É desafio enorme provar a hipótese de genocídio ianomâmi
O Globo
Mesmo que se comprove a omissão do governo
Bolsonaro, será difícil demonstrar que ela foi intencional
A tragédia ianomâmi suscitou nas
instituições a reação necessária de busca por responsáveis. O ministro da
Justiça, Flávio Dino, pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito para
apurar crimes ambientais, omissão de socorro e genocídio. O ministro Luís
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou apuração de
crimes ambientais, de desobediência, quebra de segredo de Justiça e também
genocídio. Os alvos da investigação, ainda sigilosa, estão vinculados ao
governo Jair Bolsonaro.
A acusação que desperta a maior controvérsia é a de genocídio, bordão entre opositores de Bolsonaro, ouvido também em declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se do crime mais hediondo, definido nos textos legais como atos cometidos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. No caso dos ianomâmis, está satisfeita a característica mais importante do genocídio: o caráter coletivo do alvo, um grupo étnico indígena.
A definição foi criada pelo jurista Rafael
Lemkin em 1944 para tipificar os crimes cometidos pelos nazistas contra judeus
e outras minorias enquanto grupos. Mas sempre foi um crime difícil de
comprovar. Nenhum nazista foi condenado por genocídio no Tribunal de Nuremberg,
como queria Lemkin. Nenhum integrante do Khmer Rouge foi condenado por
genocídio, apesar do extermínio de 2 milhões no Camboja. As condenações mais
relevantes foram contra a matança dos tutsis em Ruanda e pelo massacre de
muçulmanos em Srebrenica, na Bósnia.
No Brasil, a lei de 1956 que pune o
genocídio já foi aplicada contra cinco garimpeiros pelo assassinato de 12
ianomâmis, entre os quais cinco crianças, a tiros e facadas em 1993. Desta vez,
as acusações sustentam que houve atrocidades como resultado de omissão
criminosa do governo. Documentos citados por Barroso “sugerem um quadro de
absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como (…) ação ou
omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais”.
Será preciso ainda examinar em detalhes o
teor da investigação sigilosa para saber se ela é capaz de embasar acusações
tão graves contra autoridades. As dificuldades são imensas. Será preciso
primeiro demonstrar com provas eloquentes a responsabilidade de cada elo na
cadeia de comando. Em seguida, provar a intenção de aniquilar os ianomâmis,
condição essencial para tipificar o genocídio. Nada disso está claro.
Parece evidente, é certo, que a tragédia
foi provocada por omissão do governo. Entre abril e novembro de 2022, a Funai
recebeu 36 alertas de organismos nacionais e internacionais, entre eles a
própria ONU, sobre a gravidade da situação entre os ianomâmis. Ao que tudo
indica, pouco — se algo — fez para socorrê-los. Comprovar a omissão, porém, não
bastará para mostrar que ela tenha sido intencional, com o objetivo implícito
de aniquilá-los. Muito menos que tenha contado com aval ou participação do
ex-presidente.
Quando deputado, Bolsonaro lutou contra a
demarcação das terras ianomâmis e sempre proferiu disparates contra os
indígenas. Na presidência, esvaziou os órgãos de fiscalização e implantou
políticas lenientes com o garimpo ilegal, origem da tragédia humanitária. Será
difícil para as autoridades comprovar que essa era a intenção dele ou de
qualquer integrante de seu governo. Mas isso não significa que a hipótese não
deva ser investigada.
Concessão do novo Canecão será benéfica
para o Rio e para o Brasil
O Globo
Nova casa de espetáculos para 3 mil
espectadores resgatará endereço histórico da cultura nacional
Em meio às turbulências da política, passou
quase despercebida uma grande notícia para o Rio, para o Brasil e a cultura
nacional: o anúncio da construção do novo Canecão, que sucederá a histórica
casa de espetáculos, fechada em 2010 depois de uma longa batalha judicial dos
inquilinos com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dona do espaço
em Botafogo, Zona Sul do Rio.
Com um lance de R$ 4,35 milhões e ágio de
596%, o consórcio Bonus-Klefer venceu o leilão organizado pela UFRJ e pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para erguer o novo
prédio, cuja inauguração está prevista para 2025.
O novo Canecão será construído no campus da
UFRJ na Praia Vermelha, perto de onde funcionva o antigo. Deverá ter pouca
semelhança com o original. O projeto é fazer um espaço multiúso de 15 mil
metros quadrados com estrutura para shows, musicais e peças de teatro. O
consórcio vencedor promete investir R$ 184,3 milhões na concessão, válida por
30 anos. A nova casa deverá ter capacidade para 3 mil espectadores. O pacote
inclui também a construção de 70 salas de aula, refeitório, sala para
exposições científicas, um parque aberto e a restauração de um painel de
Ziraldo que decorava a fachada da antiga casa. O projeto final ainda será
submetido à aprovação da universidade.
Aberto em 1967 como cervejaria, o Canecão
foi transformado em casa de espetáculos dois anos depois. Ao longo de décadas,
se tornou referência na cidade e no país. Por seu palco passaram atrações
internacionais e os maiores nomes da MPB. A relação com a universidade sempre
foi conflituosa. As disputas levaram ao fechamento definitivo. Desde 2010 o
prédio se degrada.
No dia do leilão, alunos e funcionários
fizeram um protesto e chegaram a interromper o certame por uma hora. Alegam não
ter sido ouvidos sobre a proposta. A UFRJ argumenta que a concessão, aprovada
pelo Conselho Universitário, foi amplamente discutida com a comunidade.
Discordâncias fazem parte do jogo democrático. Os pontos positivos da
iniciativa, porém, excedem em muito os negativos. O principal é devolver ao Rio
um de seus maiores palcos. A universidade, cujo orçamento não supre sequer as
necessidades básicas, não dispõe de recursos para reerguer o Canecão, muito
menos para mantê-lo. Nada mais natural do que recorrer à iniciativa privada.
Todos ganharão. A UFRJ receberá novas instalações sem precisar gastar o dinheiro que não tem. Os empresários administrarão um espaço multiúso numa área privilegiada. A cidade e o país terão de volta um palco que fez história. O meio cultural disporá de instalações modernas para espetáculos. E o público recuperará o velho endereço. Todos perderiam se o velho Canecão continuasse fechado, sofrendo degradação lenta e constante.
Passado incerto
Folha de S. Paulo
Decisão do STF acentua incerteza jurídica
com a caótica legislação tributária
Trouxe perplexidade a decisão do Supremo
Tribunal Federal, na semana que passou, pela qual os contribuintes que
obtiveram decisões transitadas em julgado pelo não recolhimento de CSLL
estarão, agora, sujeitos ao pagamento retroativo à data em que a corte decidiu
pela constitucionalidade do tributo.
O que estava em pauta no STF não era a
legalidade da cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, tema já
pacificado desde 2007, mas os limites da coisa julgada em matéria tributária.
Por unanimidade, o tribunal definiu que uma
alteração do entendimento sobre a aplicação de um tributo cessa os efeitos de
uma medida anterior em sentido contrário.
Até aí, não há controvérsia excessiva, na
medida em que um direito adquirido por algum contribuinte não pode suplantar
uma nova interpretação de repercussão geral por parte do Supremo.
A surpresa foi a decisão, por 6 votos a 5,
de não aplicar uma modulação. Na prática, as pessoas jurídicas que contavam com
decisão definitiva contrária à cobrança agora poderão ter de recolher a CSLL
desde 2007, e não apenas a partir do momento atual.
Pior ainda, dada a complexidade do sistema
tributário nacional, especialmente na parte de cobranças cumulativas de
impostos e bases de incidência, o entendimento do STF abre espaço para que
sentenças transitadas em julgado relativas a outros tributos também sejam
reformadas sem modulação.
A incerteza jurídica e financeira pode ser
avassaladora para muitas empresas nacionais.
O tema sem dúvida é complexo. De um lado, a
inviolabilidade de uma sentença final, principio
basilar do direito e da Constituição que garante a segurança jurídica.
De outro, a necessidade de isonomia econômica entre contribuintes, alguns
sujeitos ao pagamento e outros beneficiados pelas decisões definitivas
anteriores.
