é de uma mulher de meia-idade,
que foi a Brasília participar dos atos golpistas de 8 de janeiro. Sua voz é
comovida, porém, calma e pausada. Serve de fundo para as cenas de caos na Praça
dos Três Poderes que ela capturava pelo celular. “Está pacífico...”, repete ao
narrar o vídeo da sua epopeia. Talvez tão relevante quanto saber quem é a
mulher e o que a levou a integrar aquela horda de vândalos depredadores seria
entender o sentido profundo desta frase: “Mônica, João, isso é para vocês”.
Quem seriam os herdeiros da sua aventura?
Filhos, netos, amigos chegados, não se sabe. Alistando-se num exército de
demolidores da democracia, no anseio de uma intervenção militar que desse fim a
um governo legitimamente eleito e recém-empossado, a mulher parecia viver o
transe da sua relevância. Tanto que tratou de transferi-la em tempo real, pelo
celular, para destinatários muito especiais. Falava como combatente.
Arriscou-se para chegar à capital federal. Resistiu. Invadiu. Acredita que seu
esforço será garantia de um futuro melhor para Mônica e João.
Enquanto a “patriota” postava o vídeo, o Congresso e o Palácio do Planalto estavam sob o signo da barbárie. Não tardaria a acontecer o mesmo com o Supremo Tribunal Federal. O que se viu naquela tarde foram cenas de violência e selvageria, protagonizadas por invasores que quebravam espaços públicos de dentro para fora, muitos com a destreza de gente treinada em táticas de assalto. O terror que assombrou o Brasil e o mundo destoava por completo do estado de graça da mulher do vídeo. Calcula-se em 4 mil o número total de participantes da tentativa de golpe. Feitas mais de 1.400 audiências de custódia, havia em torno de mil indivíduos com prisão preventiva decretada, no momento da conclusão deste texto.
Muito tem se especulado sobre realidades
paralelas em que brasileiras e brasileiros se confinaram nos últimos tempos,
rejeitando dados objetivos, e mesmo subjetivos, a partir das experiências
existenciais que lhes toca viver. São milhões de pessoas encapsuladas em bolhas
de “gente que pensa como a gente”, nas redes sociais. Ali trocam informações
majoritariamente inverídicas, apavoram-se com falsos alarmes, divertem-se com
tiradas de humor macabro, difamam personalidades do mundo cultural, político,
acadêmico, reforçam preconceitos, professam religiosidades e, sobretudo,
indignam-se todo santo dia. Nesta e nas próximas páginas, é justamente esse
fenômeno psicossocial que será apreciado por especialistas de diferentes áreas.
“Não é exagero afirmar que o Brasil se
tornou laboratório de realidade paralela”, propõe de saída o historiador e
cientista político João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e autor, entre outros títulos, de “Guerra
cultural e retórica do ódio” (Caminhos). “É fácil verificar isso: hoje todos
temos ao menos um parente ou amigo próximo que se enredou na trama
bolsonarista. Foram quatro anos de uma dieta brava de desinformação, a ponto
das pessoas passarem a acreditar só no que lhes era oferecido, descolando-se da
realidade.”
Embora circulem estimativas imprecisas
sobre o número dos apoiadores mais exaltados de Jair Bolsonaro, projetadas a
partir da presença de manifestantes em portas de quartéis, em bloqueios de
estrada e pelo país - diz-se algo em torno de 100 mil -, Castro Rocha acredita
que este segmento pode ser bem maior, considerando-se o universo de 58 milhões
de votos recebidos pelo ex-presidente na campanha de 2022. “Falo daqueles com
os quais não há chance de diálogo. Se divido uma mesa de restaurante com outras
pessoas e uma delas diz que Bolsonaro fez bem ao país, peço uma garrafa de vinho
e duas taças. Vamos conversar. Mas, se esta pessoa afirma que o coronel
Brilhante Ustra, um torturador condenado, foi um herói nacional, daí pago a
conta e vou embora. Farei o mesmo se a pessoa cravar que mulheres devem ganhar
menos do que os homens ou que negros são seres inferiores. São situações em que
conversar é perder tempo.”
