Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Agitação direitista transformou o Brasil
num perigoso manicômio, intencionalmente para favorecer a sobrevivência e
consolidação da tirania derrubada pelo voto
As ocorrências extralegais e paralelas no
próprio dia da posse do novo presidente da República e a baderna insurrecional
da invasão de Brasília e dos edifícios dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro,
em seus desdobramentos e consequências, fazem revelações sociológica e
politicamente decisivas para conhecer os inimigos da democracia e do país.
Revelam não só o conjunto de uma trama golpista, mas principalmente a estrutura
social do movimento e a diferença entre agitadores, protagonistas, promotores e
protetores, vários deles secretos. Não se trata de acaso, mas de poder paralelo
e organizado.
A identificação dos presos em Brasília, no dia 8, faz revelações da maior importância para definir e compreender o perfil social dos envolvidos. É gente de baixa classe média, não só pelos recursos minguados da maioria visível, mas também pela ignorância sobejamente demonstrada no ataque aos palácios como se fosse ataque ao novo governo. Governo não é um prédio nem uma parede, assim como democracia não é baderna.
A diferença e o poder da ignorância ficam
claros na mutilação e na destruição de obras de arte, como a bela e
significativa tela de Di Cavalcanti, perfurada em vários pontos. Foram
interpretadas como trastes de luxo, extensões de pisos e paredes, tocadas,
examinadas e jogadas no chão. E tratadas como lixo. Os autores não viam nelas
utilidade, categoria central da mentalidade dos toscos.
Quando se fala em exclusão social no
Brasil, não se fala na ocultação e na negação da função social do estético. Mas
exclusão é privação social da dimensão monumental do humano, o humano e a
humanização possíveis na mediação da obra de arte. Oferecer aos pobres, aos
simples, aos ignorantes a mera alternativa funcional da utilidade das coisas é
privá-los do que torna social a sociedade.
É necessário entender como os invasores e
os depredadores interpretaram o que é um palácio e nele móveis e adornos com
eles conexos na significação e no estilo, os recintos do poder como monumentos
e como obras de arte que lhes dão sentido enquanto expressões da civilização.
Uma qualidade social e histórica que os quartéis não têm, a multidão a se
comportar e não desmentida como serviçal da caserna.
Não se trata de luxo nem de ostentação, mas
do caráter pedagógico do monumental, da representação artística da realidade
como mediação da consciência social, como contraponto crítico da brutalidade da
desigualdade, a da vida reduzida ao prato de comida.
A barbárie documentou a dimensão simbólica
do divórcio entre o poder e o povo. Nesse sentido, um certo fracasso da
política e dos partidos políticos. E uma vitória dos que à margem da lei
manipularam a turba ignara para demolir o Estado e torná-lo vulnerável a um
poder invisível. Para subjugar o poder legítimo em favor dos propósitos
inconfessáveis de minorias antissociais, infiltradas de delinquentes como os
dados mostram.
Mas também um grande fracasso da educação
brasileira. Pelos que subestimam as funções ressocializadoras da escola e do
ensino, os valores do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932. A
literatura e especialmente a arte tratadas como superficialidades e
desnecessidades. Coisas da elite, expressões da ociosidade. Negação dos méritos
utilitários dos produtos do trabalho, o dos condenados a conceber a educação na
perspectiva do suficiente para reproduzir a força de trabalho. A honradez da
produção de utilidades.
O senso comum pobre, expressão de falsa
consciência e de autoengano, negação do cidadão e afirmação do indivíduo
anônimo e irrelevante, facilita cada vez mais a transformação do Brasil numa
sociedade de ajuntamentos e multidões.
A violência do justiçamento nos
linchamentos, de que o Brasil tornou-se campeão mundial, indica o ímpeto de
redefinição do que é justiça, a eliminação do outro como princípio de
organização social. A intolerância e o ódio como fundamento de uma concepção
delinquente de poder, a do golpe.
O mesmo princípio esteve presente nas
manifestações de Brasília e nos acampamentos de porta de quartel. A busca de
abrigo sob as asas das Forças Armadas, que não hesitaram em dá-lo. Na prática o
desapreço pelas instituições, a turba ignorante fazendo o papel sujo de minar a
democracia para fragilizá-la e reduzir o Brasil à subalternidade de quartel. O
poder aparente e ilusório dos “laranjas”.
A multidão assim motivada é o sujeito
social da loucura coletiva, como mostrou Gustavo Le Bon em seu estudo clássico
sobre o tema. A agitação direitista transformou o Brasil num perigoso
manicômio, intencionalmente produzido para favorecer a sobrevivência e
consolidação da tirania derrubada pelo voto democrático de 2022.
*José de Souza Martins é sociólogo.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón
Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de
Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
A elite econômica que vota em Bolsonaro também não tem senso estético elevado.
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