O Globo
Nem todas são chefes de família
impossibilitadas de assumir posições fora das cidades de origem
No domingo em que a vitória da democracia se consumou, corações e mentes, Brasil afora, se emocionaram com o par de cenas de reconhecimento da existência de indivíduos e grupos sociais habitualmente desapercebidos — no sentido de desassistidos mesmo. Como o antecessor voou para os EUA, Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de oito representantes do povo, entre os quais o cacique Raoni, Francisco, o menino negro campeão de natação, e Aline Sousa. A essa mulher negra, mãe de sete filhos, terceira geração de catadoras de material reciclável, coube pôr a faixa presidencial em quem saiu vencedor das urnas em outubro. Foi a imagem marcante da transição de poder.
Pela via da oralidade, coube ao professor,
jurista e filósofo Silvio
Almeida enfileirar o cordão de brasileiros excluídos da
compaixão e das políticas públicas do governo que chegou ao fim no último dia
de 2022. Trabalhadoras e trabalhadores, mulheres, pretas e pretos, povos
indígenas, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo e não
binárias, pessoas em situação de rua, com deficiência e idosas, anistiados,
vítimas da violência e da fome, da falta de moradia e acesso à saúde,
empregadas domésticas, todos e todas que têm direitos violados foram citados,
um a um, pelo recém-empossado ministro dos Direitos Humanos e Cidadania:
— Vocês existem e são valiosos para nós —
declarou.
A foto do presidente e as palavras do
ministro espalharam-se feito rastilho de pólvora em veículos de imprensa, redes
sociais e discursos dos novos inquilinos da Esplanada dos Ministérios. Foram
muitos a apontar a beleza na diversidade escancarada com Lula no Planalto.
Outros tantos, olhos marejados, perceberam a força das palavras de Silvio
Almeida. Imagens fortes e falas potentes impregnam momentos históricos de
significados. Mas são os atos que transformam.
Não é razoável exaltar cenas e discursos
num dia e, no momento seguinte, deixar a roda da desigualdade girar pela velha
inércia. O presidente da República, ainda que não tenha se comprometido com
paridade de gênero e raça na distribuição de cargos do governo, foi sensível a
cobranças da sociedade e apresentou ao país o mais diverso gabinete já visto.
Das 37 pastas, 11 são comandadas por mulheres; dez ministros se autodeclaram
pretos ou pardos; dois, indígenas (Sonia Guajajara, dos Povos Originários, e
Wellington Dias, do Desenvolvimento Social).
Mais de uma vez, Lula recomendou que o time
formasse equipes diversas em gênero, raça e posicionamento político-ideológico.
Nem sempre foi atendido. Há críticas ao perfil masculino e branco predominante
na equipe de Fernando
Haddad, ministro da Fazenda, e de Aloizio Mercadante, que assumirá a
presidência do BNDES. Anteontem, foi a vez de Simone Tebet mencionar
publicamente a (suposta) dificuldade de encontrar mulheres negras para compor a
equipe do Planejamento.
— Quero não só ter mulheres, mas mulheres
pretas. E a gente sabe, lamentavelmente, que mulheres pretas normalmente são
arrimo de família. Trazer de fora de Brasília é muito difícil — desabafou a
jornalistas.
Terceira mais votada na corrida
presidencial de 2022, com propostas relacionadas à igualdade salarial e a
políticas de inclusão socioeconômica de mulheres, a declaração de Simone Tebet
desceu mal. Primeiro, porque confina profissionais negras ao estereótipo de
mulheres vulneráveis e reféns das atribuições domésticas e familiares. Nem
todas as mulheres negras são chefes de família impossibilitadas de assumir
posições fora das cidades de origem; há, inclusive, as que vivem em Brasília.
A remuneração insuficiente tampouco é
problema sem solução. Inúmeros profissionais do setor privado que assumem
posições na capital federal têm rendimento complementado por posições em
conselhos de administração. São funções que, além de multiplicar salários,
ampliam a rede de relacionamento e, assim, os habilitam a postos ainda mais
altos.
Em atenção a Simone Tebet, o grupo Elas no
Orçamento, que reúne quase três centenas de mulheres aptas a posições de alto
nível no setor público, preparou uma lista de servidoras negras que podem
integrar a equipe do Planejamento. Anielle Franco, ministra da Igualdade
Racial, levou à colega, além do documento, sugestões para incluir pessoas
negras tanto nos cargos quanto nos programas de investimentos públicos. Uma
ideia é elaborar um banco de profissionais diversos em gênero e raça acessível
a ministros e secretários.
Quem se compromete verdadeiramente com
políticas de diversidade deve saber que, para se tornarem realidade, elas
exigem engenharia e boa vontade. O primeiro passo é o compromisso do líder. Na
sequência, o arcabouço de medidas para identificar, atrair, integrar, valorizar
e manter os profissionais admitidos. Não é inclusivo o gestor que, à primeira
dificuldade, abre mão da empreitada e responsabiliza pelo fracasso quem deveria
ser brindado com a oportunidade. Pior que isso só os que ignoram a modernidade
que deveriam representar.
Uma cobrança desmedida.
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