Esta simulação de casos tem a ver com a
linha de pesquisa do professor nestes tempos bicudos. Recuperando uma teoria
dos anos 1950, a “dissonância cognitiva”, desenvolvida pelo psicólogo americano
Leon Festinger (1919-1989), Castro Rocha procura entender os mecanismos
associados ao modo como um indivíduo lida com dados da realidade. Festinger
demonstrou que faz parte da condição humana uma certa dissonância entre “o que
eu creio” e “o que eu faço”. Conhecido exemplo é o do médico pneumologista que
fuma. Sabe que faz mal, mas não abre mão dos seus charutos.
Trazendo o fenômeno para o campo social,
Castro Rocha observa a ampliação da dissonância quando, numa espécie de
looping, indivíduos passam a viver em comunidades virtuais ou bolhas que
retroalimentam as suas crenças. “Daí a dissonância torna-se coletiva e
perigosa. É quando as pessoas consomem teorias da conspiração que são
potencializadas na midiosfera extremista, ou seja, num ecossistema de
desinformação operando 24 horas por dia, todos os dias da semana.” Nessa
midiosfera, segundo o professor, cabem grupos de WhatsApp, canais do YouTube,
redes sociais, aplicativos e, elemento externo, a “mídia amiga”, como ideólogos
de extrema direita nomeiam determinados veículos de comunicação comerciais,
visivelmente alinhados.
A maior parte do Brasil, constituída de
pessoas que rejeitam o ser político Jair Bolsonaro e pessoas que nele votaram
sem endossar seu viés autoritário e antidemocrático, presenciaram uma escalada
retórica ao longo do mandato presidencial, especialmente nas infovias. E
funcionou para a ampliação da base de apoio do mandatário. Isso levou o escritor
e psicanalista Christian Dunker, ouvido pelo Valor, a refletir sobre o
enraizamento do bolsonarismo.
“Com toda certeza já se pode falar em um
movimento social dando suporte a um projeto de poder”, garante Dunker, autor de
“Lacan e a democracia” (Boitempo), livro no qual explora a articulação entre
psicanálise e política. O que se viu em Brasília, prossegue, seria apenas uma
amostra desse movimento, incluindo mulheres e homens que sequer tinham claro
para si o que reivindicavam. “Acreditaram que dariam um golpe de Estado
contando com Bolsonaro fora do país, os generais em silêncio e as polícias em
estado de leniência.”
Sempre recorrendo ao campo psicanalítico,
Dunker chama a fúria destruidora do 8 de janeiro de “crença delirante
artificialmente produzida”. Vale explicar: nem todos os participantes da Festa
da Selma, codinome criado nas redes para batizar a invasão golpista, são
psicóticos. O que serve de explicação para aquelas ondas humanas derrubando
barreiras e adentrando os palácios, para daí quebrar sem dó o que lhes desse
vontade, seria uma situação clínica descrita há mais de um século: a folie à deux, loucura a dois, que,
na verdade, pode ser a três, a quatro, a mil. Como elemento de ignição, o
promotor de um estado delirante envolve outro, daí mais outro, e essa adesão
cresce a ponto de gerar uma realidade terceira, que já não pertence a ninguém.
“A
realidade então se subordina a certezas construídas artificialmente, produzindo
crenças que, para continuar a existir, precisam ser praticadas continuamente. É
o que explica o compartilhamento incessante de fake news pelo celular, a
tendência de ouvir sempre os mesmos gurus, a vontade de fazer parte da mesma
bolha, e assim por diante. Em resumo, é a prática cotidiana da crença que dá
consistência social ao delírio”, arremata Dunker.
São meramente personagens tresloucados os
que se cobrem com a bandeira, tatuam bizarrices pelo corpo, rezam em torno de
pneus e ameaçam a vida de ministros da Suprema Corte? Afinal, quem manipula e
quem é manipulado? Mentores, organizadores e financiadores do projeto golpista
de 8 de janeiro têm sido identificados e deverão responder criminalmente. Idem
para os depredadores do patrimônio público. Porém, admitindo-se haver também
uma massa de manobra nessa história, Dunker traz para a conversa um livro
póstumo do colega Contardo Calligaris, editado em 2022, cujo título é “O grupo
e o mal: estudo sobre a perversão social” (Fósforo). Trata-se da tese de
doutorado de Calligaris, defendida na França em 1991, na qual ele buscou verter
para a teoria psicanalítica o conceito de “banalidade do mal”, da filósofa alemã
Hannah Arendt (1906-1975).
Um dos questionamentos do livro é por que
aceitamos conviver com atrocidades. “Eu me convenci de que a verdadeira
perversão é a social. É quando o indivíduo abdica da sua personalidade, como um
sujeito esvaziado, entregando-se à instrumentalidade do grupo, sob o fascínio
de servir ao outro”, explica Dunker. No prefácio do livro de Calligaris, o
psicanalista Jurandir Freire Costa chama tal comportamento de servidão
voluntária, remetendo-a ao contexto da ascensão das ideologias totalitárias
pelo mundo, “pesadelos históricos que julgávamos varridos pelo tempo”. Essa
espécie de prontidão para o que der e vier de gente que não pretende parar de
louvar Bolsonaro e repetir slogans que aprendeu com ele pode caracterizar esse
tipo de servidão.
Já alguns analistas políticos têm apontado
a possibilidade de formação de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Ou seja, mesmo
que o ex-presidente saia de cena, o movimento seguirá adiante, ganhando massa.
Em entrevista recente, Dimas de Souza, professor do Instituto de Ciências
Sociais da PUC-MG, que justamente tem se concentrado em estudar a base
ideológica do bolsonarismo, afirmou que o movimento se mantém ao criar para si
uma mitologia, com um vilão (hoje, o presidente Lula), um salvador (hoje, Bolsonaro)
e teorias da conspiração (entre elas, hoje, o Foro de São Paulo e o complô de
dominação da esquerda).
“Mas
eu ainda penso em bolsonarismo com Bolsonaro. Mesmo que o ex-presidente venha a
sumir da cena política, as pessoas vinculadas ao movimento irão substituí-lo
por outra figura. A identificação com o líder, feita de laços de paixão, como
formulou Freud em ‘Psicologia das massas’, é algo muito forte e poderoso.
Atravessa a realidade levando consigo um desejo gregário, afinal ‘sou instrumento
daquele a quem sigo’. Ou, ‘sou parte disso tudo’”, exemplifica Maria Beatriz
Vannuchi.
Com intenso trabalho clínico a partir de
São Paulo e experiência acumulada em análise institucional, a psicanalista
explica que a realidade paralela deve ser entendida como uma criação psíquica,
portanto permeada pela fantasia, servindo como um meio de fugir do real. “Só
que a negação da realidade existencial, algo que pode se dar bem perto da
psicose, traz consigo muita dor, às vezes no limite do insuportável. Vejo muita
gente desesperada nesses acampamentos e atos golpistas.”
Vannuchi nos convida a olhar o bolsonarismo
lá na origem, como um canal de expressão para indivíduos que não se sentiam
incluídos ou contemplados. A partir de um dado momento, passam a seguir um
discurso extremista, que articula a criminalização da política, o ataque à
democracia e às instituições, a demonização da esquerda, a difamação de
autoridades, o conservadorismo nos costumes - e tudo isso envolto no pacote do
combate à corrupção, pela moralidade pública. “Assim os ressentidos encontram
múltiplas motivações para entrar nessa mitologia.”
Mas como abraçar o mito incorporado por um
presidente que não demonstrou ter empatia diante dos 700 mil mortos pela
covid-19 no Brasil, que jamais foi ao sepultamento de uma vítima ou fez uma
visita de pêsames a um familiar enlutado? Um presidente que inclusive colocou a
sua carteira de vacinação sob sigilo de 100 anos, para não ter de prestar
contas do seu negacionismo? “Bolsonaro não sente pena. Nem culpa. Jamais
sentirá”, acredita Vannuchi. E prossegue: “E por encarnar o ‘macho ferido’ do
patriarcado, seguidores seus tendem a imitá-lo, incluindo as mulheres”. Neste
ponto da conversa, impossível não pensar nas cenas de faroeste urbano da
deputada Carla Zambelli (PL-SP), às vésperas do segundo turno, correndo e
acossando um homem negro em São Paulo, de arma em riste.
A realidade paralela ganha outros contornos
com a ajuda de pesquisadores e teóricos da comunicação, campo onde se revelam
as evidências de que engajamento tem a ver com dinheiro. Muito dinheiro. E a
política já provou ser um instrumento eficaz para engajar - ao gerar polêmica,
alimentar antagonismos, impulsionar compartilhamento e, do outro lado do
balcão, multiplicar os anunciantes, tornando as plataformas digitais cada vez
mais ricas e poderosas. “Como tudo isso tem a ver com faturamento, viveremos
daqui para frente em estado de campanha”, anuncia Rose Marie Santini,
professora da Escola de Comunicações da UFRJ e diretora do NetLab, núcleo de
estudos e pesquisas sobre internet da universidade. Não será exagero prever:
todos sentiremos os efeitos da tensão pré-eleitoral permanente em nossas vidas.
“Estudo internet há 20 anos. Comecei
pesquisando pirataria e hoje me vejo às voltas com o ativismo das redes.
Definitivamente, a política entrou nas plataformas, comandada por algoritmos
que são unidades de inteligência artificial com alto poder de influência sobre
os comportamentos humanos”, afirma Santini. “Evidentemente os conteúdos
polêmicos engajam mais, daí por que o discurso do ódio ganhou tanto terreno.
Engajamento é o que as plataformas querem mostrar ao mercado publicitário para
atrair anúncios e faturar. Por trás dessa lógica, existem modelos de negócios
muito bem estruturados e implantados, e não só no Brasil.”
Não restam dúvidas de que o assalto ao
Capitólio nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, foi articulado por meio
das redes sociais. Investigações em torno da quebradeira promovida por
trumpistas radicais - sem a cobertura dos militares, bem ao contrário -
pavimentam o caminho para a responsabilização direta do ex-presidente Donald
Trump. No entanto, observadores notam que a apuração torna-se mais arrastada
quando o foco se volta para grandes plataformas.
Dois anos separam as explosões de violência
vividas em Washington e Brasília, com semelhanças que vão além da mera
coincidência, a começar pelo questionamento do resultado das eleições como
estopim. “Só que, no caso brasileiro, era algo já anunciado. Há quatro anos
acompanhamos mensagens raivosas contra o STF, com a convocação de invadir e
tocar fogo em tudo”, diz a diretora do NetLab, que chegou a apresentar
relatório para assessores dos integrantes da Corte.
A reação foi a de que aquelas manifestações
de desagrado fariam parte da democracia. Agora, após uma tentativa de golpe de
Estado, com centenas de prisões realizadas, o NetLab chama a atenção para outro
aspecto inquietante: do ponto de vista das redes bolsonaristas, parece não
haver arrependidos. “O que se vê é um discurso unificado e orquestrado, de que
todos são pela democracia, menos a esquerda, e a destruição em Brasília foi
feita por petistas infiltrados que agiram para incriminar os patriotas.”
“Existem duas situações distintas quando
falamos de indivíduos fanatizados: os que cometem crimes e os que não cometem
crimes. Os primeiros devem ser punidos com a força da lei, como já vem
acontecendo nos Estados Unidos. Sobre os segundos, sempre existirão em qualquer
democracia livre. O desafio é impedir que cheguem ao poder e imponham as suas
loucuras ao restante da sociedade”, avalia o cientista político e escritor
português João Pereira Coutinho, autor de livros como “As ideias conservadoras
explicadas a revolucionários e reacionários”.
Coutinho acha que poderá haver uma depuração
natural no bolsonarismo após o vandalismo que se viu em Brasília. Nesse
sentido, uma parte da centro-direita que votou em Bolsonaro, sem muita
convicção, agora terá motivos para abandoná-lo. “Claro, estou sendo otimista,
mas às vezes o otimismo é uma forma de realismo.”
Já para o professor Castro Rocha, o aumento
do terrorismo doméstico é tema para o qual deve-se dar a devida atenção no
Brasil. Por isso ele espera que respondam por seus atos aqueles que atuaram de
forma criminosa, incluindo quem dá plausibilidade ao extremismo. “Ao comparar
os atentados em Washington e Brasília, admitamos que o episódio brasileiro foi
muito mais sério. Na capital americana, os bandidos se concentraram em atacar o
Capitólio, no momento da confirmação do candidato vencedor. Na capital do
Brasil, os bandidos atacaram todos os poderes da República, com um governo já
empossado. Gravíssimo.”
Ao monitorar constantemente as redes,
pesquisadores do NetLab têm detectado a presença de grupos que atuam como
células terroristas - na maneira de se comunicar, no uso dos códigos, nas
formas de mobilização etc. Caberia indagar: por frequentar esse ambiente de
alta radicalização, o vândalo de ontem pode ser o assassino de amanhã? A
resposta é “sim”, para Christian Dunker. “Se a frustração dessas pessoas
crescer e se o delírio em que entraram de alguma forma for ameaçado, respostas
mais violentas podem surgir”, afirma o psicanalista, ressaltando a importância
de se criar canais de mediação para começar a tratar esses conflitos.
Um exemplo de recaída radical se deu em
novembro do ano passado, quando um homem invadiu a casa da presidente da Câmara
dos Representantes dos EUA, a deputada democrata Nancy Pelosi, então segunda
autoridade na linha de sucessão do presidente Joe Biden. O terrorista arrombou
a residência, situada num bairro chique de San Francisco, na Califórnia,
berrando repetidamente “onde está Nancy?”, o mesmo grito raivoso que se ouvia
quando tentaram capturá-la na invasão do Capitólio, em 2021.
Era madrugada quando o homem acordou o
marido da deputada, o investidor americano Paul Pelosi, de 82 anos, que lhe
disse que a mulher estava fora. Num dado momento, Pelosi conseguiu acionar o
911 e a polícia chegou. Mas não antes de o criminoso alvejá-lo com um golpe de
martelo na cabeça. Paul Pelosi seguiu para a UTI, para ser submetido a uma
cirurgia de reparação craniana.
Quanto ao criminoso, David Wayne De Pape,
de 42 anos, sabe-se que é um propagador do QAnon, teoria da conspiração de
extrema direita com muitos adeptos entre os invasores do Capitólio. O QAnon
garante haver um complô de adoradores do Satã, em conluio com pedófilos e
traficantes sexuais, contra Donald Trump, guiado por Hillary Clinton, Barack
Obama, o banqueiro e filantropo George Soros e, não por acaso, a deputada
Pelosi.
Admita-se que nem todos os “patriotas” que
acamparam em quartéis e invadiram as sedes dos Poderes agiram de forma
criminosa, insuflados por influenciadores antidemocráticos e financiadores de
golpes. Então, o que fazer para pouco a pouco ajudar esses brasileiros a saírem
das suas bolhas e realidades paralelas? Este foi um dos tópicos tratados pelo
sociólogo e cientista político Rudá Ricci em entrevista ao Valor. “Para enfrentar o
extremismo, o governo não poderá ficar apenas nas ações institucionais. Terá de
se aproximar do povo e dos movimentos sociais, escutar o que estão dizendo e
daí propor programas de valorização e defesa da democracia. Todo governo tem
uma ação pedagógica, portanto, hora de usá-la.”
Ricci trabalhou com Paulo Freire (1921-1997),
um ícone da pedagogia mundial atacado pela extrema direita, e recentemente
lançou o livro “Fascismo brasileiro: E o Brasil gerou o seu Ovo da Serpente”
(Kotter Editorial). Tem procurado entender as razões do ressentimento de
razoável parcela da população, praticamente a metade do país. Acredita que,
para se chegar a um diagnóstico correto, será preciso olhar para o Brasil
profundo, constituído de 65% dos municípios brasileiros que estão distantes dos
centros urbanos.
“Ao analisar as listas dos detidos em
Brasília, vê-se que muitos saíram de pequenas e médias cidades, no
Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Daí o dono da oficina se apresenta na polícia como
empresário. Idem para a vendedora de doces. A manicure se define como
empreendedora. Ou seja, aquela cultura caipira melancólica, do Jeca Tatu de
Monteiro Lobato, ou a cultura janeleira, do cronista João do Rio, foram
substituídas por uma cultura country acelerada, mercantilista, ostentatória”,
compara Ricci. “Os jovens desse imenso interior parecem cansados de estacionar
o carro para beber cerveja e ouvir sertanejo universitário no fim de semana.
Assim como idosos estão fartos de excursões de terceira idade com direito a
hotel decadente, sopão no jantar e baile da saudade antes de dormir. Digo isso
porque entrevisto essas pessoas”, conta Ricci, diretor e fundador do Instituto
Cultiva, que trabalha com projetos de educação.
Na sua descrição de um Brasil
desinteressante, a palavra-chave é tédio. Um sentimento difuso, habilmente
explorado por agenciadores que oferecem viagens com tudo pago, para promover
ataques terroristas e tentar golpes de Estado. Programa arriscado? Sim. Mas,
animado, também. Muitos chegaram a Brasília sentindo-se em excursão de turismo,
num grande embalo golpista. Foram detidos pela polícia e levados para dentro de
ônibus, de cujas janelas lançavam sinais de vitória, risadas, gritos, e faziam
selfies.
São múltiplos os caminhos de interpretação
da realidade paralela. Maria Beatriz Vannuchi não perde de vista a “sensação de
pertencimento” ao grupo, que transforma desencanto em aventura, sofrimento em
gozo. Chama ainda a atenção para o quadro epidêmico de problemas de saúde
mental no Brasil, algo que precisa ser cuidado com urgência. Christian Dunker
segue atrás dos mecanismos que levam ao refúgio de uma “realidade encantada”,
ainda que temerária. Castro Rocha continuará pesquisando a midioesfera
extremista. Coutinho se volta para a capacidade de as políticas democráticas
disciplinarem a violência. Rose Marie Santini finaliza um relatório sobre quatro
anos de ataques à democracia no Brasil. Quanto a Rudá Ricci, continuará com a
sua escuta social, quem sabe encontrando as vertentes de uma pedagogia dos
ressentidos: “Não é suficiente dizer que o Brasil voltou. Na verdade, o Brasil
mudou”.
Excelente texto! Muito além do fascismo, do golpismo, do militarismo! E obviamente muito além dum terrorismo quase inexistente... O texto apresenta várias interpretações interessantes e razoáveis para o bolsonarismo atual e os golpistas que invadiram os 3 Poderes em 8/1!
ResponderExcluirBolsonaro é meio burro, mas inventou uma candidatura presidencial que deu certo em 2018 e quase deu em 2022. Inventou um governador do maior estado do país que era impensável há 1 ano. Ele tem junto com ele uma equipe grande e razoavelmente organizada, com IMPRESSIONANTE ação e eficiência nas redes sociais. Isto não é só fascismo, neofascismo... Isto não é só valores e elementos do PASSADO sendo reativados ou recuperados!
Há muita tecnologia, novidades e capacidades humanas pouco percebidas sendo reunidas com as velhas MENTIRAS e demagogias da política!
O texto é muito bom,eu só não concordo quando diz que dá pra dialogar com quem diz que Bolsonaro ''fez bem ao País'',pra mim,a realidade paralela começa justamente aí.
ResponderExcluirAlgum bem ele fez: comprou e pagou centenas de milhões de vacinas contra Covid, deixou o auxílio de 600 reais no final do seu governo, reduziu um pouco a taxa de desemprego... Mas os muitos pontos negativos e todos os CRIMES que cometeu são muito mais importantes que isto.
ResponderExcluirAlgumas maluquices são explicáveis, ou ao menos interpretáveis!
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