sábado, 25 de fevereiro de 2023

Pablo Ortellado - Verdade bem achada

O Globo

As mentiras, as distorções e os exageros apenas servem para reforçar as crenças que o público-alvo já tem

Muita gente acredita, à esquerda e à direita, que nosso problema político fundamental é que estamos dominados por máquinas de difundir mentiras. Esse diagnóstico parte do pressuposto de que nossos juízos políticos, equivocados e inflamados, são forjados pelas mentiras difundidas nas mídias sociais e nos aplicativos de mensagens. Mas será que estamos consumindo mentiras e, a partir delas, formando juízos deturpados? Ou tudo aconteceria no sentido contrário: só estamos aceitando as mentiras porque temos um juízo inflamado prévio? Soluções muito diferentes são exigidas num e noutro caso.

O leitor simpático a Bolsonaro pode fazer o exercício. Ele deve ter visto nos aplicativos de mensagem que um dos participantes da invasão do Congresso carregava uma bandeira do PT, outra tinha as chaves e entrou sem dificuldades no Palácio do Planalto. Para ele, os dois fatos mostram que o vandalismo na sede dos Três Poderes foi obra de esquerdistas infiltrados, tudo facilitado pelas autoridades petistas para justificar a repressão ao movimento popular. Agências de verificação demonstraram que a porta do Palácio do Planalto foi arrombada e que a bandeira do PT não era de um infiltrado, mas foi roubada por um bolsonarista do gabinete de um deputado de esquerda. Será que, confrontado com essa retificação, o bolsonarista médio muda o seu juízo? Provavelmente, não.

Sem sugerir que há simetria no emprego das mentiras, convido o leitor simpático a Lula a também fazer o experimento. Ele deve ter visto as imagens de bolsonaristas fazendo uma saudação nazista em São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, e também deve ter visto bolsonaristas em Porto Alegre pedindo socorro a extraterrestres. Para ele, os dois fatos comprovam que bolsonaristas são nazifascistas lunáticos. Agências de verificação demonstraram que os bolsonaristas em Porto Alegre não pediam socorro a extraterrestres, mas posavam para uma foto de drone. Esclareceu-se depois que a suposta saudação nazista é o gesto usual empregado no juramento à bandeira por quem faz o serviço militar. Algum desses esclarecimentos modifica o juízo do progressista médio?

Se non è vero, è ben trovato. A frase, atribuída a Giordano Bruno, pode ser traduzida por “se não é verdade, é bem achado”, no sentido de que é bastante verossímil. Não importa que a história da bandeira do PT ou a da chave do palácio sejam falsas — algo desse tipo seguramente aconteceu, porque os patriotas são ordeiros, e os petistas traiçoeiros.

O mesmo vale para os progressistas. Pode ser que os bolsonaristas de Porto Alegre não estivessem tentando contato com extraterrestres e que os de Santa Catarina não estivessem deliberadamente fazendo uma saudação nazista, mas, com certeza, eles são malucos e fascistas e, se não fizeram essas duas coisas, algo do gênero fizeram.

O juízo precede a difusão da notícia falsa e facilita a sua aceitação. É porque já acho que os patriotas são ordeiros que aceito qualquer mentira sobre a invasão do 8 de Janeiro. E é porque acho de antemão que os bolsonaristas são fanáticos malucos que aceito sem questionamento a história inverossímil de que estavam tentando contatar extraterrestres.

As distorções e mentiras políticas quase sempre ilustram uma tese: petistas são ladrões e querem destruir a família tradicional ou bolsonaristas querem reprimir mulheres, negros, gays e impor uma ditadura militar. As mentiras, as distorções e os exageros apenas servem para reforçar as crenças que o público-alvo já tem.

Somos obcecados com o problema da difusão de mentiras porque, ingenuamente, pressupomos que a mentira leva os inocentes para o outro lado. Se fossem esclarecidos pela verdade, viriam para o lado da luz, para o lado do bem — o nosso. Mas se, de fato, o juízo precede à difusão da mentira, então talvez não devêssemos nos preocupar tanto com as fake news, mas, antes, com o fanatismo e a intolerância que permitem sua aceitação.

Em vez de priorizar encontrar as fábricas de mentiras e conceber mecanismos para conter a desinformação, talvez devêssemos nos esforçar mais para encontrar formas de esfriar o ambiente político, reduzir a hostilidade e a intolerância que caracterizam a polarização. A tarefa não é mais fácil — mas está mais bem colocada.

 

Um comentário: