O Globo
Foi um erro grande aumentar salários de
ministros e deputados no apagar das luzes de 2022
Virou o ano. Não quero alimentar a ilusão
de que tudo recomeça do zero. A história seria impossível. Há muita coisa a ser
lembrada se queremos realmente renovar.
Parte substancial do país começa o ano com
esperança de melhoras. Outra parte está frustrada com o resultado das eleições
e a dissipação de seus delírios. No princípio, eram 72 horas de espera e
pronto; depois vieram os acenos do Tribunal Internacional, a prisão de
Alexandre de Moraes, as conversas com extraterrestres, os hinos cantados diante
de pneus.
Alguma coisa vai acontecer, diziam insistentemente. Alguma coisa sempre acontece, o mundo é um milagre dinâmico. Nem sempre acontece o que se espera; a realidade tem a autonomia de um gato, só vai para onde resolve ir, apesar dos desejos humanos.
O que acontecerá com essa parte do país?
Parte talvez caia no cinismo, mas o gênio não volta mais para a garrafa. O
movimento estará sempre aí, em estado latente.
Espero que o lado vitorioso tenha
consciência disso. A recomposição do mundo político é um bom sinal, diante de
propostas niilistas de acabar com tudo e entregar para as Forças Armadas.
As pessoas bateram continência, marcharam;
às vezes era comovente vê-las mergulhar na infância: marcha, soldado, cabeça de
papel.
O que quero dizer é o seguinte: o estopim
de 2013 continua por aí, a qualquer momento pode explodir de novo. Por isso acho
que foi um erro grande aumentar salários de ministros e deputados no apagar das
luzes de 22.
De tudo resta um pouco. O que restou da
política pode ser domado com habilidade. Mas outras realidades mais pesadas nos
esperam.
As mudanças climáticas estão aí. Entra ano,
sai ano, elas se agravam. Não havia dinheiro para áreas de risco no Orçamento.
Parece que consideram as grandes chuvas apenas um acidente. Não percebem sua
constância. Ano-Novo, temporais novos, infelizmente. É uma felicidade a ideia
de que o governo vai proteger a Amazônia, conter a destruição de nosso
principal bioma. Já é uma grande decisão, mas as mudanças climáticas pedem
muito mais.
Teremos uma nova política industrial? Como
transitar para a economia verde? Como se preparar para competir num mundo onde
o baixo carbono é um fator decisivo? O que fará a nova ministra do turismo? O
que fazer para explorar de forma sustentável nossas belezas, como dotar cada
região de uma economia criativa? Vamos trabalhar a infraestrutura? Por que não
focar nas ferrovias, no transporte fluvial?
Mesmo a saúde precisa de um enfoque
ambiental. É preciso prevenir, ninguém aguenta os gastos e perdas, quando se
concentra apenas em curar.
Em síntese, o ano é novo, mas os problemas
não. Se o Brasil não despertar para a realidade climática e não se reinventar,
suas chances de êxito serão reduzidas. Claro que tudo pode continuar como
antes, apenas um pouco melhorado. Virão novos anos, novos Réveillons, o mundo
não vai acabar. Mas essas realidades que atravessam anos, a distância entre
política e sociedade, o agravamento do aquecimento global, elas tendem a cobrar
muito caro.
Ao mencioná-las, não quero dizer que nada
muda. Pelo contrário, as mudanças que se acumulam na cabeça das pessoas e nas
dobras do clima tendem a produzir furacões mais marcantes que uma noite de
fogos de artifício, um mergulho no mar e uma lista de pequenas promessas
comportamentais.
Como dizia Cazuza, o tempo não para. Já
estamos, de novo, remando em mar aberto. Tudo de bom para a maioria do país,
que espera dias melhores. Suspeito que muitos queiram comer uma picanha, tomar
uma cerveja e encher a casa de eletrodomésticos. Espero apenas que não se
esqueçam de que merecem muito mais: paz,cultura, diversão, arte e harmonia maior
com a natureza.
É isso aí.
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