Folha de S. Paulo
Rodovia assinala fronteira social em São
Sebastião
A Vila Sahy morreu de política, não de
chuva. É que, antes de tudo, ela não deveria estar lá.
São Sebastião é uma cidade polinucleada. Há
o centro, esparramado diante da parte estreita do canal marítimo, e os inúmeros
núcleos urbanos implantados numa faixa costeira de cerca de 60 quilômetros.
O pano de fundo são as escarpas florestadas da Serra do Mar, que por vezes atingem a linha litorânea e formam divisores de planícies fluviais drenadas pelos rios com nascentes no planalto. Nas planícies marinhas estreitas ou largas nasceram povoados caiçaras que, mais tarde, foram absorvidos pelos atuais bairros estruturados em torno do turismo. Algumas delas, como Sahy e Juquehy, abrangem áreas de mangues.
Os povoados originais, identificáveis por
capelas erguidas entre 1920 e 1960, estabeleceram-se na foz dos rios principais
ou secundários que os batizam. A onda do turismo de massa iniciou-se com uma
década de atraso em relação à região de Caraguatatuba/Ubatuba, mais distante da
metrópole paulista, pelo gatilho do asfaltamento da BR-101 entre Bertioga e
Toque-Toque, concluído em 1985. Aprendizado zero: no novo paraíso aberto aos
negócios, reproduziram-se, em escala ampliada, os equívocos urbanísticos e
ambientais cometidos antes.
Brasil, pau-brasil: colonização predatória.
Os núcleos urbanos turísticos espraiam-se em terras sem lei. Ao abrigo de
regras frouxas, de sucessivas anistias e regularizações ex-post facto,
edificou-se extensivamente, inclusive em vertentes e topos de morros, encostas
de escarpas e várzeas fluviais (caso da estrada do Cascalho, em Boiçucanga). A
rodovia assinalou uma fronteira social entre os condomínios praianos, de um
lado, e os núcleos populares, do outro. Democracia na ilegalidade: mansões,
pousadas, casas precárias e pequenos comércios pontilham morros e vertentes
separados pela estrada.
Poder público? A rica Prefeitura de São
Sebastião, abastecida pelos royalties do petróleo e pelas rendas do porto,
aliou-se à especulação imobiliária, autorizando ou regularizando as extensões
ilegais das superfícies urbanizadas. Na febre da pilhagem, esqueceram-se das
infraestruturas públicas e dos serviços básicos. Inexistem postos policiais e
postos de saúde na maioria dos bairros/praias. As redes de coleta de esgotos
circunscrevem-se a áreas mínimas: praias célebres como Una, Sahy, Juquehy,
Boiçucanga e Toque-Toque Grande são classificadas como impróprias para banho em
25% das semanas.
Nos meios políticos de São Sebastião
acalenta-se o duplo projeto de verticalização dos bairros/praias e duplicação
da rodovia. A especulação 2.0 produziria muralhas de concreto diante do mar,
estenderia a impermeabilização dos solos e expulsaria os residentes locais que
ainda permanecem no lado "nobre" da estrada. O projeto grotesco
esbarrou na resistência dos ambientalistas –que, no entanto, rejeitam também
avaliar a hipótese de verticalizações pontuais destinadas a moradia social, em
edifícios baixos, fora da esplanada marítima.
A tragédia da Vila Sahy precisa marcar um
recomeço –ou se repetirá. Os governos federal e estadual uniram-se na operação
de resgate. Agora, cabe a eles criar uma força-tarefa de reurbanização
regional, com o concurso de geomorfólogos, ambientalistas, urbanistas,
engenheiros. Ponto de partida: estabelecer na lei um mosaico de áreas de
conservação. Nas zonas de risco, nada mais deve ser edificado.
O passado pesa sobre o presente. A
transferência dos habitantes de zonas perigosas precisa respeitar o critério da
proximidade com suas comunidades. Não existe solução única para a cidade
polinucleada. A reurbanização solicita um zoneamento detalhado, com regras
adaptadas a cada localidade. Uma coisa é certa: subordinar o futuro da região aos
interesses da elite política municipal equivale a contratar morte e destruição.
Perfeito.
ResponderExcluirÉ.
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