Era preciso compatibilizar as duas
preocupações, ambas essenciais, mas o próprio Supremo tem parcela de culpa por
deixar o problema crescer ao ponto atual.
A demora de quase duas décadas para
esclarecer pontos tão cruciais não deveria
resultar em pesados pagamentos retroativos. Quando a assimetria
é contrária ao fisco, é frequente a corte adotar modulações. Não foi o caso
agora.
Cobrar apenas para a frente traria menos
riscos, não apenas nesse caso, mas principalmente para os outros que agora
serão objeto de ainda mais controvérsia.
Fica demonstrado, assim, o estado de
calamidade a que chegaram a legislação e a interpretação dos tribunais em
matéria tributária. A difícil reforma, hoje de volta à pauta no Congresso,
mostra-se novamente urgente.
Anomalia militar
Folha de S. Paulo
STF demora para limitar tribunais fardados
no julgamento de crimes contra civis
O Supremo Tribunal Federal voltou a debater
o alcance dos poderes da Justiça Militar no país, tema que se arrasta
injustificadamente desde 2013, quando a Procuradoria-Geral da República
ingressou com ações a respeito na corte.
Espera-se que o STF decida, finalmente, se
crimes cometidos por agentes das Forças Armadas em operações de segurança
pública devem ser julgados por órgãos militares ou pela Justiça comum.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade ora
analisada mira duas leis assinadas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2004
e 2010, que conferem essa competência às cortes militares. Em 2017, o governo
de Michel Temer (MDB) ainda incluiu o julgamento dos crimes dolosos contra a
vida de civis praticados por militares nas operações.
Na contramão de países como a
Argentina, que aboliu a Justiça Militar em 2009, o STF tarda em
afirmar o princípio de que instituições da caserna não devem julgar violações
cometidas por seus próprios pares, ainda mais contra civis.
Até o momento, o placar está em 3 a 2 para
a manutenção da competência da Justiça Militar —com votos do ex-ministro Marco
Aurélio Mello, relator do caso, e dos ministros Alexandre de Moraes e Roberto
Barroso, ante os de Edson Fachin e Lewandowski.
Tribunais castrenses são, no Brasil, um
misto de juízes togados e, em sua maioria, de agentes militares, privilegiando
o espírito corporativista, não apenas a lei.
O Superior Tribunal Militar (STM), por
exemplo, é composto
majoritariamente por fardados e não exige formação jurídica, apenas
respeito à disciplina das Forças Armadas. Tal configuração de uma instituição
de justiça é inaceitável.
Casos ilustrativos foram as mortes do
músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de material reciclável Luciano
Macedo, fuzilados com mais de 200 tiros durante ação de soldados do Exército no
Rio de Janeiro, em 2019.
Oito envolvidos foram condenados pela
Justiça Militar, em 2021. Note-se, entretanto, o placar apertado (3 votos a 2)
e a temeridade de se permitir, no regime democrático e republicano, que um crime
praticado por militares contra civis seja julgado por oficiais da ativa que,
muitas vezes, não possuem formação na área do direito.
Já passou da hora de restringir as cortes militares. Faria bem ao STF e ao Congresso revisitar a ideia basilar de que a Justiça, além de equidistante, não deve usar farda.
A ofensiva contra as agências reguladoras
O Estado de S. Paulo.
Não surpreende essa batalha que une
Centrão, bolsonarismo e lulopetismo.
As agências reguladoras estão sofrendo
múltiplos ataques. Já no primeiro dia do novo governo Lula, a Medida Provisória
(MP) 1.154 desmembrou a Agência Nacional de Águas (ANA) e transferiu sua função
de regular o saneamento básico ao Ministério das Cidades. A manobra é eivada de
ilegalidades, a começar pelo fato de que a competência da ANA foi instituída
pelo Marco do Saneamento e só pode ser alterada por lei.
Mas o balão de ensaio aguçou apetites. Uma
emenda “jabuti” (n. 54) à MP propõe retirar das 11 agências a autonomia para
regular e editar atos normativos, restringindo-as à fiscalização de contratos.
As regras passariam a ser determinadas por “conselhos” subordinados aos
ministérios, em tese formados por membros do governo, do setor regulado e dos
consumidores. Na prática, a escolha e a manutenção dos conselheiros estariam ao
arbítrio do governo e seus aliados políticos, esvaziando a razão de ser das
agências: regular o setor através de uma gestão isenta pautada por critérios
técnicos.
As agências foram criadas na década de 90,
quando a gestão FHC promoveu a transição do Estado empresário para o Estado
regulador. A ideia de fundo é que serviços públicos não precisam ser prestados
por empresas estatais, mas podem sê-lo por empresas privadas, desde que atendam
ao interesse público. E, de fato, a experiência mostra que eles tendem a ser
mais bem prestados pela iniciativa privada, que, em geral, conta com mais
capacidade técnica e financeira.
Para garantir o interesse público, era
fundamental que os serviços prestados pelas concessionárias seguissem regras
determinadas por autarquias técnicas e equidistantes do poder concedente, das
empresas reguladas e dos consumidores. A autonomia funcional, decisória,
administrativa e financeira é crucial para evitar a distorção das regras por
grupos de pressão – especialmente das duas partes fortes da tríade, os enclaves
político-partidários e os grandes grupos econômicos – e garantir a estabilidade
e a transparência que fomentam a competitividade e atraem investimentos.
Nesse arranjo, o Legislativo é responsável
pelas leis do setor; o Executivo, pelo planejamento setorial e pela
implementação de políticas públicas; e as agências, por decidir assuntos de
natureza técnica, dentre os quais a regulação econômica e a resolução de
conflitos a ela associados. Os diretores, indicados pelo Executivo e aprovados
pelo Legislativo, têm de comprovar qualificação técnica; respeitar quarentenas
em relação à atuação política e empresarial; têm mandato fixo e autonomia decisória;
e são obrigados a prestar contas ao Legislativo.
O PT sempre foi hostil às agências. Nas
gestões lulopetistas elas foram enxovalhadas por tentativas de ingerência
política, loteamento partidário, asfixia orçamentária e vacâncias prolongadas
das diretorias, a tal ponto que o Congresso estabeleceu em 2019 uma lei para
blindá-las desse desvirtuamento.
Mesmo assim, com seus aliados do Centrão,
Jair Bolsonaro tentou de todas as formas restringir a independência das
agências. Quando não conseguia, caracteristicamente apelava ao constrangimento
pessoal de seus diretores. Deus sabe quando os brasileiros teriam acesso às
vacinas para a covid se a visão do PT tivesse prevalecido e Bolsonaro pudesse
exercer todo seu arbítrio sobre a Anvisa.
As agências, em resumo, representam uma
barreira institucional ao partidarismo, ao patrimonialismo e ao corporativismo.
É exatamente isso que irrita tanto as falanges políticas fisiológicas e
clientelistas quanto as ideológicas e autoritárias. Não surpreende que o
Centrão, o lulopetismo e o bolsonarismo cerrem fileiras no intuito de
esvaziá-las. Tal como com outros marcos projetados para garantir que políticas
de Estado não estarão submetidas aos apetites imediatistas e paroquiais dos
governantes de turno e de grupos econômicos a eles associados – como a Lei das
Estatais, a Lei de Responsabilidade Fiscal ou a independência do Banco Central
–, a batalha contra as agências é só uma das frentes da grande guerra pela
perpetuação do capitalismo de compadrio.
O governo ‘fraco’ abriu para negócios
O Estado de S. Paulo.
Mal começou, governo Lula admite não ter
base sólida e quer driblar a lei para liberar R$ 3 bi em emendas a deputados
que não teriam direito a elas; eis o modo petista de governar
Segue vivíssima na cabeça do presidente
Lula da Silva a ideia segundo a qual a construção de uma base de apoio ao
governo no Congresso pode prescindir da negociação política em torno de
projetos e se dar por meio da relação mercantil com parlamentares oportunistas
dispostos a vender seus votos por dinheiro. “O uso do cachimbo entorta a boca”,
diz o provérbio. Ao que parece, as lições dos escândalos do mensalão e do
petrolão, durante o mandarinato lulopetista, e do orçamento secreto, urdido por
Jair Bolsonaro, não foram assimiladas nem pelos que compram nem pelos que
vendem convicções.
