O Estado de S. Paulo.
Trata-se de reivindicar a inserção no
Ocidente democrático, sistema de formas políticas e sociais assentadas em
tolerância, pluralismo e direitos humanos
Consigna dos anos 1970, quando dávamos partida à superação do regime ditatorial, a “democracia como valor universal” é uma dessas frases que voltam poderosamente à cabeça nos momentos mais difíceis, nos quais a roda da História – se é que ela existe – não só emperra, como parece querer girar ao contrário. A frase teve uma origem singularíssima que por certo a torna ainda mais pertinente agora. Para os que porventura não sabem, ela nasce do universo comunista já na sua fase terminal, em que não havia mais dúvida razoável sobre a tragédia do stalinismo e, de algum modo, tentava-se o acerto de contas e testava-se a renovação “eurocomunista” – que, afinal, não veio, deixando toda uma tradição arquivada nos desvãos, muitas vezes sombrios, do século passado.
No entanto, como um legado inescapável, a
universalidade democrática então proclamada escapou da sua origem circunscrita
e há décadas se apresenta imperativamente para as esquerdas não comunistas ou
pós-comunistas, especialmente as que, surgidas em sociedades dotadas de alto
grau de complexidade, logo demonstraram vocação de governo, sem se limitarem ao
protesto radical. É o caso evidente do Brasil e da esquerda petista,
legitimamente vitoriosa na maioria das disputas presidenciais desde 1989,
inclusive na mais recente.
A vitória de 2022, aliás, suscitou
esperanças de reversão de quatro anos de atraso político e assalto ao bom
senso, mas veio também rodeada de nuvens espessas. As promessas de
revitalização democrática, retomando a inspiração inscrita na Carta de 1988,
logo se chocaram com o golpismo, velho e conhecido fantasma da República. Com
certo assombro descobrimos que, entre as muitas complexidades do País, está o
fato de que o passado não passa ou então passa com irritante lentidão. E a
ameaça de tutela é uma dessas sombras que se projetam sobre a vida civil e a
representação política, pretendendo, não se sabe a que título, submeter a
sociedade a um estatuto humilhante de menoridade.
Erros reais ou supostos da força hegemônica
– e nessa altura não se discute mais o papel preponderante do PT nas sucessões
presidenciais e no sistema partidário – se pagam duramente. Vitórias eleitorais
frequentes podem dar indevida sensação de onipotência ou presunção de
superioridade moral. Não raro, reivindica-se para o líder o estatuto de homem providencial,
denotando, no fundo, uma dificuldade para alternar ou substituir figuras e
grupos dirigentes. Sem propor simetria abusiva, mas tentando indicar um
problema real, notemos que assim se abre o espaço para que as forças mais
retrógradas criem demagogicamente os próprios “mitos” com a borra da História,
de modo que a política se empobrece e se rebaixa a roleta russa. Dessa última
vez escapamos por menos de 2% dos votos. Ou por una cabeza, como no tango.
A união dos Poderes republicanos e a ampla
coalizão partidária que se seguiu, quase por imposição dos fatos, à intentona
da extrema direita apontam a via de saída do beco em que nos metemos. Na
verdade, a divisão da sociedade em blocos antagônicos, em que um se inclina em
maior ou menor grau a negar os valores constitucionais, é o caminho certo da
ruína comum. Desta constatação singela – metades irreconciliáveis não
constituem uma comunidade política – devem se nutrir os setores mais lúcidos da
democracia brasileira, agindo com coerência a partir daí.
Desagregar o bloco político-eleitoral
bolsonarista é a tarefa posta para os próximos anos, cabendo a esse respeito
não mais do que algumas poucas indicações. A primeira delas é que não se
tratará de um processo automático, que caminhará pelas próprias pernas sem que
os demais atores ajam com paciência e serenidade. Há mudanças profundas na
nossa sociedade – o envelhecimento da população ou o crescimento exponencial
dos evangélicos, por exemplo – que é preciso quantificar, projetar e
compreender. Outra indicação é que tais mudanças não necessariamente acarretam
o fortalecimento do extremismo, embora seja improvável que a massa dos
evangélicos – para dar um segundo exemplo – passe de armas e bagagens para a
centro-esquerda ou a esquerda. A boa solução virá, portanto, não de um só líder
ou de um só partido, mas de um sistema partidário estruturado em que haja lugar
para forças de direita e centro-direita dispostas ao jogo constitucional.
Trata-se, no fundo, de reivindicar para
nosso país a plena inserção no Ocidente democrático – um conceito que nada tem
de geográfico nem se limita à repetição de ritos e instituições de países ditos
desenvolvidos. Antes, ele corresponde a um sistema articulado e flexível de
formas políticas e sociais assentadas na tolerância, no pluralismo de valores e
nos direitos humanos em todas as suas dimensões. E daí, precisamente, retira
sua aspiração à universalidade ou, numa definição menos eloquente, à condição
de barreira, sempre frágil e necessitada de reparos, contra a fúria destrutiva
que de tempos em tempos acomete as sociedades, como ainda há poucos dias
pudemos ver entre atônitos e horrorizados.
*Tradutor, ensaísta. É um dos organizadores
das obras de Gramsci no Brasil
Perfeito, digno de nota e de guardar para leitura repetida.
ResponderExcluir''Atônitos e Horrorizados'' mesmo.
ResponderExcluirAcho que o companheiro Luiz Sérgio Henriques está com uma visão ideológica de "Ocidente democrático". O Ocidente democrático está doente. É só pensar em Donald Trump, Victor Orbán, e na Itália da moçoila primeira ministra seguidora de Mussolini. E no Brasil, penduricalho do Ocidente democrático, o fascismo bundalelê do boçal. O capitalismo internacional em sua atual fase de desenvolvimento é um cadáver insepulto. E nessa fase a bandeira da democracia não lhe interessa. A burguesia é democrática quando está segura de si, e é fascista quando se sente em risco. Ocorre que a solução nazifascista já foi tentada no século XX e não deu certo porque o cabo queria fritar judeus. De modo que o fascismo do século XXI, chamado de "populismo", tem uma cara meio trumpista e meio bolsonarista. Voltando ao tema de Luiz Sérgio, a bandeira da democracia já foi da burguesia. E já foi da esquerda democrática de Gramsci, Togliatti, Gorbachev. Hoje esta bandeira se ainda não pertence, deve cair nas mãos do próprio povo. E o povo brasileiro já entendeu, graças a Lula, que ele tem direito a comer e estudar e participar das coisas boas da vida. E que essas coisas virão com o avanço da democracia. Quanto mais democrática for a sociedade menos espaço restará para o projeto nazi-latifundiário escravista.
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