O Globo
As mentiras, as distorções e os exageros
apenas servem para reforçar as crenças que o público-alvo já tem
Muita gente acredita, à esquerda e à
direita, que nosso problema político fundamental é que estamos dominados por
máquinas de difundir mentiras. Esse diagnóstico parte do pressuposto de que
nossos juízos políticos, equivocados e inflamados, são forjados pelas mentiras
difundidas nas mídias sociais e nos aplicativos de mensagens. Mas será que
estamos consumindo mentiras e, a partir delas, formando juízos deturpados? Ou
tudo aconteceria no sentido contrário: só estamos aceitando as mentiras porque
temos um juízo inflamado prévio? Soluções muito diferentes são exigidas num e
noutro caso.
O leitor simpático a Bolsonaro pode fazer o exercício. Ele deve ter visto nos aplicativos de mensagem que um dos participantes da invasão do Congresso carregava uma bandeira do PT, outra tinha as chaves e entrou sem dificuldades no Palácio do Planalto. Para ele, os dois fatos mostram que o vandalismo na sede dos Três Poderes foi obra de esquerdistas infiltrados, tudo facilitado pelas autoridades petistas para justificar a repressão ao movimento popular. Agências de verificação demonstraram que a porta do Palácio do Planalto foi arrombada e que a bandeira do PT não era de um infiltrado, mas foi roubada por um bolsonarista do gabinete de um deputado de esquerda. Será que, confrontado com essa retificação, o bolsonarista médio muda o seu juízo? Provavelmente, não.
Sem sugerir que há simetria no emprego das
mentiras, convido o leitor simpático a Lula a também fazer o experimento. Ele
deve ter visto as imagens de bolsonaristas fazendo uma saudação nazista em São
Miguel do Oeste, em Santa
Catarina, e também deve ter visto bolsonaristas em Porto Alegre
pedindo socorro a extraterrestres. Para ele, os dois fatos comprovam que
bolsonaristas são nazifascistas lunáticos. Agências de verificação demonstraram
que os bolsonaristas em Porto Alegre não pediam socorro a extraterrestres, mas
posavam para uma foto de drone. Esclareceu-se depois que a suposta saudação
nazista é o gesto usual empregado no juramento à bandeira por quem faz o
serviço militar. Algum desses esclarecimentos modifica o juízo do progressista
médio?
Se non è vero, è ben trovato. A frase,
atribuída a Giordano Bruno, pode ser traduzida por “se não é verdade, é bem
achado”, no sentido de que é bastante verossímil. Não importa que a história da
bandeira do PT ou a da chave do palácio sejam falsas — algo desse tipo
seguramente aconteceu, porque os patriotas são ordeiros, e os petistas
traiçoeiros.
O mesmo vale para os progressistas. Pode
ser que os bolsonaristas de Porto Alegre não estivessem tentando contato com
extraterrestres e que os de Santa Catarina não estivessem deliberadamente
fazendo uma saudação nazista, mas, com certeza, eles são malucos e fascistas e,
se não fizeram essas duas coisas, algo do gênero fizeram.
O juízo precede a difusão da notícia falsa
e facilita a sua aceitação. É porque já acho que os patriotas são ordeiros que
aceito qualquer mentira sobre a invasão do 8 de Janeiro. E é porque acho de
antemão que os bolsonaristas são fanáticos malucos que aceito sem
questionamento a história inverossímil de que estavam tentando contatar
extraterrestres.
As distorções e mentiras políticas quase
sempre ilustram uma tese: petistas são ladrões e querem destruir a família
tradicional ou bolsonaristas querem reprimir mulheres, negros, gays e impor uma
ditadura militar. As mentiras, as distorções e os exageros apenas servem para
reforçar as crenças que o público-alvo já tem.
Somos obcecados com o problema da difusão
de mentiras porque, ingenuamente, pressupomos que a mentira leva os inocentes
para o outro lado. Se fossem esclarecidos pela verdade, viriam para o lado da
luz, para o lado do bem — o nosso. Mas se, de fato, o juízo precede à difusão
da mentira, então talvez não devêssemos nos preocupar tanto com as fake news,
mas, antes, com o fanatismo e a intolerância que permitem sua aceitação.
Em vez de priorizar encontrar as fábricas
de mentiras e conceber mecanismos para conter a desinformação, talvez
devêssemos nos esforçar mais para encontrar formas de esfriar o ambiente
político, reduzir a hostilidade e a intolerância que caracterizam a
polarização. A tarefa não é mais fácil — mas está mais bem colocada.
Faz sentido mas vai preso assim mesmo
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