O Estadão revelou que o Palácio do Planalto
abriu para negócios e articula com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
maneiras de driblar a lei para garantir que 219 deputados federais de primeiro
mandato, empossados há poucos dias, possam dispor de cerca de R$ 3 bilhões do
Orçamento de 2023 em emendas parlamentares, algo em torno de R$ 13 milhões para
cada deputado.
De acordo com a lei, esses parlamentares
não têm direito de indicar nem um centavo em emendas para suas bases eleitorais
em 2023. A razão é simples: o Orçamento de 2023 foi elaborado no ano passado.
Os 219 novatos, portanto, só poderão indicar emendas ao Orçamento de 2024, a
ser elaborado pela nova legislatura.
Mas, ao que parece, essa vedação legal
elementar é apenas um detalhe diante da urgência do governo Lula de criar uma
base de apoio para aprovar projetos de seu interesse e da necessidade de Arthur
Lira de retribuir todos os 464 votos que garantiram sua reeleição para a
presidência da Câmara por um placar recorde. Caso clássico de cortesia com
chapéu alheio.
As tratativas são tão escancaradas que nem
um petista de quatro costados, como o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), um dos
possíveis beneficiários do acerto, faz questão de esconder seus propósitos. “Se
o governo estivesse forte”, disse Tatto ao Estadão, “poderia não dar (emendas)
para os novos. Mas tem uma reforma tributária, não dá para pagar para ver. Se
não for esse valor (R$ 13 milhões por deputado), uma parcela significativa vai
ter.”
Ainda não se sabe exatamente de que forma,
do ponto de vista técnico, os deputados novatos serão agraciados com os R$ 3
bilhões do Orçamento de 2023, mas, a julgar pela disposição dos petistas,
alguma “mágica” será feita. Ninguém duvida.
Se o governo é “fraco”, como admitiu o
deputado petista, porque os eleitores não elegeram parlamentares alinhados
ideológica e programaticamente ao presidente da República, o correto – e
republicano – seria o presidente Lula apresentar ao País um programa de governo
digno do nome e despachar seus emissários políticos para negociar a construção
de maiorias com o Congresso. É assim que funciona, ou deveria funcionar, o
presidencialismo de coalizão, um regime tão característico do País.
Numa democracia, é legítima a divisão de
poder entre forças políticas representativas da sociedade, seja por meio da
distribuição de cargos na administração pública direta e indireta, seja pela
disposição de recursos do Orçamento da União. Mas essa negociação,
evidentemente, tem de se pautar pelo respeito às leis e à Constituição, além de
ser orientada pelo interesse público.
O ministro das Relações Institucionais,
Alexandre Padilha, confirmou ao Estadão a existência de tratativas entre o
governo e a presidência da Câmara para liberar recursos do Orçamento de 2023
aos deputados recém-empossados. “Se (os novatos) tiverem bons projetos, boas
propostas”, disse Padilha, “podem ser contemplados pelo governo.” Como sempre,
o PT julga que os fins justificam os meios: se os projetos forem “bons” (para
quem, não se sabe) e se os parlamentares premiados votarem com o governo, dá-se
um peteleco na lei e no interesse público.
A abertura desse balcão de negócios com
pouco mais de um mês de governo é bastante ilustrativa da visão desvirtuada de
Lula e do PT sobre a natureza da relação entre os Poderes Executivo e
Legislativo. Indica também como alguns parlamentares, logo no primeiro mandato,
já se mostram dispostos a colocar seus interesses paroquiais acima das leis e
de uma agenda de reconstrução nacional.
A persistência da fome
O Estado de S. Paulo.
Pela terceira vez desde 1975, Campanha da
Fraternidade aborda a fome, prova do fracasso do País
Em 2023, a Campanha da Fraternidade da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) será dedicada à fome. É uma
resposta à calamidade que se disseminou após a recessão, a pandemia e a guerra
na Ucrânia. Mas tanto quanto essa escalada é dolorosa, é vergonhosa a
resiliência da fome. É a terceira vez, desde 1975, que a Campanha da CNBB se vê
obrigada a apelar aos corações e mentes dos brasileiros contra a fome.
