O Estado de S. Paulo
O mundo pós-moderno, que nunca foi muito afeito a falar em verdade, defende hoje, com incrível vigor, o conceito de verdade
Talvez estejamos vivenciando uma inflexão
histórica a respeito de um dos temas mais debatidos da humanidade: a verdade.
Até poucos anos atrás, a ideia de verdade era mal vista, vinculada a imposições
e intransigências. Não soava democrático falar em verdade. Menos ainda
manifestar certeza sobre algum assunto. Seria fanatismo.
Sempre presente na história humana, a
tensão com a verdade ganhou novos contornos na modernidade. Não é que o
conceito de verdade tenha desaparecido da reflexão filosófica, mas foi recebendo
novos critérios. Aqui, traçar linhas contínuas pode ser simplista, mas é
possível verificar a passagem, ao longo do tempo, de uma verdade absoluta e
imutável, acessível aos sentidos e à reflexão, para um conceito mais relativo e
subjetivo, até chegar a posições que postulam a inacessibilidade da verdade ou
mesmo sua inexistência.
Na pós-modernidade, a verdade é vista como uma construção social e histórica. Negamse radicalmente os predicados de objetividade e de universalidade. Eis um aspecto a ser destacado: o percurso histórico da verdade está entrelaçado com o da liberdade. Não havendo uma única verdade humana, também não teria uma ética única. Cada um livre seria para escolher seus valores.
O tema da verdade faz lembrar-me do meu
professor de Direito Constitucional, que alguns anos depois se tornaria
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, declamando
para nós, seus alunos, os versos de Ramón de Campoamor: En este mundo traidor /
nada es verdad ni mentira / todo es según el color / del cristal con que se
mira. Na virada do século, Barroso entusiasmava-nos na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) com suas aulas bem preparadas, cultas e divertidas.
Eu gostava dos versos de Campoamor, mas a
relativização ali proposta não me convencia. Achava-a exagerada. Foram
necessários vários anos para que eu percebesse meu erro. Na apreensão da
realidade, a perspectiva é decisiva. Há muita sabedoria neste “todo es según el
color del cristal con que se mira”.
No entanto, e aqui está a virada à qual me
referi no início, a verdade ganhou nos tempos atuais um enquadramento
totalmente diferente do de duas décadas atrás. O mundo pósmoderno, que nunca
foi muito afeito a falar em verdade, defende hoje, com incrível vigor, o
conceito de verdade. O processo vem ocorrendo há uns anos, mas ficou explícito
na pandemia. Diante do enorme desafio de saúde pública, difundiram-se, sob
pretexto de liberdade de expressão, ideias e posicionamentos manifestamente
equivocados.
A confusão causada pela desinformação
desvelou a necessidade de um norte, de um critério minimamente objetivo. Era
preciso despertar as pessoas capturadas por erros primários. Mas como
adverti-las de seus equívocos, se nossas ferramentas argumentativas estavam,
por décadas, voltadas para dizer que não há uma verdade única, que cada um tem
direito a ter sua verdade, que a objetividade do conhecimento é uma ilusão, que
a cultura ocidental superestima a razão?
A agravar a situação, os negacionistas e
terraplanistas já não estavam circunscritos a um pequeno círculo, nem usavam
seu arsenal para discutir sexo dos anjos. O objetivo era implodir os
fundamentos da convivência e do regime democrático liberal.
Na empreitada de reconstruir as bases
mínimas de racionalidade, uma tática arguta foi restaurar o prestígio dos fatos
– conceito que também não andava em moda, mas tinha menos má fama do que a
malvada verdade. Nesse intento, resgatou-se a célebre frase do senador
americano Daniel Patrick Moynihan: “Todos têm direito à sua própria opinião, mas
não aos seus próprios fatos”.
Após esse primeiro passo, a palavra verdade
voltou, aos poucos, a ser mencionada. Hoje ninguém parece escandalizar-se com
ela. Aqui, recorro, uma vez mais, ao meu professor de Direito Constitucional.
“Precisamos restabelecer o poder da verdade possível e plural dentro de uma
sociedade aberta”, disse Luís Roberto Barroso em aula em Boston, no ano
passado. Suas palavras refletem o cuidado que o tema exige. Não é questão de
impor dogmatismos ou de ignorar as limitações do conhecimento humano, mas está
evidente que uma sociedade não pode ter medo de admitir que existem verdades e
existem mentiras.
É muito positivo – mais, é necessário –
resgatar o conceito de verdade, que não absolutiza a ideia apreendida, mas faz
referência, entre outros pontos, a uma coerente (e humilde) relação entre
realidade e mente. São muitos os temas em aberto; por exemplo, as relações
entre verdade, certeza e conhecimento empírico, as tensões da verdade com a
linguagem e a história, a complexidade envolvida na captação dos fatos. Não
existe uma fórmula para lidar com o opinionismo contemporâneo. Para combater a
desinformação, não basta fazer uma apologia superficial da ciência ou do
jornalismo, pregando uma recepção acrítica. Talvez pareça difícil, mas o caminho
para que verdade e mentira não sejam mero flatus vocis é estudar e debater
filosofia, incorporando sua perspectiva reflexiva no nosso cotidiano.
*Advogado
Existem mentiras, sim, mas boa parte delas foi apropriada pelo Trump original e pelo seu imitador brasileiro, vulgo GENOCIDA! Cada um com milhares de mentiras ditas nos últimos anos, várias a cada dia.
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