sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

César Felício* - A fraternidade e o constrangimento

Valor Econômico

Clima político leva Igreja Católica a se engajar menos

Houve tempo em que dois temas monopolizavam a atenção da imprensa na Quarta-Feira de Cinzas: a apuração do desfile das escolas de samba e o lançamento da Campanha da Fraternidade pela Igreja Católica.

A iniciativa religiosa de uns anos para cá tornou-se um não-assunto, por mais relevante que sejam os temas levantados, como de fato são. Ficaram ao léu portanto as palavras duras do papa Francisco em relação ao mote deste ano da Campanha, “fraternidade e fome”. “A fome é criminosa”, “a alimentação é um direito inalienável” e “o descarte de alimentos constitui um escândalo”, disse o papa, para a indiferença da maioria.

As razões para a decadência da Igreja Católica como influenciadora do debate nacional são várias e estão em permanente discussão. Mas há uma que sobressai, e pode ser observada quando se olha dentro, e não fora das sacristias. Falta engajamento da própria Igreja.

Há indícios de que o clero da Igreja é muito diferente daquele dos anos 70, 80 e 90. Uma pista está nas redes sociais desde o lançamento da campanha. Veiculou-se nos últimos dias um vídeo, do padre Adão Dias, da diocese de Paranavaí (PR), que não deixa por menos. “Não dê coleta para a campanha da fraternidade. Nada, nada, nada”, recomenda. Afirma ainda que a campanha é “petista e esquerdista” e que parte da arrecadação irá para ONGs que defendem o aborto.

A Igreja Católica historicamente fez uma opção preferencial pelos pobres, mas hoje, em linhas gerais, não são os pobres que predominam entre os fiéis, sobretudo nas grandes áreas urbanas, nas periferias das cidades. O fenômeno gera uma fenda entre a linha oficial da Igreja e seu público. Os padres mais conservadores e abertamente alinhados ao ex-presidente Jair Bolsonaro se sentem muito à vontade para extravasar seus pensamentos. Os que fazem o contrário são muitas vezes constrangidos.

O padre e sociólogo José Carlos Pereira, de Cascavel (PR), fez por conta própria um levantamento com 1.858 entrevistas entre os 27,3 mil sacerdotes brasileiros, matéria prima para o livro “Operários da Fé”. Constatou de maneira crítica o desânimo de seus colegas de batina com qualquer política pública, e o combate à fome não deixa de ser uma delas.

Entre os entrevistados, somente 36,2% se envolvem regularmente em atividades pastorais com esta dimensão, enquanto 38,1% o faz de forma apenas pontual e 22,9% jamais trabalham neste sentido. “Podemos inferir que no perfil político dos padres predomina a conduta de isenção parcial ou total em relação à política, o que mostra a faceta de uma Igreja que pouco participa de situações dessa natureza, mesmo quando elas são decisivas para o bem-estar das pessoas”, escreveu o padre.

Ele próprio é um exemplo do que pode acontecer com quem é menos discreto. Pereira foi alvo de um abaixo-assinado da comunidade de fiéis, que pediu sua saída da paróquia em razão de seus posicionamentos políticos. A pressão funcionou e ele foi transferido. Está de mudança este mês e começa nos próximos dias a atuar em uma Igreja em Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo. “Me manifestava apenas nas redes sociais, nunca dentro da Igreja, mas não adiantou”, disse o padre.

Juros

Um interlocutor de grandes grupos do varejo no país afirma que o setor vê com mais preocupação o desdobramento da polêmica entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o do Banco Central, Roberto Campos Neto, do que o efeito em cadeia que o escândalo das Lojas Americanas pode ter nas linhas de crédito.

Acredita-se que o impacto da provável fraude nas contas da empresa é uma crise transitória, uma tempestade que passará. Já os juros altos provocam uma asfixia no setor que tem um caráter estrutural e que ainda não se mostrou em sua inteireza. As consequências na economia real dos 13,75% na taxa Selic ainda estão por vir e o varejo das grandes casas tende a sentir estes efeitos primeiro.

O confronto entre Lula e BC, desencadeado com a manutenção da taxa depois de reunião do Copom no dia 1º de fevereiro, no curto prazo, deu vantagem para o presidente do Banco Central. A revisão da meta da inflação de 3,25% para 2023 não entrou na pauta do Conselho Monetário Nacional. O PT marcou posição contra os “juros abusivos”, mas o Senado deve receber Campos Neto no próximo mês em clima ameno. A cúpula do Legislativo descartou pautar medidas extremas, como a destituição do presidente do Banco Central ou a revisão do marco legal da independência da instituição.

A pressão do setor produtivo sobre o Banco Central, pedida por Lula há algumas semanas, só deve vir mais adiante, quando se tornarem evidentes os efeitos dos juros altos no ritmo da economia. Por ora, o apelo presidencial foi recebido com frieza.

Um novo atrito entre governo e Campos Neto pode vir na próxima semana, com a indicação dos substitutos para as diretorias de Política Monetária e de Fiscalização. Caso prevaleça o clima de guerrilha, turva-se o ambiente para uma revisão da taxa na reunião do Copom de 21 e 22 de março, que já deve refletir o impacto inflacionário e fiscal de uma provável reoneração da gasolina e do etanol, defendida pelo Ministério da Fazenda. Indicar que se pretende bater chapa em um conselho desta natureza seria indicar que, com o atual colegiado, não há conversa.

São Paulo

Completou-se nesta quinta-feira o quarto dia seguido em que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), despachou em São Sebastião (SP), zona de desastre. O gabinete foi transferido para lá na segunda de carnaval, mas o governador já esteve no litoral domingo, acompanhando Lula, horas depois dos deslizamentos das encostas que provocaram dezenas de mortes.

A imersão de Tarcísio no enfrentamento da catástrofe ambiental e humana, do ponto político, o vincula ao eleitorado que lhe coube governar. Até a tragédia, ele era um acidente de percurso: tecnocrata que disputa uma eleição pela primeira vez, candidato por um Estado que não é o seu, de perfil ideológico anódino em uma aliança de extrema-direita, tendo como única proposta a venda da estatal de saneamento. A depender das medidas que vier a tomar agora, Tarcísio pode mudar de patamar.

*César Felício é editor de Política.

 

Um comentário: