Mas...
De qual economia, de qual país, estamos
mesmo tratando?
Analistas “ortodoxos” não se cansam de nos recordar dos tempos “dilmáticos” recentes, da conjugação de baixa forçada dos juros básicos da economia com aumento do gasto público em despesas correntes, previdenciárias (em cascata ao aumento nominal do salário mínimo) e transferências sociais, com estagnação econômica e alta inflação, fenômeno contemporâneo conhecido como “estagflação”. Um papel central da explicação vem do fato de as expectativas dos “agentes” econômicos, especialmente os do mercado financeiro, anteciparem a alta da inflação que em sequencia se autoconfirma.
Faltam dizer que erros clamorosos de
política econômica tem sido reiteradamente cometidos no Brasil. Agora mesmo,
volta essa gritaria de que juros baixos estimularão a recuperação econômica,
como se algum automatismo houvesse entre uma coisa e outra.
Mais importante. Em nome de um “círculo
virtuoso”, em cujo dinamismo acreditaram, entre consumo de bens duráveis e
investimento industrial privado, governos do PT levaram à absurda desoneração
de impostos dos produtos de “linha branca”, televisores de tela plana, etc, que
“decoraram” as moradias dos pobres e reduziram a arrecadação fiscal.
E o investimento público? Ah, este já
tendia a zero antes da chegada do “Teto de Gastos” do Meirelles. Superestimaram
o dinamismo do investimento privado induzido pelas políticas sociais. Subestimaram
grosseiramente a necessidade da sustentação exógena do crescimento, através do
gasto autônomo, público, na formação de capital. Claro que, sob a batuta
de Guedes, o investimento público finalmente “zerou”!
A nossa verdadeira questão é bem keynesiana.
O Estado precisa criar demanda efetiva, mediante investimento público. Não se
trata apenas de estímulos à recuperação cíclica, à volta do “pleno emprego”. O
Estado coordena, induz, arrasta, o investimento privado. Através do
planejamento de médio e longo prazo “coordena” as expectativas dos agentes da
economia real, dos setores realmente produtivos.
Mas Keynes, pra sua época, falava na
“eutanásia do rentista”. Foi de uma época em que a baixa dos juros básicos da
economia canalizaria os investimentos privados dos rentistas para as
oportunidades e riscos da economia real.
Mas vamos à questão. Qual país?
Não cabe aqui retomar as mudanças
estruturais do capitalismo global desde então, que flagrantemente consagraram o
rentismo. Mas o Brasil é seguramente um “bicho estranho”, à luz dos manuais de
macroeconomia. Seria “um país rico, ao mesmo tempo pobre”, como acaba de
reconhecer o André Lara Resende, no “Canal Livre”?
A propósito, percorram a Av das Américas no
Rio de Janeiro. Vejam os carrões importados, na rua e nas agencias
revendedoras. Em seguida, vão ao “Google Mapas”, e observem as dezenas de
favelinhas nos interstícios dos condomínios, invisíveis desde a avenida
principal. Aqui estamos falando de um Brasil que mira o Hemisfério Norte,
aculturado e integrado às economias centrais do capitalismo, e “de costas para
um outro Brasil” que mora ao lado. Ainda no Rio de Janeiro, que conheço melhor,
já se “institucionalizaram” os “camelódromos” nos pontos de
embarque-desembarque do transporte de massas ao longo dos subúrbios.
E nossa amada Brasília, a “Ilha da
Fantasia”, com suas “cidades satélites”?...
O mundo mudou muito, e o Brasil mais ainda.
Já foi chamado "Belíndia" (Bacha) e "Ornitorrinco" (Chico
de Oliveira). E com a revolução tecnológica em curso neste século XXI,
reitera-se e aprofunda-se, sob as forças do mercado, nossa “heterogeneidade
estrutural” (Anibal Pinto).
Há milhões de empreendedores, empresas
pequenas e médias, pessoas físicas e jurídicas, que estão fora do mercado de
crédito! Eu vejo aqui mesmo em meu bairro. A política monetária não alcança
estes agentes. A retomada do crescimento que alcance tais agentes nada tem a
ver com aquelas taxas, a de juros básicos ou da dívida pública!
O mercado de crédito ainda é ultra
concentrado. A incipiente bancarização recente da população pobre, mediante
bancos digitais, facilita transações mas não expande o crédito.
E o empresário de bairro se
autofinancia. Capital de giro? Crédito rotativo? Tudo capital próprio ou
financiamento de fornecedores a juros realistas, pelo interesse mútuo das
partes. E muita informalidade. Compras com nota fiscal? O que é isso? E vendas
a crédito dos grandes magazines populares já embutem juros astronômicos que
compensam a inadimplência, o calote, praticamente certo. É comum o pobre fazer
uso do cartão de crédito daquele parente ou amigo ainda “limpo” no SERASA, por
exemplo. Como entrar na favela, com mandado de recuperação judicial daquela
geladeira que não foi paga? E a concessionária de energia, a Light, por
exemplo, que não dá conta dos “gatos”? Quanto aos Bancos, cobram juros
escorchantes já prevendo negociarem inadimplências.
E quanto aos juros básicos do BC?
Não estou inteiramente convencido quanto ao
instrumento da Selic ser eficaz sobre a inflação, com a economia estagnada. Qual
a sensibilidade da inflação aos movimentos da Selic? Choques de oferta, sob uma
economia estagnada ou em desocupação, criam ondas de inflação, mudanças de
preços relativos, que se atenuariam no tempo. Mas não sou peremptório quanto a
isso. Altas de preços por choques de oferta tenderiam mesmo a se dissipar como
uma onda? André Lara Resende, em seu artigo "Consenso e
Contrassenso" explica como, tanto nos choques quanto no excesso de
demanda, cria-se a percepção de alta generalizada de preços alem de efeitos de
inércia. Para debate, vale a pena reproduzí-lo:
“A inflação é provocada por um excesso de
demanda agregada, ou por um choque negativo de oferta que pressiona alguns
preços-chave e cria a percepção de que há uma alta generalizada dos preços, que
por sua vez cria expectativas de que preços continuarão a subir. Uma vez
consolidadas, as expectativas de inflação podem manter a inflação alta, mesmo
com desemprego e capacidade ociosa. A inflação consolidada tem um grande
componente de inércia. Expectativas de inflação podem ser revertidas através de
anúncio de metas por um banco central que tenha credibilidade, conquistada pelo
seu histórico de sucesso para manter a inflação dentro da metas. Para isso o
banco central utiliza a taxa básica de juros como instrumento para regular a
demanda agregada”. “(...) Para vencer a inércia de expectativas ancoradas,
tanto de alta quanto de baixa inflação, é preciso provocar muito desemprego, ou
muito excesso de demanda(...)”
De qualquer forma, dadas as nossas
condições de heterogeneidade estrutural, inclusive quanto à flagrante
desbancarização e desfinanceirização de um dos “Brasis”, deixemos então os
juros altos satisfazerem o tal “mercado” do outro “Brasil”!
Ainda sobre a falta do crédito, recebi de
um amigo, importante empresário de telecomunicações, o seguinte comentário:
“Alfredo, o quadro de acesso ao
crédito que você descreve é o que encontramos nos pequenos provedores de banda
larga fixa no Brasil. Eles são hoje responsáveis por cerca de 30% das conexões e
levaram a Internet com fibra para municípios com menos de 100 mil hab. Sem ter
acesso a crédito. Fizemos um estudo sobre isto há um ano atrás, para um banco
de desenvolvimento internacional.”
Nosso problema estrutural, a requerer
inadiáveis reformas, vai alcançar em algum futuro o Banco Central em sua
relação com o Tesouro. Mas de imediato, reformas terão que vir do lado fiscal,
e do financiamento fiscal.
Como a crise social já passou do limite,
reformas estruturais envolvendo bancos públicos, empresas públicas, recursos
parafiscais e financiamento do investimento público podem vir aí logo à
frente...
O Keynes que nos interessa agora é o do
investimento público e do investimento privado que vem por arrasto (para os
franceses , “effet d’entraînement”) Desnecessário enfatizar nosso imenso
passivo social, da saúde, da fome, da educação. Da falta de saneamento básico,
de nossas oportunidades competitivas de inserção internacional, de redução do
“custo Brasil”, de um país literalmente “atolado” em transporte rodoviário,
etc, etc...
O investimento público pode monetizar o
Brasil paralelo, desatrelado do “mercado”. Portanto deixemos de lado a
“ditadura” dos juros altos! Viva os juros altos deixados para o “Brasil
Maravilha”, paraíso dos compradores de títulos públicos. Só não chega a ser o
inferno dos emissores de títulos privados porquanto no mesmo “Brasil Maravilha”
estes ainda têm pra quem repassarem seus altíssimos custos financeiros, com
efeitos distributivos óbvios...
Precisamos debater soluções estratégicas, para
contornar as “barreiras” das relações com um poder “encastelado”, o do tal
“mercado”. Não é “bater de frente”, mas “dar a volta”.
E como conciliar democracia, crescimento
econômico e inclusão social?
Em artigo recente, “Planos para o futuro de
forma produtiva” (O estado de São Paulo, 20/11/22) Albert Fishlow tratou da
questão do crescimento no Brasil:
“(...) o Brasil chegou a um ponto em que as
decisões produtivas se tornaram essenciais. Dilma prometeu dobrar a renda per
capita de 2010 até o aniversário de 200 anos da Independência do Brasil, ou
seja, 2022. Uma meta mais modesta, mas notável, seria atingir uma taxa de
crescimento contínua de 3% até 2026(...)”.
“(...) O Brasil precisa de uma taxa de
investimento regular da ordem de pelo menos 24%/25% de seu PIB. Parte dela pode
vir de uma ampliação do investimento estrangeiro, mas também deve haver um
aumento da poupança doméstica para financiar o crescimento. Isso tem sido
altamente variável, caindo para menos de 15% quando o investimento estrangeiro
estava em rápida expansão (...)”
Comento.
1) A Taxa de Investimento. Num artigo
curto, ele não poderia mesmo se estender sobre como alcançá-la; o foco dele é
nosso atraso na formação da capacidade produtiva; no atual contexto do novo
governo Lula, acrescenta: "(...) Com a decisão de realizar uma grande
distribuição de recursos para os mais pobres no início de seu novo governo,
restará pouco para o investimento público necessário para estimular o
crescimento real do capital social”; sucede (digo eu) que o investimento
público é crucial como variável-instrumento reguladora da taxa de crescimento
do PIB; trata-se de decisão autônoma de gasto;
2) A taxa de crescimento. A taxa média de
crescimento de 3% aa (per cápita) que ele admite para o quadriênio, deve
guardar relação com aquela taxa robusta desejável de 25% do investimento sobre
o PIB que, uma vez alcançada, deve propiciar taxas de crescimento do PIB muito
maiores do que as da renda per cápita; por exemplo, André Lara Resende na já
citada entrevista ao “Canal Livre”, admitiu um crescimento de 6% ao ano.
3) Não sei por quanto anda a relação
produto/capital média de nossa economia; mas apesar do atraso na produtividade
sistêmica de nossa economia nas últimas décadas, que exige taxas de
investimento comparativamente mais elevadas, uma taxa de investimento
sustentada de 25%, sem ser "chinesa", seria espetacular;
4) Este grande brasilianista, fala pouco
mas põe o dedo na ferida!
Concluindo, sem esgotar o assunto.
Em economia, estamos escravizados por
preconceitos, "verdades" superadas.
Não por acaso, como se diz agora, é preciso
pensar "fora da caixa".
Num espectro amplo de pensamento econômico,
ideologia e política, temos uma intelectualidade que vem se revelando brilhante
e engajada nesta hora da verdade, na hora da prática! E temos importantes
quadros na política, agora experientes com os erros do passado, especialmente
quanto às alianças estratégicas. E a crise social, rebatendo na política,
empurra-nos à busca premente de soluções. Reiterando: conjugar a longo prazo,
democracia, crescimento e inclusão social.
E quanto à liderança?
Negue-se a Lula muitas virtudes. Mas não a
da inteligência!...
A víbora fascista está “de bote armado”...
*Doutor em Economia, IE-UFRJ, MSc Eng. de Produção, COPPE-UFRJ.
Análise brilhante! Parabéns ao autor e ao blog por divulgar e destacar texto tão importante e bem argumentado! Um dos melhores que já vi por aqui!
ResponderExcluirFico aliviado pela receptividade! Eu vinha me sentindo um " extraterrestre"! Começo a achar que, se extraterrestres,...somos muitos...rsrs
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