terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Rio mostrou como fazer um carnaval com competência

O Globo

Disciplina, organização e limpeza nos desfiles de escolas e nos blocos tornaram a folia um sucesso

Depois de dois anos de recesso forçado pela pandemia, e mesmo com as expectativas infladas pela retomada da folia, pode-se dizer que o Rio saiu do carnaval deste ano com nota alta em todos os quesitos. Até o último domingo, o país foi tomado por multidões eufóricas atrás de blocos e trios elétricos, fazendo a alegria não só de foliões, mas também de empresários, comerciantes, ambulantes, empreendedores, prefeitos, governadores, de todos aqueles que dependem da festa de alguma forma. Ao contrário do que supunham as expectativas pessimistas criadas em cima de um histórico de derrapadas, desta vez a organização não decepcionou.

Os temidos problemas de infraestrutura — não só para os que desfilam, mas especialmente para os que sofrem o impacto direto dos cortejos — felizmente foram mínimos. No Rio, foi notável o trabalho do “bloco” da Companhia de Limpeza Urbana (Comlurb). A varrição entrava em cena tão logo os foliões saíam, impedindo que o lixo se acumulasse pelas ruas — um desafio e tanto se lembrarmos que, ao longo do mês, 355 blocos de rua tomaram a cidade, dois deles superando a marca do milhão de foliões (Cordão da Bola Preta e Fervo da Lud, ambos no Centro). Segundo a Riotur, 5 milhões saíram nos blocos.

Levando em conta o gigantismo dos megablocos, o número menor de desfiles em relação a 2020 também contribuiu para melhorar a organização e permitir que a infraestrutura montada desse conta da demanda. O acompanhamento da polícia e o respeito às restrições de horário e local possibilitaram que a população se planejasse, reduzindo o transtorno.

Os desfiles das escolas de samba do Rio e de São Paulo foram de alto nível, com temas criativos e atuais, confirmando a excelência das agremiações. A organização também passou no teste. No Sambódromo carioca, onde reinou a Imperatriz Leopoldinense com um inventivo enredo sobre Lampião, não causaria surpresa se o campeonato ficasse com Viradouro, Vila Isabel, Beija-Flor ou Grande Rio, todas fortes concorrentes. Na festa paulistana, saiu vitoriosa a Mocidade Alegre, que conquistou seu 11º título com um cativante enredo sobre o primeiro samurai negro. Saíram ganhando o samba e a cultura brasileira.

Claro que ainda há pontos a melhorar. Um deles é a segurança. Por todo o país houve relatos de furtos de celulares e golpes contra os foliões. As autoridades devem aproveitar as boas experiências, como uso de drones, torres de observação e detectores de metais durante os cortejos, e repeti-las. São úteis não só no carnaval, mas em qualquer evento com multidões.

Não se pode perder de vista que o carnaval é uma festa que faz girar a economia de cidades como Rio, Salvador, Recife, Olinda, São Paulo e Belo Horizonte. Os desfiles de escolas de samba ou de blocos são apenas o último ato de um roteiro que começa um ano antes e emprega milhares de brasileiros, seja na confecção de fantasias e alegorias, seja na preparação da infraestrutura para atender foliões e turistas.

O êxito do carnaval de 2023 foi um bálsamo. Demonstra que organização e disciplina não são incompatíveis com ruas tomadas pela alegria e pelo samba. Ao contrário, foi o profissionalismo que permitiu ao Rio, entre outras cidades, cumprir o que previu editorial do GLOBO no início do mês — e fazer o maior carnaval dos últimos tempos.

Projeto de trem-bala São Paulo-Rio precisa ser examinado sem paixões

O Globo

Decisão da ANTT levanta suspeitas, mas seria sensato elaborar um plano sério de incentivo à ferrovia no Brasil

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) aceitou na semana passada o pedido de uma empresa privada, a TAV Brasil, para retomar o projeto de uma linha ferroviária de alta velocidade entre Rio e São Paulo. Dado o histórico da iniciativa desde que a ideia foi lançada, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é compreensível a controvérsia. O assunto, no entanto, merece análise livre de paixões.

Como meio de transporte, trens são menos nocivos ao ambiente que aviões. Emitem um quinto do carbono liberado por aeronaves, levando em conta o número de passageiros transportados por quilômetro. Também são menos poluentes que ônibus (menos da metade). Com o mundo correndo para combater as mudanças climáticas, trens de alta velocidade podem ser a melhor alternativa ambiental.

A primeira linha de trem-bala foi inaugurada no Japão em 1964, ligando Tóquio a Osaka. Na década de 1980, a França foi, com os famosos TGVs, o primeiro país da Europa a investir nas ferrovias de alta velocidade, depois disseminadas pelo continente. Hoje o primeiro no ranking global é a China, com 40.474 quilômetros de linhas em operação. A Espanha, em segundo, tem 3.661 quilômetros, à frente do Japão.

Trens de alta velocidade são comuns em países ricos, mas não exclusivamente. Além da China, a Turquia, outro país de renda média como o Brasil, tem mais de mil quilômetros de linhas do tipo, segundo a International Union of Railways. O pobre Marrocos, com renda per capita bem inferior à brasileira, conta com 186 quilômetros.

Não é absurdo considerar trens de alta velocidade como opção de transporte num país com as características do Brasil. O que ninguém pode esquecer é a ficha corrida do projeto do trem-bala brasileiro. Quando a ideia nasceu, em 2004, em vez de fazer um estudo realista do ponto de vista do mercado, a missão foi atribuída ao Estado. À medida que o tempo passava, a estimativa dos custos e dos subsídios necessários só aumentava, sem que a demanda justificasse o investimento. Dez anos depois, a então presidente Dilma Rousseff declarou que o assunto deixara de ser prioridade, mas a estatal criada continuava a consumir milhões todo ano.

A discussão atual tem a vantagem de se dar em torno de uma empresa privada, mas há inúmeras questões sem resposta, que justificam as suspeitas. A TAV Brasil tem capital de meros R$ 100 mil e não explicou como financiará os cerca de R$ 50 bilhões necessários à obra. Não há notícia de parceria com companhias estrangeiras nem ideia de um projeto executivo. Tudo o que se sabe é a intenção de construir uma linha de 380 quilômetros. Seria absurdo se ela não conectasse as regiões centrais das duas metrópoles. De nada adiantará se o transporte da estação ao centro durar mais que a viagem.

Falta muito para o projeto ter o mínimo de seriedade. Se o plano da empresa é buscar recursos públicos, é possível que o governo Lula se sinta tentado a cair na arapuca. Seria lamentável. O mais sensato seria elaborar um plano sério de incentivo à ferrovia no Brasil.

O perigo do arbítrio

Folha de S. Paulo

Cabe à Justiça decidir o que é ilegal nas redes; mais regulação rumará à censura

Há sólido acúmulo de experiência histórica a desrecomendar que regimes democráticos restrinjam a expressão dos cidadãos. O alerta é útil quando o Brasil discute regular conteúdos dos meios digitais.

Sob a virtuosa intenção de prevenir a repetição do vandalismo golpista de 8 de janeiro, autoridades propugnam pelo endurecimento das regras da internet. A ideia, a ser esmiuçada em proposta legislativa, é induzir as empresas proprietárias a removerem conteúdo ilegal a despeito de ordem judicial.

Nesse ponto começam as dificuldades, que transformam a tarefa de tentar banir as incitações subversivas dentro dos marcos democráticos em algo próximo de uma aporia, um problema sem solução.

Nesses regimes, cabe só à Justiça decidir o que é ilegal, percorridos o devido processo e o amplo contraditório. Cidadãos e organizações privadas, em matéria discursiva, podem no máximo ter suas interpretações particulares, sujeitas a variação e controvérsia legítima, sobre o que viola as normas.

A fim de contornar essa barreira, os legisladores poderão cogitar a criação de comitês administrativos para arbitrar o conteúdo veiculado pelas plataformas. Abririam, nessa hipótese, uma porteira para intromissões abusivas e censoras no direito à expressão.

Por isso a melhor fórmula que as sociedades abertas encontraram para o dilema de discernir entre liberdade de exprimir-se, de um lado, e o discurso de incitação ao crime, do outro, é punir aqueles casos em que o autor tem condições de dar causa ao dano que promove.

Não se concebe, nesse modelo, facultar a um órgão do Executivo decidir o que deveria sair do ar. É preciso que os argumentos das partes tramitem no processo judicial regular. Previne-se a repetição desses crimes pela aplicação da pena aos delinquentes, não pela censura.

Muito mais efetivo do que qualquer tentativa de regular o que se diz nas redes será as autoridades investigativas e de persecução penal chegarem aos mandantes da depredação de 8 de janeiro. Já passa da hora de dar fim a prisões preventivas que carecem de justificativa e processar os envolvidos.

Seria de todo modo inútil proibir a circulação de ideias estúpidas, porque elas encontrariam escaninhos alternativos para se disseminar. É melhor deixar que a luz do Sol e o debate público as estiolem.

Perde-se, ademais, o foco do que faz sentido regulamentar. No caso das redes digitais, fica em segundo plano a grande distorção assentada no poder desproporcional de mercado das chamadas big techs.

A legitimidade que o Estado não tem para intrometer-se na expressão dos cidadãos ele a tem assegurada para defender os pilares da concorrência na economia.

Aposta de baixo risco

Folha de S. Paulo

Lula tem pouco a perder ao sugerir proposta de paz, mas deve conter megalomania

A política externa dos dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sempre dividiu opiniões. Para apoiadores, o petista presidiu o período de maior prestígio internacional do Brasil; já críticos apontavam megalomania em iniciativas inatingíveis para a musculatura política do país.

Com a devida dosimetria, ambas as assertivas são corretas. O boom das commodities dos anos 2000 favoreceu a posição brasileira e ajudou a inserir o país no conceito então emergente de Sul Global.

Grosso modo, trata-se de parcerias fora da esfera ocidental, liderada pelos Estados Unidos. Daí surgiram iniciativas como o Brics, com Rússia, Índia, China e África do Sul, que faziam sentido à época.

Grassava, contudo, um certo antiamericanismo pueril, o apoio a ditaduras esquerdistas amigas e propostas nas quais o Brasil acabou isolado —como o malfadado acordo nuclear com o Irã.

Desde que assumiu o poder pela terceira vez, Lula busca recolocar o Brasil no radar. Condições objetivas existem: o exílio voluntário do país sob o obscurantismo de Jair Bolsonaro (PL) traz uma vantagem agora, e o peso relativo brasileiro nas questões climáticas municia o petista de saída.

Fiel a seu estilo, ele palpitou sobre o maior problema geopolítico atual, a guerra na Ucrânia, mas de forma a não se comprometer.

Em vez de um elaborado plano, inexequível porque nem a agressora Rússia nem a agredida Ucrânia estão em um ponto de desgaste que as obrigue a negociação, Lula simplesmente disse que todos deveria sentar-se a uma mesa comandada por países neutros.

Como diz o Itamaraty, é uma proposta inicial, não alguma panaceia tropical a ser ofertada aos beligerantes. Até por isso, foi elogiada tanto em Moscou quanto em Kiev.

Além do estágio do conflito iniciado há um ano, a questão mais imediata é a China, país que, como a Índia e o Brasil, seria partícipe natural do tal "clube da paz".

Antagonista de Washington, Pequim é vista como parcial devido à aliança com Moscou —e até mesmo o vago plano de paz apresentado pelos chineses foi prontamente rejeitado no Ocidente.

Isso dito, ao contrário do que ocorreu no fiasco de 2010 com o Irã, o custo político de a ideia brasileira não prosperar é baixíssimo. E qualquer avanço que possa levar o nome do mandatário brasileiro, ainda que de forma indireta, terá sido um sucesso inaudito.

O Brasil não está sob ditadura judicial

O Estado de S. Paulo.

Não há prisões políticas nem ditadura do STF, como alegam bolsonaristas. Há lei no País, seja para corrigir eventuais erros processuais, seja para punir crimes praticados no 8 de Janeiro

O bolsonarismo despreza os direitos humanos, é contrário à figura do juiz de garantias, propõe eliminar a audiência de custódia e defende a impunidade para crimes praticados por policiais no exercício da profissão. Ao longo dos últimos anos, tem sido o grande catalisador das principais ideias equivocadas sobre o sistema de Justiça. No entanto, quando seus aliados estão envolvidos em problemas com a Justiça, a equação se inverte. O devido processo legal e a imparcialidade do juiz tornam-se prioridades. Existentes desde os inquéritos das manifestações antidemocráticas, as críticas bolsonaristas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) subiram de patamar depois do 8 de Janeiro. Teria sido instaurada, nada menos, que uma “ditadura judicial” no País.

“No Brasil, temos presos políticos. Mais do que na Venezuela, na Bolívia e no tempo do regime militar”, discursou, sem corar, a deputada Bia Kicis (PL-DF). O deputado Carlos Jordy (PL-RJ) chamou as prisões das pessoas envolvidas na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes de “lulags”, neologismo com o nome do presidente Lula da Silva e os “gulags”, campos de trabalho forçado da União Soviética. Já o deputado General Girão (PL-RN) qualificou a situação de “Guantánamo brasileira”, em referência à prisão mantida pelos Estados Unidos em Cuba.

O direito de discordar do Judiciário, seja em que esfera for, integra as liberdades fundamentais, além de contribuir para seu melhor funcionamento. Não existe exercício imaculado do poder, e é muito positivo que Executivo, Legislativo e Judiciário se sintam cobrados e admoestados – ainda mais em situações novas, que exigem respostas inéditas do poder estatal e o risco de errar é maior. O caso do 8 de Janeiro é absolutamente excepcional, ao envolver milhares de pessoas, tipos penais novos e agressões nunca antes vistas às instituições democráticas.

Se o Estado já tem sérias dificuldades de respeitar os direitos fundamentais de pessoas investigadas em casos corriqueiros, seria ingenuidade achar que, nessa situação particular, o poder estatal se comportaria de modo diferente, oferecendo uma atuação perfeita, sem nenhum excesso ou exagero. Seja como for, é preciso exigir do poder público plena aderência à lei, sem transigir com eventuais medidas ilegais ou mal fundamentadas. Por exemplo, este jornal já criticou em editorial o modo como foram realizadas as audiências de custódia relativas aos atos do 8 de Janeiro (ver A defesa da democracia dentro da lei, 19/2/2023). A decisão sobre a necessidade de manter a prisão preventiva não foi tomada pelo magistrado que fez a audiência e teve contato com o preso. Prisão sempre exige avaliar as circunstâncias concretas de cada pessoa.

É preciso discernimento. Diante do grande número de pessoas envolvidas, é provável que haja prisões preventivas em desacordo com os requisitos legais. Elas devem ser revogadas o quanto antes, seja pelo ministro Alexandre de Moraes, seja pelo colegiado da Corte – que não deve ter receio de suspender alguma decisão do relator, quando assim for necessário. Mas eventuais equívocos e exageros – que infelizmente são coisas habituais na Justiça brasileira, como se observa, por exemplo, pelos muitos habeas corpus que são concedidos pelo STF – não transformam as pessoas envolvidas nos atos do 8 de Janeiro em presos políticos.

Essas pessoas estão sendo investigadas por ações contrárias ao Código Penal, e não em razão de expressarem uma orientação política específica. A ilustrar que não se trata de perseguição política do Supremo, a própria Procuradoria-Geral da República (PGR) já denunciou por crimes concretos centenas delas, que terão oportunidade, dentro do processo penal, de exercer seu direito de defesa.

O sistema de Justiça penal é imperfeito – e o bolsonarismo lutou e luta arduamente para piorá-lo. Mas isso não autoriza dizer que inexiste, no País, respeito às liberdades política e de expressão. Há caminhos institucionais para correção de erros judiciais. O que não há é autorização para cometer crimes impunemente. A lei vale para todos.

