domingo, 26 de fevereiro de 2023

Míriam Leitão - Início do ataque ao ouro ilegal

O Globo

Novas leis e normas, operações de comando e controle e os sinais do governo Lula alimentam a esperança de vitória sobre o garimpo ilegal

O que parecia impossível começa a acontecer em pouco mais de um mês, o combate ao ouro ilegal. A ida do presidente Lula à Terra Indígena Yanomami deflagrou um processo virtuoso, mas o caminho é longo. A Receita Federal, o Congresso, o Supremo e o Banco Central têm trabalho a fazer para limpar o ambiente de crime nesse mercado. Os ministros da Justiça, Defesa e comandantes militares avaliaram, na quinta-feira, que a desintrusão na Terra Yanomami está quase no fim. E isso é um passo.

— Eram 40 aviões circulando por dia, agora, um ou dois. Havia milhares de garimpeiros, agora são centenas em cinco pontos. Para um trabalho que começou há praticamente um mês é um bom resultado — disse o ministro da Justiça Flávio Dino.

Mesmo assim, quem acompanha o assunto, como o diretor executivo do Instituto Escolhas, Sérgio Leitão, permanece cético:

— No mundo do Diário Oficial, que é o mundo em que a minha nordestinidade manda acreditar, não aconteceu nada ainda.

E o que precisa acontecer? Primeiro, precisa cair a instrução normativa da Receita Federal de 2001 que permite que o garimpo emita nota fiscal em papel e manuscrita. Há 15 dias, Flávio Dino conversou com o ministro Fernando Haddad sobre o assunto. A nota passará a ser eletrônica.

Segundo, acabar com o “princípio da boa fé”, que foi incluído pelo deputado Odair Cunha (PT-MG) numa MP de 2013. Esse absurdo é o seguinte: o comprador do ouro, a DTVM, foi desobrigado de perguntar ao vendedor de onde vem o ouro. O que ele disser está dito. Isso acabou sendo usado pelas DTVMs para lavarem as mãos, e o ouro. Elas fazem receptação de produto de crime e fica por isso mesmo.

O ministro Flávio Dino tem esperança de que o Congresso aprove o projeto de autoria de Joênia Wapichana. O projeto, aliás excelente, da então deputada, hoje presidente da Funai, regulamenta o mercado de ouro, estabelecendo a rastreabilidade.

Sérgio Leitão acha que o melhor seria mudar por MP esse ponto da “boa fé”, o que não conflitaria com a tramitação do projeto mais amplo:

— O assunto sequer chegou ainda na Casa Civil, e quando chegar lá será preciso ouvir o Ministério das Minas e Energia e eventualmente outros ministérios.

Há um outro caminho para acabar com essa distorção. Está no STF uma Arguição Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que contesta esse ponto da “boa fé” dos garimpeiros. O relator é o ministro Gilmar Mendes, e os autores, a Rede e o PSB. Na época do governo Bolsonaro, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi contra mudar essa lei. Até agora, a AGU, sob nova direção, não se manifestou.

— Do ponto de vista do Diário Oficial, não entramos ainda no novo governo, no que toca ao ouro — diz Sergio Leitão que, como sempre explico quando o entrevisto, não é meu parente.

O Banco Central tem a incumbência de fiscalizar instituições financeiras, e, portanto, as DTVMs. O BC explicou que fiscaliza a origem dos recursos. No caso das DTVMs, o “princípio da boa fé”, sempre ele, impede o trabalho porque nas operações feitas nas distribuidoras, elas sempre dizem que a lei as obriga a acreditar nos vendedores.

Se a Receita fizer seu trabalho, a MP for baixada, o STF considerar essa lei inconstitucional, o BC fiscalizar, o Brasil verá o começo do fim desse mar de criminalidade do garimpo que contamina o meio ambiente e mata indígenas.

O garimpo na TI Yanomami criou uma crise humanitária que vem sendo enfrentada com o socorro aos indígenas e a desintrusão. Eles estão saindo, mas ficarão impunes? Dos sete garimpeiros presos por atacar policiais e fiscais do Ibama, na quinta-feira, seis foram liberados. Em fevereiro a Polícia Federal fez três operações contra o ouro ilegal em Roraima. BAL, Avis Aurea, Sisaque. E tem ainda a operação Libertação na Terra Yanomami que mobiliza o Ibama, PF, Força Nacional e Forças Armadas.

Novas leis e normas, quando forem editadas, as operações de comando e controle e, principalmente, o novo governo alimentam a esperança de vitória sobre esse inimigo. Pelo menos lá em Roraima. Mas o garimpo está em outras terras, como a Munduruku e a Kayapó, entre outras. O lobby do ouro ilegal continua forte.

Para se ter uma ideia do tamanho do roubo, o Instituto Escolhas calcula que de 2015 a 2020 mais de 200 toneladas de ouro foram comercializadas com indícios de irregularidade. Em 2021, aumentou para 52,8 toneladas, um recorde anual e mais da metade da produção nacional. E 61% desse ouro saiu da Amazônia.

 

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