segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Miguel de Almeida - É proibido proibir

O Globo

Em destaque, logo na primeira gôndola da livraria nova-iorquina Strand brilham exemplares de “Victory City”, de Salman Rushdie. É o décimo sexto livro do autor indiano depois que sua morte foi ordenada por Khomeini. A fatwa veio em represália ao “Versos satânicos”, onde o aiatolá enxergou blasfêmias a Maomé. Em troca de seu assassinato, o líder iraniano oferecia alguns milhares de dólares. Literalmente, um escritor com cabeça a prêmio, refém da intolerância religiosa.

A fatwa foi emitida há mais de 30 anos. Em agosto passado, o ódio longo de Khomeini, morto há décadas, alcançou Rushdie quando se preparava para falar sobre cultura contemporânea numa cidadezinha próxima a Nova York. Um fanático subiu ao palco e o atacou, desferindo quase duas dezenas de facadas. Na recente New Yorker, uma foto de página inteira em branco e preto expõe as cicatrizes deixadas pelo atentado no rosto de Rushdie, assim como a perda do olho direito e do movimento do braço esquerdo. “Victory City”, delicada fábula, conta a história de uma garota e de uma cidade onde as mulheres buscam resistir ao patriarcalismo e à intolerância religiosa.

A fatwa de Khomeini — e o atentado a Rushdie, um dos grandes escritores contemporâneos — pode ser vista como o escárnio da irracionalidade e da tentativa de aprisionar a sociedade a um passado medieval. Não deixa de ser fundamentalismo religioso, como é ainda uma visão totalitária sobre a liberdade alheia. Lugar nublado onde se misturam ideologia, fanatismo e ignorância, a ânsia de exercer poder sobre o outro é um exercício constante na sociedade, sob diversos disfarces.

A poeira do carnaval de 2023 já baixou, mas difícil não gargalhar com o tuíte do governador da Bahia, o agora afamado Jerônimo Rodrigues. Ancorado na credencial de professor, listou uma série de fantasias proibidas aos baianos. Até então, tal tipo de atitude — criminalizar o imaginário alheio — era comportamento de radicais das redes sociais ou de grupos encobertos em palavras de ordem identitárias. Quase sempre com desprezo à tradição cultural.

O mandatário baiano listou como proibidas as fantasias de indígenas (“é um desrespeito se apropriar de suas vestimentas”), pessoas pretas (“perucas e demais acessórios reforçam o racismo”) e travesti (“se vestir de mulher ridiculariza figuras femininas”). Também acrescentou:

—Vestir-se de “nega maluca”? Nem pensar.

Mas não se furtou a aparecer com um chapéu de Jeca. Pena que os jecas não dão bandeira, daí não protestam.

Perguntei a amigos de Salvador e soube que suas ordens foram sumariamente desrespeitadas. O circuito Castro Alves-Barra surgia coalhado de foliões em evidente desobediência civil. O próximo passo talvez seja interferir nas vestimentas das vaquejadas, do bumba meu boi e da cavalhada. Além do desejo de renomear o burro, o charmoso animal.

O tuíte do mandatário baiano não é civilizatório, como quer vender a uns poucos. É, sim, incitação a uma cisão. Que, levada a cabo por seguidores mais fundamentalistas, resultará em violência — como já ocorre por aí. Afora o arrazoado do Jerônimo ser um amontoado de receitas e maledicências sem dendê.

Isso vale para todo o espectro ideológico.

Quantos não deixaram de tomar vacina por causa daquele ex-líder da extrema direita? Quantos não começaram a duvidar das urnas? De tais sandices vieram depois mortes, brigas e tiozinhos com pneumonia na porta dos quartéis. Significa que o gado escuta as autoridades sem filtro — e nem todas as suas falas resultam em felicidade e paz na Terra.

Clivagens ecoam a partir dos tuítes e dos posts, à esquerda e à direita. O filme “Babilônia”, maravilhoso, escande a grande incoerência das lutas identitárias. Um trompetista preto é obrigado a pintar seu rosto de mais escuro porque seus colegas de banda são mais pretos que ele, o que o faz parecer branco por comparação. E o público rejeitaria ver um grupo misturado de brancos e pretos. Daí que a extrema direita do movimento negro americano tenha colocado em palavra de ordem a ideia de que miscigenação é racismo. De vez em quando isso ecoa pelo Brasil, como se fosse bandeira da esquerda identitária.

É o caso inverso do que ocorria realmente no século passado, quando os jogadores pretos se viam obrigados a passar pó de arroz para poder integrar os times de futebol, formados basicamente por brancos. Até que as seguidas derrotas para Argentina e Uruguai mudaram a História brasileira.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário