O Estado de S. Paulo
Não vamos nos deixar seduzir pelo canto das sereias da inexistência de restrição fiscal e do espaço para reduzir os juros como fruto da vontade
Alguns economistas e políticos não veem razão para a Selic de 13,75% ao ano. Argumentam que a dívida pública bruta do Brasil se assemelharia à dívida média dos países emergentes e estaria abaixo da média dos desenvolvidos. Logo, na suposta ausência de problemas nas contas públicas, os juros deveriam diminuir rapidamente. Há espaço para reduzir os juros, mas ele está condicionado a resolver o nó das contas públicas. Não se trata de ter uma solução pronta e acabada, mas de promover medidas como o pacote fiscal de janeiro e o anúncio de uma boa regra fiscal, já prometido para o primeiro semestre. Desde logo, acho o debate salutar. Vamos aos números.
Há dois indicadores importantes para a
dívida bruta. Um deles, calculado pelo Banco Central do Brasil (BC), inclui a
dívida mobiliária (títulos públicos nas mãos do mercado), as operações
compromissadas (realizadas pela autoridade monetária), as dívidas bancárias e
contratuais, entre outros componentes. O outro, calculado pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI), considera que qualquer papel do Tesouro nas mãos de
terceiros – até mesmo na carteira do BC – constitua dívida.
Este último indicador costuma ficar acima
do calculado pelo BC. Isso ocorre porque há uma montanha de títulos nas mãos da
autoridade monetária, mas não usados para lastrear operações compromissadas. As
compromissadas servem para controlar a liquidez e garantir o cumprimento da
meta fixada para a Selic. A saber, o BC retira e coloca dinheiro nas mãos das
instituições financeiras para que o juro nas transações com títulos públicos
circunde a meta-Selic. Isso é fundamental para controlar a inflação.
Em síntese, a dívida calculada pelo FMI
contém os títulos na carteira do BC, mesmo que não estejam servindo às
operações que descrevi acima; no caso do indicador do BC, apenas as
compromissadas o compõem. As trajetórias da dívida bruta-FMI e da dívida
bruta-BC são correlatas. Apenas o nível se altera, em razão da tecnicalidade
elucidada. Para os fins deste artigo, vamos ficar com os números do FMI para
poder comparar países.
Segundo as estimativas do World Economic
Outlook veiculadas em outubro passado pelo FMI, a dívida bruta média dos países
emergentes seria de 64,5% do PIB em 2022. Para o Brasil, estimava-se dívida de
88,2% do PIB. As projeções do fundo indicavam, ainda, que a dívida brasileira
avançaria para 93,3% do PIB até 2026. Já a média dos emergentes alcançaria
76,2% do PIB. Se tomarmos 2019, por exemplo, antes do estouro da pandemia, a
dívida calculada pelo FMI para os emergentes era de 53,8% do PIB e, para o
Brasil, de 87,9% do PIB. De 2010 a 2019, a dívida do Brasil foi, em média, 27,9
pontos porcentuais do PIB superior à média dos países emergentes.
Esses dados ajudam a mostrar que a
informação difundida nos últimos dias, segundo a qual a dívida brasileira seria
compatível com a de seus pares, não procede. Nossa dívida pública é alta para
os padrões de desenvolvimento, renda, emprego e produtividade considerados.
Comparações internacionais são sempre imperfeitas, mas é preciso ir aos dados
disponíveis para avaliar a situação fiscal.
No caso dos países desenvolvidos, a média
calculada pelo FMI é de 112,4% do PIB para 2022. Um nível muito mais elevado
que o brasileiro, de fato. Mas é que não se pode comparar alhos com bugalhos.
Mutatis mutandis, com as condições estruturais dos emergentes, a dívida dos
desenvolvidos teria de ser mais baixa, senão seria insustentável. A dinâmica da
dívida depende da taxa real de juros, do crescimento econômico e do próprio
nível de endividamento, além do resultado primário – receita menos despesa sem
contar variáveis financeiras.
Uma regra de bolso para entender essa
lógica é observar a diferença entre o crescimento econômico e o juro real.
Quando o primeiro é maior que o segundo, a dívida tende a ser sustentável em
relação ao PIB. Quando ocorre o oposto, como no caso brasileiro, a dívida
mostra-se insustentável.
A partir dos estudos de Larry Summers,
Olivier Blanchard e outros eminentes economistas, que mostraram recentemente a
melhoria das condições para endividamento dos países desenvolvidos, Edmar Bacha
fez aplicações ao caso brasileiro. Em artigo didático publicado pela Casa das
Garças, Bacha esclareceu que o Brasil não tem condições de juros, serviço da
dívida e crescimento econômico para se dar ao luxo de endividar-se como se não
houvesse amanhã.
O debate sobre os efeitos fiscais da
política monetária é saudável. Contudo, não vamos nos deixar seduzir pelo
atraente canto das sereias da inexistência de restrição fiscal e do espaço para
reduzir os juros como fruto da vontade. As sinalizações recentes do Ministério
da Fazenda foram positivas. Está em construção um novo arcabouço fiscal, que
ajudará a reforçar a responsabilidade com as contas públicas. Pavimenta-se o
caminho para diminuir o custo da dívida e do crédito.
Juros baixos e dívida alta são como água e
óleo; não combinam.
*Economista-chefe e sócio da Warren rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da IFI
Lendo e aprendendo.
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