Em uma teoria bastante popular sobre o
desenvolvimento pessoal, o psicólogo Abraham Maslow sugere uma hierarquia com
três escalas de necessidades. Primeiro, as fisiológicas: comida, água, abrigo,
repouso. Depois, as psicológicas: pertencimento, amor, estima. Finalmente, as
espirituais: a satisfação de todo potencial e criatividade individual. Em que
pesem as matizações a esquemas como esse, é intuitivo que um indivíduo não pode
se motivar plenamente para realizações mais elevadas enquanto estiver lutando
pela mera subsistência.
O Brasil é um dos países mais violentos do
mundo, em que 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e 100 milhões
ao esgoto. Nos últimos sete anos a fome dobrou e, segundo a ONU, fustiga 15,4
milhões de brasileiros.
A fome choca por três paradoxos: primeiro,
o de um país que é, a um tempo, “celeiro do mundo” e curral de famélicos;
segundo, entre a quantidade de comida que falta nos pratos e a que apodrece nos
lixos – o Brasil desperdiça um terço de seus alimentos –; terceiro, o de uma
escalada da fome concomitante a uma escalada da obesidade. Mais do que
contradições insolúveis, esses fatos refletem um contraste entre a carência e a
abundância que pode ser solucionado se reduzindo a distância entre os extremos,
no primeiro caso, com mais renda; no segundo, com mais inteligência; no
terceiro, com mais solidariedade.
O Estado tem a função de garantir condições
para o crescimento econômico, e, logo, ao melhor remédio contra a fome: o
emprego. Mas respostas emergenciais são indispensáveis através do
robustecimento e racionalização de programas assistenciais. A cadeia de
produtores, vendedores e consumidores de alimentos tem o desafio de buscar
soluções para reduzir o desperdício.
Sem prejuízo disso tudo, é preciso cultivar
a filantropia. Isso está ao alcance de cada um, se não doando dinheiro, doando
tempo; se não para instituições filantrópicas, ajudando o próximo em agonia.
Segundo o World Giving Index, desde a pandemia o Brasil subiu da 54.ª para a
18.ª posição no ranking de filantropia. Mas claramente isso ainda não foi
suficiente. Ainda há para cada brasileiro um imenso potencial inexplorado para
satisfazer a maior de todas as realizações humanas: o amor ao próximo.
Há que se indignar com os fracassos do Estado: os cidadãos dão seus votos e recursos para que seus direitos sejam satisfeitos, e o mais importante é o direito à vida digna. Enquanto houver uma só vida ameaçada pela fome, é preciso cobrar. Mas a indignação não encherá a barriga do seu próximo aqui e agora. A esperança no Estado é justa, mas, parafraseando um apóstolo, a esperança sem obras é morta.
Com pressão de comida e serviços, inflação
cai devagar
Valor Econômico
Lula tem pressa e prefere disputas
ideológicas, o que pode por tudo a perder e fazer a inflação disparar
A inflação está caindo vagarosamente, como
mostra o IPCA de janeiro, de 0,53%, ou 5,77% em doze meses (5,79% em dezembro),
o que torna difícil ao Banco Central reduzir com rapidez os juros, como querem
ideólogos do PT e o presidente da República. A média dos núcleos do IPCA, que
excluem elementos voláteis, recuou pouco, de 9,12% para 8,73% (MCM), e seis das
nove classes de despesas avançaram no índice de janeiro em relação ao de
dezembro.
Ainda que se ignore a situação fiscal,
grave para alguns, indiferente para outros, seria necessário levar em conta as
origens das pressões inflacionárias, que adviriam de escassez de oferta,
excesso de demanda ou as duas. Hoje ainda há ainda um mix de ambas, mas
predominam os efeitos de mais de R$ 300 bilhões de estímulos fiscais e
parafiscais eleitoreiros do governo Bolsonaro, acrescidos dos R$ 167 bilhões da
PEC de Transição patrocinada por Lula, antes da posse. A contribuição de
quebras de oferta pesa, especialmente em alimentos, mas já foi mais relevante
logo em seguida à pandemia.
