Folha de S. Paulo / Ilustríssima
Depois do ataque
de milhares de bolsonaristas às sedes dos Poderes em Brasília, setores das
Forças Armadas esperavam o recurso à GLO (garantia da lei e da ordem) pelo
governo Lula, o que permitiria a um general estabelecer um regime de tutela
sobre a capital. A repressão dos extremistas por meio de uma inédita
"intervenção civil" rompe com a prática usada à exaustão nos últimos
anos e pode levar à superação do cacoete
secular de tratar militares como responsáveis por sanear os problemas da
República.
Passados os primeiros momentos do grande
susto de domingo (8), quando grupos
bolsonaristas atacaram as icônicas sedes dos três Poderes projetadas por Oscar
Niemeyer, começamos a refletir sobre a destruição do Palácio do Planalto e
do Supremo Tribunal Federal e a vandalização das duas casas do Congresso.
Os primeiros depoimentos dos presos começam
a dar conteúdo àquilo que já sabíamos: (1) Não foi um movimento espontâneo ou
uma explosão repentina de ódio que motivou os milhares de bolsonaristas;
calcula-se que a mobilização reuniu 20 mil pessoas, das quais ao menos 4.000
participaram do ataque às sedes dos Poderes; (2) Houve não só uma mobilização
prévia, que se valeu de meios como WhatsApp e Twitter, como uma ampla rede de
suporte com pelo menos 150 ônibus
que levaram, boa parte com todas as despesas previamente pagas, os extremistas
a Brasília; (3) A PM do Distrito Federal fugiu de suas funções básicas
quando seu contingente foi reduzido; mais que isso, uma parcela importante dos
policiais do DF apoiou, por ação ou inação, a marcha até os palácios, inclusive
escoltando o grupo de extremistas, com
quem, em vários momentos, confraternizaram.
Após instantes de perplexidade inicial, o Ministério da Justiça iniciou, ainda na noite de domingo, um decisivo processo de intervenção na Segurança Pública do DF, ordenando a desocupação dos prédios e a prisão dos invasores-depredadores. À ação do ministério, se somou uma cirúrgica intervenção do STF, por meio de decisão do ministro Alexandre Moraes, que conduz o inquérito contra atividades antidemocráticas no governo Bolsonaro.
Assim, a mão pesada da Justiça, vinda do
Executivo e do Judiciário, se abateu sobre o governador do DF, Ibaneis Rocha
(MDB), e sobre seu (ausente) secretário de Justiça, Anderson Torres, exatamente
um ex-ministro da Justiça de Bolsonaro (que estava na Flórida e, de acordo com um colunista do UOL, visitou
o ex-presidente) cuja gestão foi marcada por medidas negacionistas e
ameaças à democracia.
Até aí, houve uma certa unanimidade,
expressa na aprovação
da intervenção federal no DF pelo Congresso e na confirmação,
pelo plenário do STF, do afastamento do governador. Rapidamente, Ibaneis
Rocha e Anderson Torres foram transformados nos "malvados da
ocasião", a face do golpe e da manipulação perigosa das forças policiais
de Brasília.
No entanto, já eram visíveis algumas
fissuras na unanimidade em torno das medidas contra o golpismo: além do
incômodo do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), com o afastamento do
colega do DF, setores militares ligados ao Comando Militar do Planalto e o
próprio comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda, estranharam que houvesse
intervenção federal, não o
recurso —transformado em lugar-comum nos governos Temer e Bolsonaro— ao
instituto da GLO (garantia da lei e da ordem), conforme o artigo 142 da
Constituição.
Ao preferir o artigo 34 da Carta,
aconselhado fortemente por alguns especialistas e com apoio de seu secretário
Wadih Damous, o ministro da Justiça, Flávio Dino, descartou o recurso à força
militar, amplamente utilizada antes, inclusive pelos governos do PT.
No caso da intervenção no DF e da ordem de
controlar e restabelecer a segurança das instituições da República, Dino se
distinguiu nitidamente da prática anterior, em especial da intervenção
federal no Rio de Janeiro, decretada em fevereiro de 2018, ao que se seguiu
o misterioso
assassinato da vereadora Marielle Franco em 14 de março, em plena
intervenção comandada pelo general Braga Netto, futuro braço direito de
Bolsonaro.
Na verdade, os setores militares esperavam
o recurso à GLO e, com isso, a indicação de um general para estabelecer um
verdadeiro regime de tutela sobre a capital federal. A nomeação de Ricardo Cappelli
como interventor frustrou as expectativas dos militares.
Capelli, jornalista com grande experiência
política, foi secretário nacional de Esportes do primeiro governo Lula,
secretário de Comunicação de Dino no governo do Maranhão e, apenas uma semana
antes, havia sido nomeado secretário-executivo da própria pasta da Justiça.
Assim, o ministro enfeixava em suas mãos, firmemente, a segurança da capital,
incluindo o controle da PM local.
Tal estremecimento entre entes do governo
se aprofundou quando vários vídeos circularam na internet mostrando que a
invasão do Palácio do Planalto havia tido uma dinâmica diversa da invasão do
STF e do Congresso Nacional. Nestes dois prédios, as guardas locais esboçaram
resistência, agentes foram agredidos e, em minoria, tiveram que se retirar. Em
alguns casos, no STF e no Congresso, a resistência das guardas locais salvou
alguns espaços da completa destruição.
No caso do Planalto, não houve qualquer
resistência. Os corpos de segurança que deveriam proteger o prédio arrojado de
Niemeyer desertaram das suas funções.
Não só os
homens ao dispor do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) não interferiram
para impedir a invasão como o ente de inteligência e de previsão de
riscos da Presidência não foi capaz, nos dias anteriores, de diagnosticar a
ameaça que se avolumava. Ocorre que a invasão, tratada no WhatsApp dos
extremistas como um "convite para a festa da Selma", era um segredo de
papel.
Um órgão de inteligência do governo não
conseguiu identificar os riscos que se aproximavam da praça dos Três Poderes,
embora o movimento nas redes sociais e nas estradas fosse público havia dois
dias. Mais ainda, não
foram tomadas as medidas daí decorrentes de prevenção. Tal como o caso da
PM do DF, os homens colocados para defender o palácio presidencial eram poucos
e desavisados, e muitos foram dispensados pelo próprio ministro-chefe do GSI,
general Gonçalves Dias, na véspera do ataque.
Essa não era, entretanto, a situação do
Batalhão da Guarda Presidencial, lotado no anexo do próprio palácio, com tropas
na garagem do edifício, cuja função precípua é a defesa da sede do Executivo. O
batalhão é composto de cinco companhias de infantaria de guardas,
bem-treinadas, entre as quais a quarta e quinta são especializadas em garantia
da lei e da ordem, uma companhia do cerimonial e uma banda de música, com cerca
de mil homens.
Ou seja, o Batalhão da Guarda Presidencial,
conhecido como Batalhão Duque de Caxias, possui treinamento de choque,
equivalente ao da Polícia do Exército, e já participou, inclusive recentemente,
de ações contra manifestações de rua em Brasília.
Contudo, em 8 de janeiro, o
Batalhão Duque de Caxias não compareceu à festa da Selma.
O batalhão não só se ausentou como o coronel comandante entrou em choque
aberto, filmado e disponível na internet, com os primeiros comandos de PMs que
chegaram ao Planalto para reprimir os extremistas. Mais: o comandante do
batalhão deu fuga aos depredadores presos pela PM, gerando uma forte altercação
no local entre os dois corpos militares.
Ao longo do horroroso domingo, com os
invasores já dentro do Palácio do Planalto, nem o GSI nem o Batalhão Duque de
Caxias solicitaram a implementação do Plano Escudo de defesa da capital
federal. Somente após a destruição em curso e já com ordens de repressão do
Ministério da Justiça, à tarde, o Plano Escudo foi ativado.
