quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Felipe Salto* - Juros baixos e dívida alta: água e óleo

O Estado de S. Paulo

Não vamos nos deixar seduzir pelo canto das sereias da inexistência de restrição fiscal e do espaço para reduzir os juros como fruto da vontade

Alguns economistas e políticos não veem razão para a Selic de 13,75% ao ano. Argumentam que a dívida pública bruta do Brasil se assemelharia à dívida média dos países emergentes e estaria abaixo da média dos desenvolvidos. Logo, na suposta ausência de problemas nas contas públicas, os juros deveriam diminuir rapidamente. Há espaço para reduzir os juros, mas ele está condicionado a resolver o nó das contas públicas. Não se trata de ter uma solução pronta e acabada, mas de promover medidas como o pacote fiscal de janeiro e o anúncio de uma boa regra fiscal, já prometido para o primeiro semestre. Desde logo, acho o debate salutar. Vamos aos números.

Há dois indicadores importantes para a dívida bruta. Um deles, calculado pelo Banco Central do Brasil (BC), inclui a dívida mobiliária (títulos públicos nas mãos do mercado), as operações compromissadas (realizadas pela autoridade monetária), as dívidas bancárias e contratuais, entre outros componentes. O outro, calculado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), considera que qualquer papel do Tesouro nas mãos de terceiros – até mesmo na carteira do BC – constitua dívida.

Este último indicador costuma ficar acima do calculado pelo BC. Isso ocorre porque há uma montanha de títulos nas mãos da autoridade monetária, mas não usados para lastrear operações compromissadas. As compromissadas servem para controlar a liquidez e garantir o cumprimento da meta fixada para a Selic. A saber, o BC retira e coloca dinheiro nas mãos das instituições financeiras para que o juro nas transações com títulos públicos circunde a meta-Selic. Isso é fundamental para controlar a inflação.

Em síntese, a dívida calculada pelo FMI contém os títulos na carteira do BC, mesmo que não estejam servindo às operações que descrevi acima; no caso do indicador do BC, apenas as compromissadas o compõem. As trajetórias da dívida bruta-FMI e da dívida bruta-BC são correlatas. Apenas o nível se altera, em razão da tecnicalidade elucidada. Para os fins deste artigo, vamos ficar com os números do FMI para poder comparar países.

Segundo as estimativas do World Economic Outlook veiculadas em outubro passado pelo FMI, a dívida bruta média dos países emergentes seria de 64,5% do PIB em 2022. Para o Brasil, estimava-se dívida de 88,2% do PIB. As projeções do fundo indicavam, ainda, que a dívida brasileira avançaria para 93,3% do PIB até 2026. Já a média dos emergentes alcançaria 76,2% do PIB. Se tomarmos 2019, por exemplo, antes do estouro da pandemia, a dívida calculada pelo FMI para os emergentes era de 53,8% do PIB e, para o Brasil, de 87,9% do PIB. De 2010 a 2019, a dívida do Brasil foi, em média, 27,9 pontos porcentuais do PIB superior à média dos países emergentes.

Esses dados ajudam a mostrar que a informação difundida nos últimos dias, segundo a qual a dívida brasileira seria compatível com a de seus pares, não procede. Nossa dívida pública é alta para os padrões de desenvolvimento, renda, emprego e produtividade considerados. Comparações internacionais são sempre imperfeitas, mas é preciso ir aos dados disponíveis para avaliar a situação fiscal.

No caso dos países desenvolvidos, a média calculada pelo FMI é de 112,4% do PIB para 2022. Um nível muito mais elevado que o brasileiro, de fato. Mas é que não se pode comparar alhos com bugalhos. Mutatis mutandis, com as condições estruturais dos emergentes, a dívida dos desenvolvidos teria de ser mais baixa, senão seria insustentável. A dinâmica da dívida depende da taxa real de juros, do crescimento econômico e do próprio nível de endividamento, além do resultado primário – receita menos despesa sem contar variáveis financeiras.

Uma regra de bolso para entender essa lógica é observar a diferença entre o crescimento econômico e o juro real. Quando o primeiro é maior que o segundo, a dívida tende a ser sustentável em relação ao PIB. Quando ocorre o oposto, como no caso brasileiro, a dívida mostra-se insustentável.

A partir dos estudos de Larry Summers, Olivier Blanchard e outros eminentes economistas, que mostraram recentemente a melhoria das condições para endividamento dos países desenvolvidos, Edmar Bacha fez aplicações ao caso brasileiro. Em artigo didático publicado pela Casa das Garças, Bacha esclareceu que o Brasil não tem condições de juros, serviço da dívida e crescimento econômico para se dar ao luxo de endividar-se como se não houvesse amanhã.

O debate sobre os efeitos fiscais da política monetária é saudável. Contudo, não vamos nos deixar seduzir pelo atraente canto das sereias da inexistência de restrição fiscal e do espaço para reduzir os juros como fruto da vontade. As sinalizações recentes do Ministério da Fazenda foram positivas. Está em construção um novo arcabouço fiscal, que ajudará a reforçar a responsabilidade com as contas públicas. Pavimenta-se o caminho para diminuir o custo da dívida e do crédito.

Juros baixos e dívida alta são como água e óleo; não combinam.

*Economista-chefe e sócio da Warren rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da IFI

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