A discussão está ultrapassada também por um
segundo motivo. A decisão do Presidente da República de exonerar o general
Arruda do comando do Exército não deixa dúvidas quanto ao seu acerto e oportunidade,
se levado em conta que o antigo comandante - ainda que caibam interpretações
controversas sobre sua conduta em episódios anteriores - cometeu evidente
insubordinação ao recusar-se a exonerar o tenente-coronel Mauro Cid do comando
do 1º Batalhão de
Ações e Comandos (BAC), unidade estratégica de operações especiais que pode atuar em Brasília em situações de
emergência. Se deixasse passar batido esse comportamento recalcitrante, o
presidente comprometeria sua autoridade, com grandes chances de agravamento
posterior da crise de confiança, como ficou patente no gesto imediato do
general de convocar o Alto Comando para “discutir” sua exoneração. O recibo foi
passado.
Uma segunda percepção ficou evidente desde
a reunião de Lula na véspera da exoneração de Arruda, com os então comandantes
das três forças armadas, nas presenças-surpresa de empresários e do economista
Luciano Coutinho, as quais subestimam a inteligência e a noção de dever dos
militares. Diante da convicção difusa, que já se assentava, sobre a implicação,
ativa ou passiva, da cúpula militar nos fatos do dia 8 – convicção possível
pelo tratamento de intenções, indícios, suspeitas, tendências e fatos como
termos de significados equivalentes - saiu desacreditada a estratégia do
ministro da Defesa, José Mucio, baseada na conciliação como via de pacificação
do ambiente entre o poder civil e setores insatisfeitos das corporações
militares. Afinal, como seria possível conciliar com crimes contra o Estado de
direito e a democracia? Ao ministro pode-se conceder, no máximo, que errou
tentando acertar. Foi o que fez o Presidente, reafirmando, apesar do erro,
confiança no auxiliar e reconhecendo a sua amizade.
Valem pouco as juras em contrário, das
partes de ambos. Num balanço do processo crítico das últimas semanas, a
resposta sobre se houve derrota da posição do ministro da Defesa é claramente
um sim. Outros quinhentos são se ele a absorverá, ruminará ou reverterá. Isso
vai depender da sua avaliação política (e da do Presidente) a respeito das
condições que ele terá de seguir trabalhando e contribuindo para o governo, no
novo contexto que se estabeleceu. Bem como das articulações políticas que
queira e possa fazer para alterar sua presente situação de desconforto. Outra
pergunta bem mais complexa é se o fracasso contextual da tese da conciliação
quer dizer que o governo optou pela confrontação com os militares e não pela
pacificação. Contrariando o que poderia parecer óbvio, a resposta, nesse caso,
é não. Um dos sinais dela é a permanência de Mucio no governo, apesar do
desfecho insatisfatório (para a sua posição) da reunião dos comandantes com
Lula na última sexta-feira e dos fatos que a sucederam.
Lula parece crer na possibilidade de
pacificar sem conciliar com o status quo militar que ele encontrou
pervertido por flertes com o bolsonarismo até um passado bem recente. Age em
registro distante do que seria a “capacidade de perdoar”, que a filósofa Hannah
Arendt considera um dos atributos éticos condicionantes de uma ação à altura da
“dignidade da política”. Compreender
(uma situação presente), imaginar (como ela poderia ser outra) e perdoar (o que
do passado pode bloquear a mudança) capacitariam a ação política a prometer,
quarta condição para que ela, a política, exerça a condição humana de
surpreender, promovendo o nascimento de algo novo. Dimensão política - não
religiosa - do perdão, que nada tem a ver com esquecimento, mas justamente com
o seu contrário, a memória - daquilo que deve e do que não deve ser
(politicamente) feito. A memória, jamais o esquecimento, é o que daria grandeza
política ao ato racional de perdoar algo para seguir em frente, mantendo os
laços comuns de uma teia de relações sociais sem cuja integridade não há
república de fato.
Normal que realismos de várias ordens
tenham restrições a esse modo de pensar e “sentir” a política. Não é o caso de
expor aqui a argumentação de Arendt ao fim da qual é possível (não necessário)
concluir que nenhum realismo que sacralize os “fatos” fica em pé se não
considerar a capacidade da política de surpreender; que nenhuma imaginação
sobre o futuro (mesmo o imediato) é legítima, ou segura, a partir apenas de
fatos, muito menos quando versões podem ser confundidas com eles. Há que se
contar com crenças, desejos/valores, necessidades/interesses e vontades em concerto.
Tudo encontra limite realista em fatos e, ao mesmo tempo, cria ação política,
sem confundir fatos e fatalidade. É por esse prisma que vale continuar a
análise e a prospecção possível, após o que já foi consumado.
Os efeitos da derrota do ministro Mucio,
sobre si próprio e sobre a correlação de forças interna ao governo, constituem
problema menor. Foi derrota própria do jogo político, talvez tenha implicações
estritamente políticas sobre o tom geral do discurso e da ação do governo que,
como está claro, não têm mesmo estado em sintonia com o tipo de político
conciliador que o ministro é. Já sequelas institucionais resultantes de se ter
como verdade pública que o Exército foi cúmplice de crimes, só o tempo dirá que
longevidade e que gravidade terão. O que
se pode esperar de melhor é que a opção de pacificar sem conciliar revele-se
racional, exista mesmo na realidade e não só na vontade política do Presidente.
Credor de apoio, do ponto de vista institucional, ele precisa ser também alvo
de escrutínio político.
Confesso algum ceticismo quanto à
confirmação dessas melhores expectativas. Talvez para agrado de quem pensa a
política como continuação da guerra por outros meios, não creio que corramos
riscos de monotonia durante os próximos quatro anos. A “questão militar” entrou
na pauta desde 2018 e vê-se agora que sua demora é e será maior do que os
otimismos supunham. Nada disso obsta que o general Ribeiro Paiva seja uma
solução bem melhor que o seu antecessor. O seu discurso na véspera da nomeação
caiu como uma luva. Importa só para a análise retrospectiva saber se jogou
combinado com a caserna ou com o palácio, mas é excessivo querer levar esse
dado em conta numa hora dessa. Tudo indica que ele foi um achado, num momento
de grande dificuldade. A questão mais relevante, a seguir, será saber se
acertar no perfil do substituto foi, nesse momento, uma boa prioridade, em
comparação ao acerto do passo do poder civil com a instituição militar. Disso
saberemos durante o vaivém do dia a dia.
Em meio às incertezas, convém adotar juízos
prudentes e não essencialistas sobre os militares, especialmente seus chefes.
Eles não são anjos ou demônios. São homens bem armados que costumam atirar
melhor que civis. Daí deverem ser desmontadas as competições de tiro e os militares
convidados a jogar paciência. Ex-ministros civis da área (Nelson Jobim, Aldo
Arantes, Raul Jungmann), comentaristas como, por exemplo, Sergio Fausto, Carlos
Melo e Fernando Gabeira e políticos como Jacques Wagner e os ministros Flavio
Dino e Jose Mucio compareceram em público irradiando energias convergentes.
Cada qual no seu quadrado e com variações de ênfases, forneceram argumentos
para um contraponto à polarização aguda. O presidente até aqui trafega entre
esses argumentos e os scripts da turma do barulho. Parece óbvio que
deseja, sim, uma pacificação, sem que ela passe, no entanto, por uma
conciliação ao molde de uma reconstrução gradual da relação com os militares,
como sugeria seu ministro da Defesa. Certo ou errado (não vem ao caso aqui)
busca a paz como resultado de um freio de arrumação que, aliás, prosseguiu em
seu discurso de hoje na Argentina, quando se referiu aos militares como “essa
gente”. Só não está suficientemente claro o que fará se essa “terceira via”
(pacificação sim; conciliação, não) ficar obstruída. Pode voltar a usar a chave
conciliadora de Mucio, ou adotar a postura de pagar para ver, que tem entre
seus defensores pessoas presentes no ambiente palaciano.