A trajetória da inflação até agora não é
amigável. Combustíveis jogaram papel determinante na disparada do IPCA e,
depois, em sua queda. Bolsonaro mexeu nos impostos federais e o Congresso,
também nos estaduais, para reduzir seus preços. O governo Lula, até segunda
ordem, vai retirar a desoneração em fevereiro, em um momento em que a
influência dos itens monitorados deixou de ser deflacionária e inverteu o sinal
em janeiro (0,72%).
A projeção do BC para os preços
administrados é de 10,6% no ano, de acordo com a ata do Copom, e seu peso no
IPCA é de cerca de 25%. Se o BC estiver certo, os administrados preencherão 2
pontos percentuais de uma meta de 3,25%, que não deverá ser atingida pelo
terceiro ano consecutivo. Não há problemas de oferta interna de combustíveis ou
energia, mas eles seguem as voláteis cotações internacionais, que flutuam ao
sabor de estoques e demanda, por sua vez influenciadas pelos fatores
geopolíticos, como a guerra na Ucrânia.
O propulsor maior da inflação no IPCA são
os alimentos, que variaram 11% em doze meses e 0,59% em janeiro. O excesso de
chuvas agora, como a falta de chuvas antes do fim do ano, provocaram altas
expressivas. Se o tempo não pregar peças, uma safra abundante deve derrubar o
custo da comida, a menos que os preços das commodities disparem ou o real se
desvalorize muito, o que ocorreu no passado e influiu no IPCA com mais
constância do que o previsto. Essa combinação é traiçoeira e pode ter levado o
BC a prever que a alta da inflação seria provisória. Após a Rússia invadir a
Ucrânia, o diagnóstico foi abandonado.
A inflação de serviços, totalmente
dependente do compasso da demanda interna, preocupa. A evolução em doze meses
mostra persistência. Em janeiro, foi de 7,8%, ante 8,1% em outubro. Sem que a
economia esfrie mais, a pressão de preços não recuará. Contribuem para
mantê-la, porém, o aumento para R$ 600 mensais do Auxílio Brasil e a promessa,
que deve se efetivar em breve, de aumento real do salário mínimo.
O conflito entre política monetária e
política fiscal se acirrou com as diatribes de Lula contra o BC. A prevalência
da posição do governo pode piorar o cenário inflacionário, não só pelas
expectativas, que estão em alta. Em julho, agosto e setembro de 2022 o IPCA foi
deflacionário, o que não deve ocorrer agora e o índice pode subir. Como a
economia deve crescer, ainda que pouco, a inflação vai girar em torno de 6%.
Mudar a meta de inflação no ano corrente
não terá efeito. Mantendo os juros em 13,75%, o IPCA projetado é de 5,5% o que,
mantendo-se o intervalo das metas, exigiria um centro de 4% e margem de
flutuação de 1,5 ponto percentual. Isto é, no ano corrente, a inflação está
praticamente dada.
A ofensiva do governo para reduzir os
juros, para ter efeitos, ainda que efêmeros, exige forte redução da Selic, o
que arranharia a credibilidade do BC. Se o pragmatismo de Lula prevalecesse,
seria melhor executar um programa de gastos contido, reduzindo estímulos e
ajudando a política monetária a fazer seu serviço. A perspectiva do Focus,
afinal, era de um corte para 12% da Selic, abrindo espaço a crescimento maior
em 2024.
Com ajuda da política fiscal, reforma
tributária e queda da inflação, que se reforçariam pela valorização do real, as
perspectivas de uma retomada segura estariam no horizonte. Lula tem pressa e
prefere disputas ideológicas, o que pode por tudo a perder e fazer a inflação
disparar.
Bolsonaro "esvaziou os órgãos de fiscalização e implantou políticas lenientes com o garimpo ilegal, origem da tragédia humanitária. Será difícil para as autoridades comprovar que essa era a intenção dele ou de qualquer integrante de seu governo. Mas isso não significa que a hipótese não deva ser investigada."
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