terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Pedro Cafardo -BC é autônomo, mas não infalível

Valor Econômico

Reforma do Imposto de Renda tira sono da classe média

Só existe uma pessoa infalível no mundo, o papa. Mesmo assim, essa infalibilidade não é ampla e irrestrita. Funciona apenas para católicos e quando o papa se manifesta sobre princípios básicos e dogmas da fé cristã, algo instituído no Concílio Vaticano I, em 1870. Felizmente, Francisco não costuma se manifestar sobre taxas de juros. Mesmo que se manifestasse, sua opinião poderia ser contestada sem receios por católicos ou não católicos.

O Banco Central do Brasil ganhou autonomia em 24 de fevereiro de 2021, por decisão majoritária do Congresso. Tem liberdade total para conduzir a política de juros, mas a lei obviamente não estabelece a infalibilidade do BC para as suas decisões. Não há dogmas monetários. E a instituição pode receber críticas ou elogios sem que isso ameace a sua autonomia.

Esse tema domina a mídia de economia nos últimos dias. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi acusado de conspirar contra a independência do BC quando disse que o Brasil pratica os juros mais altos do mundo. Pura verdade. A taxa real de juros (além da inflação) está em quase 8% ano. Dois anos atrás era negativa: -0,30% ao ano.

O presidente Lula atacou o BC e disse que sua independência é “uma bobagem”. Nesse caso, Lula é quem falou bobagem. Criticou também a meta de inflação, que é de 3,25% para este ano, com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Outra bobagem, porque não é tarefa do BC fixar a meta, e sim do Conselho Monetário Nacional, no qual o presidente do BC tem apenas um voto e o governo Lula, dois (dos ministros da Fazenda e do Planejamento).

É didático, porém, separar bobagens de fatos. As bobagens ofuscaram a discussão do que é essencial nessa questão: a taxa de juros brasileira, de 13,75% ao ano para uma inflação prevista de 5,7%, está claramente fora do lugar. Nos EUA, a inflação é de 5%, e a taxa básica de juros, de 4,50% a 4,75%. Na União Europeia, a taxa é de 3%, enquanto a inflação atinge 8%. A taxa brasileira é alta demais e, se continuar assim, vai levar o país a uma recessão. Nesse caso, deixam de ser bobagens as suspeitas levantadas por causa do viés altamente bolsonarista do presidente do BC. Pode uma autoridade monetária autônoma participar ativamente da campanha eleitoral de um presidente?

É fato que as declarações de Lula têm impacto negativo para a economia, porque levantam dúvidas sobre a continuidade da autonomia do BC e da política monetária. Mas também é fato que o frenesi do mercado com as declarações amplifica seus efeitos negativos. O mesmo não ocorreu e não ocorre quando se descobre o viés bolsonarista e duvidosamente técnico do comandante do BC autônomo. Bom seria parar o frenesi e discutir se a taxa de juros precisa ser de 13,75%. Ela é uma festa para rentistas e uma desgraça para quem investe em produção.

Peso dos tributos

Mudando de assunto, lá vai uma historinha real com nomes fictícios. Ela mostra a importância da reforma tributária, a primeira grande lição de casa do governo Lula. João Silva, a mulher dele Maria Cristina e o filho Vicente saíram felizes de casa, logo cedo, numa sexta-feira, nas férias de janeiro. João havia trocado de emprego e recebido uma “bolada” de FGTS, aviso prévio e férias atrasadas.

Com o dinheiro extra, casal e filho foram às compras. Primeiro passaram no supermercado: arroz, farinha, azeite, óleo, legumes, frutas, sabão e outros 40 itens para a casa. Valor da conta: R$ 405,57. Foram depois a um posto de combustíveis para completar o tanque de gasolina do carro, gastando R$ 146,10. Enquanto o pai calibrava os pneus da SUV, Vicentinho, de seis anos, pegou uma barra de chocolate na lojinha de conveniência. Custou R$ 24,99. Na padaria ao lado, Maria Cristina comprou pãezinhos e frios: R$ 39,57. E, na farmácia, uma vitamina e uma caixa de dipirona, por R$ 175,88.

O motivo da ansiedade da família Silva, porém, era para chegar à loja de material elétrico. Para concluir a reforma da casa, João comprou tomadas, lustres, lâmpadas e outros itens de iluminação. Pagou à vista R$ 10.436,38.

João é um “gastador caxias”, gosta de comprar, mas sempre exige nota fiscal, diz Maria Cristina. Em casa, ele foi conferir os preços. Assustou-se ao ver escondidinho no pé da nota de materiais elétricos o valor aproximado de tributos: R$ 3.382,36, ou 32,4% do total.

Por curiosidade, foi ver também o imposto pago nas demais notas. No supermercado, para a conta de R$ 405,57, pagou aos governos R$ 124,69. Pela barrinha de chocolate, os governos levaram R$ 8,65; pela gasolina, R$ 26,30; pelos pães e frios, R$ 5,67; e pelos remédios, R$ 53,10. Resumo da história: a alegre saída para as compras da família Silva rendeu aos cofres públicos R$ 3.600,77, impostos que representaram 32,06% do valor total gasto, de R$ 11.228,49. João achou muito e estava certo. Para comparação, os 34 países mais ricos do mundo tributam o consumo, no máximo, em 20%.

O sistema tributário brasileiro, além de caótico, reproduz desigualdades, cobrando relativamente mais de pobres e menos de ricos. Não é simples, portanto, a tarefa do Congresso ao votar a reforma tributária neste semestre. Infelizmente, no primeiro momento, a proposta do governo é fazer apenas uma reforma neutra na tributação do consumo, sem aumentar nem reduzir a carga atual, que já é bastante alta.

O grande desafio é a criação de uma tributação mais simples, que possa ser entendida por qualquer cidadão, sem a cobrança, por exemplo, de impostos “por dentro”, aberração do ICMS atual. A ideia é unificar cinco impostos federais, estaduais e municipais em um tributo sobre valor agregado, com legislação uniforme em todo o país e não cumulativo, cobrado no destino sobre produtos e serviços. Tudo isso sem quebrar Estados e municípios e sem onerar pessoas mais pobres.

No segundo semestre, se tudo correr como o esperado, chegará a vez da batalha sobre a tributação da renda, capaz de gerar enormes controvérsias no Congresso, porque seu objetivo será também desonerar os pobres e onerar os ricos. A linha divisória entre pobreza e riqueza constituirá uma definição importante, algo que já tira o sono de gente da classe média, como o “João gastador” da família Silva.

 

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