Nos dias imediatos aos atos extremistas em
Brasília, a ação do ministro da Justiça bateu de frente com a política proposta
pelo novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, para enfrentar os
extremistas. Múcio declarou, seis dias antes do ataque, que não retiraria os
bolsonaristas dos acampamentos, "uma
manifestação da democracia", onde disse ter amigos e familiares.
Em uma forte disputa com Flávio Dino,
favorável a uma resolução firme das ocupações bolsonaristas, o ministro da
Defesa defendia uma abordagem gradualista, garantindo que o movimento de
sedição bolsonarista iria se extinguir sozinho com o tempo.
Mesmo depois de os bolsonaristas terem
provocado uma
noite de fogo e destruição em Brasília em 12 de dezembro, dia da diplomação de
Lula pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ao que se seguiu a
descoberta de terroristas
dispostos a explodir um caminhão de combustível no aeroporto da capital,
Múcio, com apoio dos militares, continuou defendendo sua abordagem gradualista,
que entrou em choque aberto com a disposição do Ministério da Justiça e do STF
em aprofundar as conexões dos extremistas com outras autoridades da República.
A estranha festa dessa Selma de mil rostos
foi, de imediato, compreendida como uma oportunidade única para o poder civil
quebrar a secular
tutela militar sobre a República. Desde os anos 1920, o estamento militar
brasileiro cultiva uma ideologia de desprezo pelos políticos e pelos civis em
geral, considerados incapazes e corruptos.
Por sua interpretação da história da
Brasil, desde as batalhas de Guararapes contra os holandeses, em 1648 e 1649,
quando o "Exército" (qual Exército?) salvou o país da invasão
estrangeira até a Proclamação da República, em 1889, os militares adquiriram um
direito de intervir na República e restabelecer o que seria, para eles, a ordem
na casa da Selma.
Acreditam, ainda, que o suprimido Poder
Moderador do imperador decaído em 1889 migrou para as mãos dos próprios
militares, que, assim, teriam
o direito e o dever de sanar os males da República.
Contrariamente, as medidas de controle dos
últimos acontecimentos, com o uso de policiais militares de estados onde a
cadeia de comando não estava quebrada pelo bolsonarismo —como Bahia, Pará,
Maranhão e Ceará— e uma inédita "intervenção civil", sem GLO e sem
generais como condestáveis da ordem, sob controle do Ministério da Justiça,
marca a nova política do governo Lula e, talvez, a superação do cacoete
histórico de uma tutela militar sobre a República.
*Professor titular de história moderna e
contemporânea da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e professor
emérito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Eceme (Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército). Autor de "A República Sitiada",
com Karl Schurster (no prelo), e organizador de “Dicionário de História Militar
do Brasil”, entre outros livros
Se não é a verdade, é bem próximo da verdade
ResponderExcluirExcelente e muito informativo texto! Parabéns ao autor e ao blog que o divulgou! A coluna de ontem do professor Cristovam ("Poder desestabilizador" - disponível neste blog) também tratou um pouco da questão final discutida aqui.
ResponderExcluirEsclarecedor!
ResponderExcluirExcelente texto!
ResponderExcluirE aumenta a vergonha por que pass o EB.
E Q VERGONHA!
"Contudo, em 8 de janeiro, o Batalhão Duque de Caxias não compareceu à festa da Selma. O batalhão não só se ausentou como o coronel comandante entrou em choque aberto, filmado e disponível na internet, com os primeiros comandos de PMs que chegaram ao Planalto para reprimir os extremistas."
ResponderExcluirCaxias está envergonhado. Estamos todos, diante de tamanha pusilanimidade. E fica pior, vejam:
"Mais: o comandante do batalhão deu fuga aos depredadores presos pela PM, gerando uma forte altercação no local entre os dois corpos militares."
O traíra DEU FUGA!
PASMEM, deu fuga!
Curioso como em tudo por tudo o boçal ( e os patriotários) imitaram Trump. Quando convocava seus seguidores, Trump dizia: It's wild!
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