domingo, 19 de fevereiro de 2023

Dorrit Harazim – Revezamentos

O Globo

Não é de todo errado olhar para o desfile das escolas de samba como um passar de bastão de uma geração a outra para a melhor compreensão da História nacional nunca contada por inteiro

O que podem ter em comum uma Olimpíada, o jornalismo colaborativo transnacional e o carnaval? Veremos.

Em Olimpíadas modernas, o número de esportes que compõem a espinha dorsal do megaevento tende a ser fixo — não mais de 28. Já é tentacular o bastante, considerando que muitos esportes olímpicos se desdobram em várias “disciplinas” . O atletismo traz embutido um leque de extensões — as “disciplinas” —, designação dada às competições de arremesso, corridas na pista, provas de salto. Os XXXIII Jogos Olímpicos de Paris, marcados para o próximo ano, serão exceção, com direito a um festão de 32 esportes (48 disciplinas) divididos em 329 provas. Uma coisa, porém, não muda: toda Olimpíada é construída em torno dos dois esportes-âncoras de maior audiência e lucro: natação e atletismo. Transcorrem em semanas separadas. As provas de um só começam quando o outro terminou de entregar a última medalha.

Nessas modalidades — e apenas nelas — disputam-se provas de revezamento. Seja na pista ou na água, elas são eletrizantes paras o espectador, pois cada passagem de bastão proporciona uma incerteza única, um tensionamento adicional. Durante um revezamento ocorrem mudanças tão radicais na colocação das equipes em disputa, que o suspense, não raro, dura até o final. Dos atletas que a disputam (sempre quatro por equipe, umbilicalmente dependentes um do outro), a prova exige algo além da esperada habilidade atlética, controle psicológico ou preparo físico — exige confiança, entrega. Ao contrário de modalidades em que o fazer coletivo está na raiz do desempenho, como no vôlei ou no basquete, natação e atletismo são esportes ferozmente individuais. Seus expoentes são lapidados para, sozinhos, triturar os demais. Quando pinçados para provas de revezamento, eles precisam sair de seu condicionamento solitário. Até, se necessário, saber desacelerar em vez de brilhar solo. Difícil. É frequente numa prova de atletismo ver dois atletas do mesmo time feito náufragos, um à procura da mão do outro, mas em velocidades discordantes. O tilintar do bastão que vai ao chão, mesmo quando não ouvido, é horrendo. É por essas e outras que técnicos nem sempre escolhem os mais velozes para o revezamento. Analisam quem passa maior segurança ao grupo, quem dará melhor continuidade à corrida.

Nesta semana, coube ao consórcio transnacional de mídia Forbidden Stories (Histórias Proibidas) demonstrar a força de um revezamento no âmbito também sempre competitivo do jornalismo. Desde sua criação cinco anos atrás, a entidade assumiu a missão de retomar o trabalho de jornalistas que tenham sido mortos ou impedidos pela força de prosseguir determinada apuração. Como ponto de partida, deram continuidade à investigação potencialmente devastadora de uma editora indiana, Gauri Lankesh, sobre a indústria de desinformação praticada pelas mais altas autoridades de seu país. Lankesh morreu assassinada pouco antes de poder publicar seu trabalho — foi alvejada no rosto por um motoqueiro jamais identificado.

Um ano depois, a Forbidden Stories conseguiu dar ao caso amplitude e contexto, além de gerar toda uma série sobre desinformação global intitulada “Story killers” (Matadores de Matérias Jornalísticas). Trabalhando de forma colaborativa, uma centena de jornalistas de 30 organizações de imprensa mapeou como a indústria da desinformação se sustenta, se alastra, manipula eleições, destrói reputações e apaga a verdade. No Brasil, a Folha de S.Paulo integra o consórcio. Uma reportagem da série, assinada por Patrícia Campos Mello, destrincha as ferramentas empregadas pela multinacional espanhola Eliminalia para apagar o passado on-line de clientes encrencados com a Justiça.

A ideia de dar continuidade a uma apuração interrompida pela censura ou pelo crime, atravessando gerações e geografias, vem se somar a outras iniciativas jornalísticas colaborativas de peso global já existentes. O tema poderia terminar aqui. Mas, por estarmos em dias de carnaval no Brasil, não é de todo errado olhar para o desfile das escolas de samba também como um revezamento — um passar de bastão de uma geração a outra para a melhor compreensão da História nacional nunca contada por inteiro. Se uma ala correr muito, o conjunto perde. Se atrasar demais, também. A beleza está na conjunto. Ninguém larga a mão do outro.

 

Um comentário:

  1. A empresa Eliminalia tem filial no Brasil e oferece seus serviços também por aqui. Será que ela consegue apagar TODOS os crimes divulgados cometidos por Jair Messias Bolsonaro?

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