quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Luiz Werneck Vianna* - Abrir a arca do tesouro

Temos seguido, imprecisamente desde os anos 1930, duas linhas paralelas em nosso processo de desenvolvimento, a da modernização e a do moderno, segundo nos sugere Raimundo Faoro em seu penetrante ensaio “A república inacabada”, linhas que revelam inequívoca prevalência da primeira sobre a do moderno que se apresenta em traços débeis ao longo do período e, em geral, como um efeito colateral não buscado do processo da modernização, mas que no governo JK e até 1964 experimentou um surto afirmativo.

Ainda segundo Faoro, por processos de modernização devem-se entender os que derivam das ações de elites políticas que intentam conduzir sociedades retardatárias, por meio do controle autocrático do poder político, no sentido de acelerar sua expansão econômica e intervir no sentido de fortalecê-las em termos da competição internacional pelo controle de mercados, como nos casos clássicos da Alemanha, da Itália e do Japão. Tem origem, portanto, em processos políticos que operam por cima da sociedade entre suas elites, e, como tais, impõem vias artificiais de desenvolvimento para uma sociedade que apenas padece dos seus efeitos. 

 Sob o governo Bolsonaro experimentamos uma dupla negação, tanto das vias da modernização que por décadas encontrou nas corporações militares sua principal sustentação, quanto as do moderno que vinha encontrando brechas para se infiltrar,  por suposto em razão da sua natureza autoritária, e ficamos expostos à vacuidade do neoliberalismo preconizado por seu ministro da Fazenda Paulo Guedes, adversário figadal de ambas, dominado por suas paixões sobre as virtudes de um mercado confiado à sua própria lógica. Com essa orientação, seguida à risca, tentou-se cirurgicamente separar o país do seu passado e de suas tradições.

O processo eleitoral, com a vitória da candidatura Lula-Alkmin cortou a possibilidade de ainda mais se radicalizar essa ruptura, embora os males já feitos sejam de difícil reparação inclusive por que o campo derrotado não só perdeu por uma quantidade pequena de votos, mas, sobretudo, por manter forte presença nas câmaras legislativas e em importantes estados da federação, inclusive São Paulo.

Nos quatro anos de destruição sistemática das instituições e da cultura política que criava raízes sob regime democrático em que se empenhou o governo Bolsonaro, degradando a memória da obra e de empreendimentos que nos serviam de orientação, como no caso de Paulo Freire que se tornou paradigmático, entre tantos, deixando um vazio no lugar que ocupavam na imaginação dos brasileiros sobre como pensar e agir nas suas circunstâncias.

A campanha eleitoral vitoriosa que derrotou o fascismo, possivelmente por cálculos que se demonstraram acertados, contornou a agenda dos temas político-culturais sem fornecer respostas para a sanha destrutiva do governo Bolsonaro nesse terreno, fixando-se nos temas da desigualdade, e aí nas questões da pobreza, das mulheres submetidas a um patriarcalismo secular, e das regiões desfavorecidas no capitalismo brasileiro, como o Nordeste, pauta que lhe abriu o caminho do êxito, embora lhe prometa um terreno de pedras.

A primeira tentação para o vencedor é a de retomar o antigo repertório, revalorizando obras e instituições de provada serventia no passado. Mas o Natal mudou, a crença disseminada de que, apesar dos pesares, a sociedade estava animada por uma contínua, embora lenta, movimentação em sentido progressivo rumo a um desenvolvimento menos desigual em termos sociais e mais afluente na economia, está em franca dissipação. Os antigos partidos que sustentavam tais crenças já não existem mais, sepultados por uma aluvião de organizações sem alma e meramente fisiológicas, fora os sobreviventes como o PT e alguns poucos e minoritários como o PSOL, Rede e Cidadania, todos com baixa representação orgânica nos setores subalternos.

De outra parte, os intelectuais, antes inclinados a uma participação na vida pública se acham confinados a seus nichos especializados e desencontrados de sustentação social, e apenas alguns artistas renomados esporadicamente furam o isolamento em relação ao público. A cognição se desertifica num momento em que mais que nunca é necessária nesse momento de moda das concepções distópicas.

Em horas aziagas como essas, em que parecem estar fechadas as portas do futuro, convém abrir as arcas do passado com seus tesouros escondidos dos quais podem vir a inspiração para a retomada do impulso criativo que nos atualize no agir na hora presente, ali estão os nossos maiores a que devemos devolver vida, retomando os elos presentes em suas criações. Com eles e a partir deles extrair vantagens do que foi a nossa modernização sem perder de vista que é o moderno o que desejamos.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio             

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