terça-feira, 28 de março de 2023

Carlos Andreazza - Lira contra a República

O Globo

Não existe controvérsia sobre o rito para tramitação de medidas provisórias no Congresso. Isso é falso problema forjado por um oportunista da pandemia: Arthur Lira. Tampouco estão em disputa entendimentos sobre regimentos internos, embora os sucessivos saques de Lira aos regramentos da Câmara sugerissem que ele não tardaria a atacar a Constituição.

É disto que se trata: de atentado de Lira contra a Constituição. Não será o caso de explicar o que a Carta estabelece como trâmite de MP no Parlamento. Já escrevi a respeito no artigo “O assalto de Lira à Constituição”, disponível em meu blog no site do GLOBO. Está tudo lá.

Está tudo, claríssimo, na Constituição.

O presidente da Câmara, aliás, admitiu em entrevista ao Valor que o rito que desrespeita é constitucional. Pondera, porém, que a forma excepcional vigente seria “muito mais” democrática. Voltarei a isso.

Chamei Lira de oportunista da pandemia. Haverá outra maneira de se referir a quem manipula solução extraordinária estabelecida pelas duas Casas, de modo a que as deliberações legislativas pudessem ocorrer durante a emergência sanitária imposta pela peste, para ampliar o próprio poder?

Poderia chamar o oportunista da pandemia de golpista. Porque é um golpe — contra Constituição — o que se arma. Não é hora para meias palavras.

— Nossa constatação é que a pandemia trouxe alterações na vida do Parlamento que não retrocederão, como a votação pelos aplicativos.

Compara avanços tecnológicos, cuja implementação cabe à burocracia administrativa, ao atropelamento de processo parlamentar previsto na Carta.

A constatação de Lira sobre alterações trazidas pela peste não importa. O que não pode retroceder é o pacto republicano pela Constituição. De modo que, se quer a perenidade do rito atípico combinado para o período emergencial, o caminho é único: bancar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) conforme lhe apeteça e submeter — submeter sua onipotência — à apreciação do Congresso.

Fora disso, não há — não poderá haver — conversa. Que papo é esse de o governo mediar uma solução —puxadinho, premiando mentalidade autocrática — para o tal impasse? Acordo? E a Constituição, como fica? Cuidado com a ideia de recuo por um absolutista. O que remedeia a doença autoritária é o cumprimento radical da Constituição. O que remedeia a doença autoritária é o cumprimento radical da Constituição. Mesmo a perspectiva de uma PEC, no verbo de Lira, trai a noção personalista que transforma o Parlamento na Câmara municipal de, sei lá, Teotônio Vilela, Alagoas:

— O que estamos discutindo é que temos de mudar a Constituição porque as Casas não se entendem.

Ele fabrica problema, força crise sangrando a lei e se refere a uma emenda à Constituição como solução — desde que com rito à sua maneira — para o que considera picuinha, as reações. Seria emenda à Constituição, por Lira, para pavimentar buraqueira produzida por Lira.

— A comissão [mista, para primeira análise da Medida Provisória] existe na Constituição? Existe, mas, com todo o respeito ao Poder Judiciário, isso não é questão jurídica. É questão política.

Não tem “mas”. O imperador reconhece a previsão constitucional do rito e então corre — já preparando a cartada da “judicialização da política” — para informar que matéria constitucional não cabe ao Supremo. Investe contra a Constituição, investimento que produz provocações ao Judiciário — e não quer que o STF faça o controle de constitucionalidade. No mundo de Lira, lá onde política é distribuir codevasfs, ele pode dilapidar a Constituição — a defesa da Constituição não sendo assunto do Poder encarregado de protegê-la.

Destaque-se esta pérola, expressão de independência segundo coronéis:

— Decisão judicial não se descumpre, mas ela não funciona para a política.

É o presidente da Câmara declarando, enquanto esquarteja princípios da República, que driblará decisão do STF — sobre matéria que reconhece como de natureza constitucional — que contrarie sua compreensão do que seja atividade política. Foi o que fez — com Pacheco e governo Lula, enganando o Supremo — para que o orçamento secreto continuasse.

Diz — faz — isso e vai a convescote com ministros da Corte. Todos satisfeitos.

— Não abrimos mão de nossas prerrogativas — falou o parlamentar que aterrou os mecanismos de obstrução pela oposição legislativa e que tem suprimido o debate de projetos em comissões.

Trata-se do mesmo deputado para quem o orçamento secreto seria orçamento municipalista. Existe glossário a ser escrito com a perversão das palavras por esses patrimonialistas autoritários e outros elmares.

Existe método. Ele estica a corda; para logo vir com a proposta (uma concessão?) de acordo que, com a desculpa de defender interesses da Câmara, aumenta-lhe o controle sobre os deputados.

Volto à democracia segundo Lira. Que considera “muito mais democrática” resolução definida por mesas diretoras em caráter extraordinário; “muito mais democrática” que o estabelecido na Constituição. Prerrogativa da Câmara — do presidente da Câmara — sendo tratorar o equilíbrio da atividade bicameral conforme disposto na Lei Maior.

É tempo de o Supremo cessar com a social, cortar o “me engana que eu gosto” e reaver o exercício de suas prerrogativas.

 

Um comentário:

  1. Uma análise sensata. Parabéns ao autor e ao blog que o divulga!

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