O Estado de S. Paulo
O pressuposto de que defender as instituições democráticas implica apoiar o governo Lula, abster-se de criticar seus erros, não se sustenta
A vitória eleitoral de Lula no segundo
turno provocou, em parte, um alívio depois de quase quatro anos de desgoverno
do ex-presidente Bolsonaro e, sobretudo, diante de um final de mandato sem
governo nenhum. O alívio também proveio de uma expectativa de cumprimento do
compromisso, assumido pelo novo presidente, de formar um governo de frente
ampla, com participação relevante das lideranças e do eleitorado de centro, sem
cujo voto Lula teria sido derrotado.
No que diz respeito ao seu compromisso com
uma ampla frente de defesa da democracia, não creio que seja injusto afirmar
que ele tem deixado muito a desejar. E, se fosse injusto, motivado por
discordâncias morais ou ideológicas, não teríamos o direito democrático de
discordar?
Infelizmente, o alívio por termos evitado as ameaças golpistas do ex-presidente – graças, repito, ao voto do eleitorado de centro – provocou no jornalismo brasileiro e em parte da opinião pública uma quase unanimidade nacional. Mas a unanimidade não é apenas burra, como queria Nelson Rodrigues, ela é inimiga da democracia representativa.
Não basta se intitular democracia, nem
apenas permitir a existência de partidos políticos, apenas tolerados, mas sem
relevância e sem garantia de fato de disputar o poder. Para Robert Dahl, a
principal referência na teoria democrática, além da igualdade do direito de
participação política, a democracia pressupõe a garantia da liberdade de
oposição.
O pressuposto de que defender as
instituições democráticas implica apoiar o governo Lula, abster-se de criticar
seus erros, aceitar indiscriminadamente sua falta de empenho em estabelecer uma
política econômica coerente, ou sua insistência em manter-se permanentemente em
campanha e perpetuar a polarização, não se sustenta. O pressuposto correto é de
que defender a democracia implica apoiar as instituições democráticas e avaliar
o desempenho de seus responsáveis e, em caso de discordância, valer-se do direito
de oposição. A melhor maneira de contribuir positivamente para o bom desempenho
de um governo do qual discordamos é fazer-lhe oposição, uma oposição
programática, coerente em seus princípios e fiel ao Estado Democrático de
Direito.
Minha primeira objeção ao atual presidente
diz respeito a seu descaso quanto à principal prioridade de um governante, a de
começar a governar com objetivos e projetos bem determinados, apoiado numa
equipe governativa experiente, e com apoio de uma maioria congressual fiel e estável.
Durante o mês de transição e no primeiro depois de empossado, Lula se
distinguiu mais pelo que não fez do que por seus feitos em matéria de governo.
Empenhou-se em primeiro lugar em obter, a
todo custo, apoio suficiente para livrar-se de qualquer âncora fiscal. A nova
âncora, se levarmos em conta o princípio, por ele estabelecido, de que o
equilíbrio fiscal é inimigo do povo, está fora de cogitações, uma vez que ficou
postergada para o segundo semestre e seria atrelada à reforma tributária – a
qual, por sua vez, poderia ser parcelada!
Como não é possível avaliar apenas o que
não se fez, atenho-me, aqui, a iniciativas do governo Lula que considero
arriscadas, para dizer o mínimo. Trata-se, por exemplo, das iniciativas de
cerceamento da livre expressão de opiniões discordantes do governo com a
criação de uma Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia em recente decreto
da Advocacia-Geral da União (AGU), que, como sabemos, advoga supostamente em
defesa da União, e não da “democracia”. Entre os objetivos citados pelo novo
advogado-geral da União, em seu discurso de posse, o novo órgão deverá combater
informações inverídicas “com o objetivo de prejudicar a adequada execução de
políticas públicas”. Desde quando manifestar opinião contra a execução de políticas
públicas que não sejam aceitas por um grupo de interesse pode ser considerado
ilegal?
Outra iniciativa – esta diretamente tomada
por Lula – talvez seja a mais arriscada. Trata-se do que podemos chamar de
reconversão da polarização: com o enfraquecimento da base congressual do
bolsonarismo, torna-se cada vez menos crível a iminência de um golpe
capitaneado pelo ex-presidente. Isso parece tornar urgente, para o lulopetismo,
encontrar outro polo a ser demonizado.
É o que se pode depreender dos ataques repetidos
de Lula aos militares. Quaisquer que fossem as circunstâncias, seria fora de
propósito o presidente da República tornar pública sua desconfiança de toda uma
categoria de servidores do Estado. Dadas as circunstâncias, em que Bolsonaro e
seu entourage militar ameaçaram constantemente desencadear um golpe de Estado
com o apoio das Forças Armadas, trata-se de pura provocação.
Lula precisa entender rapidamente duas
coisas: primeiro que, se ele deve ao eleitor de centro sua vitória eleitoral,
ele deve à maioria legalista dos militares a recusa a cumprir os delírios
ditatoriais do seu chefe supremo. Segundo, que seu principal dever é o de
governar e, quanto mais adiar o cumprimento desse dever, mais ele será cobrado.
*Professor titular de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP)
Oposição com moderação,recomenda-se.
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