Vencidas as eleições pelo campo
democrático, desmontados os acampamentos, isolados e presos os operadores dos
atos golpistas e iniciadas as investigações sobre arquitetos e financiadores,
eis que se constrói, no interior do campo democrático, uma teoria retrospectiva
que reacende a suspeita que a extrema-direita espalhou como virtude por quatro
anos: que as casernas estão infestadas de golpismo.
Parece haver mais gente nisso além de uma
esquerda negativa e antimilitar, que vive dessa polarização com a direita
negativa e militarista desde os tempos de Jango, do AI5, da transição democrática
e do governo Dilma. Gente que, mesmo sem pertencer a essa linhagem ideológica,
pede a adoção no Brasil do script do filme Argentina,1985.
Mobilizam argumentos jurídicos na contramão de análises políticas e históricas,
desqualificadas essas como conciliadoras com o fascismo. Discurso doutrinário
que, por enquanto, se mostra uma variante de gauchismo, mas que pode,
adiante, inverter os sinais da geografia ideológica, indo do fogo amigo à
artilharia inimiga e pesada, se o governo Lula enveredar “demais" pela
política. Acontece que Lula não está na Casa Rosada nem se viveu no Brasil uma
ditadura, durante os anos de Bolsonaro. Viveu-se o justo temor de que ela se
instalasse, mas a rede extremista não se apossou das instituições do Estado.
Feriu, paralisou, desvirtuou, mas não conseguiu destruí-las nem impediu que em
horas cruciais mostrassem solidez, sempre relativa, claro, mas longe de ser
irrelevante.
Esquerda negativa é outra conversa. Por si
mesma não tem peso ou influência para desviar o governo, de maneira definitiva,
do campo da conciliação. O discurso jurídico doutrinário, de aversão à
'pequena" política é, no entanto, aliado funcional da sua pregação
antimilitar. Essa aliança tácita é coalizão de veto a uma política
conciliadora, apaziguadora, despolarizadora, não importa o nome que se dê à
atitude política que se contrapõe ao voluntarismo no trato com as forças
armadas. Se esses dois grupos vierem mesmo a se juntar não estarão fazendo algo
inédito. Lembremos de como essa esquerda de confronto adotou, nos anos 90, o
discurso jurídico demonizador da política, então protagonizado pelo
inesquecível Luís Francisco, o dito incorruptível procurador ancestral da Lava-Jato.
No caso do ministério da Defesa, a política de conciliação encaminhada por José
Mucio é uma das vacinas que podem imunizar o novo governo contra a tentação de
chocar novos ovos do vírus da antipolítica, hoje escondidos na retórica
esquerdista de fazer justiça implacável não apenas contra os que praticaram
atos contra a democracia, mas também contra simpatizantes, reais ou presumidos, desses atos.
O endereço dessa viagem não é algum futuro.
É embarque no túnel do tempo, não só para proceder um revisionismo
historiográfico, mas para mudar a própria História da transição democrática. Volver
a 1979, a 1984, a 1985, a 1988 e 1989 e, dessa vez, fazer "tudo
certo". Este colunista coloca-se politicamente fora disso. Ou melhor,
contra isso. Em tempo: gostou muito do filme argentino também. Mas nota que a
obra está sendo instrumentalizada para difundir a ideia de que a
inflexibilidade e o voluntarismo são os melhores métodos para lidar com a
questão militar no Brasil. Nesse ponto, para além da apreciação da obra
artística, propõe prestarmos atenção política ao filme “O paciente”, de Sergio
Rezende, que mostra a saga pessoal de Tancredo Neves na sua luta final pela
vida. Sua derrota decerto trouxe sequelas ao país, mas através dela
constatou-se a solidez de uma obra democrática de muitas mãos. A transição não
se perdeu porque não dependia de um artilheiro, mas de um jogo coletivo.
Sem ter sido eleito diretamente, o capital
político de Tancredo Neves, em 1985, era bem maior que o de Lula hoje. A ameaça
de então eram as forças armadas, na contramão da nação. O atual presidente tem
apoio político bem amplo, mas seu capital junto ao eleitorado e à nação é mais
modesto. Assim ficará enquanto o país não for pacificado embaixo. Essa já é
missão bastante complexa e espinhosa, não tem sentido construir também um
inimigo estatal. O presidente precisa desativar bombas de efeito retardado que
os anos de bolsonarismo no governo armaram contra o nosso presente, assim como
fechar torneiras que derramam gasolina num passado que foi pacificado sob o
signo da conciliação. Adotar conciliação
ou freio de arrumação não é questão de princípio, mas de alternativa política
em dado contexto. A segunda opção já lida com a suposição controversa de que a
corporação militar se dobrará ao poder civil em razão de convicções
democráticas, senso de disciplina e alguns cala-bocas de varejo,
justamente o contrário do que o governo e muitos apoiadores seus têm dito
quando fazem um retrospecto sobre sua conduta recente, definida como golpista,
facciosa e com pretensões hegemônicas.
Se resolveu, como parece, adotar, desde
logo, essa gramática alternativa à da conciliação, Lula precisará de perícia
para não deixar o barco adernar para o lado oposto ao da pacificação. Só é
razoável supor que freios de arrumação façam a corporação golpista, facciosa e
hegemonista de até há pouco ser democrática,
com ética de Estado e de mera repartição do governo daqui a pouco se for
evitado atribuir qualquer noção de “essência” aos militares. Se não houver
crença de que a relação com as forças armadas depende menos dessa suposta
essência e mais de orientação clara de uma política de Estado adotada pelo
poder civil para servidores públicos (definição que Mucio queria deixar para
depois para apagar o incêndio antes), não haverá terceira via possível entre
conciliação e confrontação, que é o tal ponto de equilíbrio que o presidente
afirma estar buscando.
*Cientista político e professor da UFBa
Ótimo texto. Pena q o autor trate da questão militar no curto prazo e jogue todo o peso sobre os ombros do Lula e nada exija dos milicos.
ResponderExcluirNo médio e longo prazo, a complacência traz indisciplina, q leva a insegurança - isso é inegável pois a facilidade com q o bolsonarismo dobrou as FA implica, necessariamente, q HÁ afinidades entre os dois. E isso é inadmissível posto q confirma q milicos não são confiáveis e não atuam como manda a CF, como instituição de Estado.
Então, Lula cede, sugere o autor. E no médio e longo prazos, não tratados? Sem punição, todos sabemos, há indisciplina e Lula mantém o CÍRCULO VICIOSO DE MILCOS GOLPISTAS E INDISCIPLINADOS.
Acabe com isso, Lula, e introduza no Brasil um CÍRCULO VIRTUOSO verdadeiramente MILITAR, q nunca tivemos.
Hélio Schwartsman - Lula precisa enquadrar os militares
ResponderExcluirFolha de S. Paulo, hoje no blog
"Na democracia, exércitos precisam sujeitar-se às autoridades eleitas
Quanto mais escarafunchamos as movimentações golpistas do bolsonarismo, mais evidentes ficam as omissões, ambiguidades e insubordinações da cúpula militar. E isso é intolerável."
Enquadrar é a ação necessária. Pra q parem a insubordinação, a ambiguidade, a omissão recorrentes pois isso não é aceitável e envergonha as FA.
As FA são importantes demais pra ficarem nas mãos de uma cúpula até agora tão pusilânime e q age à margem da CF.
D. Janja com raiva é um esplendor.
ResponderExcluirQue artigo longo!
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