O agro é tech

O Estado de S. Paulo.

Nas últimas décadas, País passou de beneficiário de tecnologias a pioneiro, com ganhos de produtividade e sustentabilidade. Mas há desafios para que essa revolução seja inclusiva

Na cultura popular, o campo é associado ao passado; as cidades, ao futuro. Na área tecnológica, em especial, a indústria é vista como o espaço da inovação e a agropecuária, como o da tradição, quando não do atraso. Mas o agronegócio brasileiro desmente radicalmente esses estereótipos.

Nas últimas décadas, a agropecuária tem sido uma ilha de excelência em termos de crescimento da produtividade, seja comparada a outros setores da economia nacional, como indústria e serviços, seja comparada à agropecuária de outros países.

Em duas ou três gerações, o Brasil passou de importador de alimentos a um dos maiores exportadores do mundo, em vias de se tornar o maior. Entre 2011 e 2020, por exemplo, enquanto o setor de serviços cresceu apenas 1,5%, a indústria encolheu 12,8% e o PIB, como um todo, 1,2%, a agropecuária cresceu 25,4%. Entre 2006 e 2017, enquanto a média de crescimento anual da agropecuária dos maiores competidores do Brasil, os EUA e a China, foi de, respectivamente, 1,9% e 3,3%, no Brasil foi de 4,3%.

Essa história de sucesso, que tem muito a ensinar a outros setores, foi calcada em empreendedorismo, reformas econômicas (como a liberalização do mercado), políticas públicas (como as de crédito e fomento), parcerias público-privadas e, acima de tudo, inovação e tecnologia.

Ao longo da chamada “Revolução Verde”, que desde os anos 60 introduziu técnicas como a alteração genética de sementes, fertilizantes químicos, irrigação controlada e novos métodos de mecanização, o Brasil começou como um dos grandes beneficiários e se transformou gradualmente num dos grandes pioneiros. O Cerrado, em especial, deixou de ser uma região pouco apropriada para a agricultura em razão da acidez do solo para se transformar num dos maiores polos globais de produção de soja. Como mostrou reportagem do Estadão, tornou-se corriqueira, por exemplo, a colheita de três safras de grãos por ano.

Ao assumir um papel de vanguarda nessa revolução, o Brasil contribuiu para reduzir a pobreza, a insegurança alimentar, a mortalidade infantil, as emissões de gases de efeito estufa e o uso de terras para a agricultura. Mas essa explosão de eficiência trouxe também seu ônus: o esgotamento e a erosão do solo, alterações nos ecossistemas, desmate e priorização da estrutura latifundiária em detrimento da produção familiar, impulsionando o êxodo rural.

Assim, aos triunfos da produtividade se somaram os desafios da sustentabilidade. Também nesse âmbito o Brasil tem sido pioneiro, aprimorando técnicas como a integração lavoura pecuária e promovendo a agricultura de precisão através de tecnologias digitais como a Internet das Coisas, a robótica, sensores meteorológicos, Big Data e computação em nuvem, ou a agricultura vertical.

Ainda há, contudo, entraves a serem eliminados, notadamente a infraestrutura precária de internet, ainda não acessível a todos os produtores, em especial os pequenos. Se essas deficiências não forem vencidas, há o risco de aumentar o abismo entre pequenos e grandes produtores, perdendo-se uma janela de oportunidades para reduzir a desigualdade nacional.

No campo das políticas públicas, além de melhorias gerais no ambiente de negócios e na infraestrutura, é preciso fortalecer incentivos, focando em crédito para projetos que incorporem inovações tecnológicas, técnicas gerenciais e práticas ambientais. Incentivos diretos à inovação envolvem a promoção da pesquisa e cooperação transversal entre diversos setores, especialmente robustecendo a capacidade de colaboração da Embrapa. Para que sejam socialmente sustentáveis, essas medidas devem ser combinadas a políticas de capacitação e assistência técnica às pequenas propriedades rurais familiares.

Ao contrário da trajetória de degradação da indústria que precisa ser revertida, o agro brasileiro já vive um ciclo virtuoso. Se for potencializado, a agropecuária pode ser ainda mais sustentável, criar mais empregos e aumentar rendas nas zonas rurais, exportando para o mundo um modelo de produtividade e sustentabilidade.

Fins legítimos; meios, nem tanto

O Estado de S. Paulo.

Indefinição do caso Marielle é vergonhosa, mas não autoriza ministro da Justiça a atuar além dos limites da lei

Passados quase cinco anos do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, é vergonhoso, revoltante e entristecedor que o Brasil ainda desconheça quem foram os seus mandantes. O quinquênio da pergunta “quem matou Marielle?” é um péssimo agouro para as legítimas expectativas em ver o caso finalmente esclarecido. Um crime levado a cabo tão covardemente e, ao que tudo indica, pelos motivos mais desprezíveis, merece ter um destino diametralmente oposto ao da fria inconclusão.

Seguramente imbuído de nobres intenções e da esperança de trazer energia renovada à já prolongada investigação conduzida pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, resolveu agir. Requisitou a abertura de inquérito policial à Polícia Federal, determinando que sejam investigadas todas as circunstâncias do crime em questão.

Não cabe aqui discutir o quão primordial é o esclarecimento do caso Marielle – o fim –, pois isso está no plano da mais absoluta evidência. Cabe, contudo, um alerta quanto às formas legais disponíveis a tanto – os meios. Há uma diferença fundamental entre o que é legítimo e o que é legal. São conjuntos nem sempre coincidentes. É certo que ao Estado cabe única e exclusivamente se mover dentro do que é legal. É a lei que o autoriza a agir. E ponto. Nenhuma conduta estatal poderá receber salvo-conduto simplesmente por, sob algum qualquer ponto de vista, ser qualificável como legítima, justa, valorosa. Para o Estado, não há legitimidade fora da arena da legalidade.

A requisição de abertura de inquérito policial dirigida pelo ministro Flávio Dino à Polícia Federal no Rio de Janeiro, de um lado, esbanja legitimidade, mas, de outro, carece de legalidade. Não se nega que, dentre as suas atribuições, está a de requisitar a abertura de investigações pela Polícia Federal, desde que se trate de crime federal, o que não é o caso.

Se o esclarecimento do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes é um inafastável dever do Estado, não se pode, no entanto, atropelar regras legais de competência. Já se pretendeu a federalização do caso, para que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal pudessem conduzir as investigações, o que foi negado por unanimidade pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2020. Não se pode agora, por via transversa, fazê-lo sem amparo legal.

O exercício de uma competência por um agente estatal deve estar sempre sujeito à lei. É a lei que, concedendo a competência, também estabelece sua medida e, assim, seus precisos limites, que existem justamente para conter o arbítrio e a tirania.

Não cabe transigir com a usurpação de competência mesmo diante da notória grandeza dos fins com vistas aos quais se exerce o poder. Eventual transigência com quem governa hoje abre espaço para o abuso de quem governará amanhã. É a lei – e só ela – que dá estabilidade aos limites de um poder que, não é demais lembrar, poderá sempre vir a mudar de mão, de ideologia e de intenções.

Turbulências e pretensões modestas na dívida mobiliária

Valor Econômico

Tesouro espera um horizonte mais favorável após a divulgação do novo regime fiscal e da reforma tributária

Administrar a dívida mobiliária federal tem sido desafiador para o Tesouro Nacional neste início de ano, como deve mostrar o relatório de janeiro a ser divulgado hoje. De um lado, as incertezas fiscais criadas pelas promessas de gastos sem previsão de receita para financiá-los, a inflação em alta e os juros em patamares elevados; e, do outro, a escalada das taxas internacionais está tornando os leilões de títulos mais incertos do que o habitual.

No início da segunda quinzena deste mês, o Tesouro vendeu apenas 79,2% dos títulos indexados ao IPCA (NTNs-B) e o lote integral de LFTs, corrigidas pela Selic, em meio ao recrudescimento das críticas do presidente Lula e de dirigentes do PT às taxas de juros e à política de metas de inflação. O leilão de prefixados, títulos geralmente comprados pelos estrangeiros, colocou 92,3% das LTNs e o lote integral das NTNs-F. Já na semana passada, quando houve apenas um leilão por conta do feriado de Carnaval, foram vendidas somente 67,3% das NTNs-F e todas as LTNs. A renovada perspectiva de elevação dos juros nos Estados Unidos teria afastado o investidor estrangeiro dos papéis brasileiros, assim como está reduzindo a presença do capital externo na bolsa.

Cálculos da Necton Investimentos mencionados pelo Valor (24/2) indicam que, se o ritmo de emissão de títulos do Tesouro Nacional dos últimos 12 leilões for mantido até o fim do ano, apenas 61% da dívida mobiliária vencida seriam renegociadas; e o colchão de liquidez seria esvaziado em R$ 509 bilhões, fechando o ano com R$ 666 bilhões. O valor é suficiente para cobrir 7,1 meses de vencimento, menos do que os 8,4 meses do fim de 2022, mas ainda assim acima dos três meses de limite considerado prudencial.

No ano passado, que já foi relativamente turbulento com gastos fiscais movidos pelos interesses eleitoreiros e as dúvidas geradas pelas eleições, 83% dos vencimentos foram renegociados. Foram rolados 91% dos papéis com taxa flutuante, 90% dos corrigidos por índice de preço e 73% dos prefixados. O colchão de liquidez, que começou o ano em R$ 1,186 trilhão, terminou R$ 10 bilhões menor, em R$ 1,176 trilhão, abastecido principalmente por R$ 95 bilhões de retorno de bancos públicos, R$ 73 bilhões de resultado do Banco Central, e R$ 87 bilhões em dividendos de estatais. O Tesouro não emitiu nenhum título no mercado internacional, pela primeira vez desde 2015. Ao fim do ano, a dívida mobiliária havia crescido 6% no período para R$ 5,95 trilhões, sem contar o R$ 1 trilhão girado diariamente em operações compromissadas pelo Banco Central (BC) para regular a liquidez.

Outros indicadores mostram a piora no perfil da dívida mobiliária brasileira. Entre o fim de 2021 e o mesmo período de 2022, os papéis com taxa flutuante aumentaram de 36,83% para 38,25% do total; e os vinculados a índice de preço, saíram de 29,3% para 30,3%. Já os prefixados diminuíram de 28,9% para 27%.

O prazo médio dos títulos ficou relativamente estável em 3,9 anos, depois de ter chegado perto de 4,5 anos em 2016. O percentual de títulos que vence em 12 meses aumentou de 21% para 22,1%.

Por outro lado, as medidas de contenção da inflação, com a redução dos impostos dos combustíveis e outros bens, contribuíram para diminuir o custo médio do financiamento do estoque da dívida mobiliária, que terminou o ano em 10,2% ao ano no acumulado em 12 meses, ainda assim acima dos 8,9% de dezembro de 2021.

O perfil dos investidores segue concentrado nos institucionais. Diminuiu ligeiramente a participação das instituições financeiras entre 2021 e 2022, de 29,5% para 29,1%. Houve uma redução maior dos não residentes, de 10,6% para 9,4%. Os fundos ficaram estáveis em 24%. Aumentou a participação a previdência, de 21,7% para 22,8%; e das seguradoras, de 3,9% para 4%.

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, considera normal a volatilidade no início de um novo governo. Talvez por isso as pretensões do Plano Anual de Financiamento (PAF) sejam modestas. Uma das principais diretrizes é manter o colchão de liquidez para aguentar os solavancos. Se dá como certo o aumento dos títulos de taxas flutuantes em detrimento dos prefixados, dada a perspectiva de manutenção dos juros em patamar elevado. O Tesouro espera um horizonte mais favorável para a dívida mobiliária federal após a divulgação do novo regime fiscal e da reforma tributária.

 

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